Charles G. Finney
(29/08/1792 - 16/8/1875)
Introdução
O manuscrito original de As memórias de Charles Grandison Finney (1792-1875) está preservado nos arquivos da Faculdade de Oberlin, Ohio, onde Finney foi catedrático de teologia e presidente, de 1851 a 1865.
O texto básico foi ditado por Finney a um ex-aluno, o rev. Henry Matson e revisado pelo próprio Finney, que fez várias alterações e acréscimos, segundo as recomendações do amigo Lewis Tappan, que leu o manuscrito. O documento contém, ainda, todas as alterações feitas por James Harris Fairchild, sucessor de Finney na Faculdade de Oberlin. Depois da morte de Finney, Fairchild preparou o manuscrito para a primeira edição, publicada em 1876.
Esta nova edição apresenta o texto conforme redigido por Finney e não por Fairchild.
No entanto, a apresentação não é exatamente a deixada por Finney. Há muitos trechos em que tanto Matson quanto Finney cometeram erros de ortografia, omitiram palavras, repetiram outras ou omitiram as aspas. Esses erros foram corrigidos. Ocasionalmente, Finney empregava abreviaturas incomuns: "rec", para "recebido", dr. B." e "sr. N. ", para se referira Mr. Beecher" e "sr. Nettleton". Usava o sinal "&" com bastante freqüência. Essas abreviaturas são apresentadas por extenso nesta edição.
Para facilitar a leitura, as palavras fora de uso foram atualizadas e algumas expressões foram simplificadas. A pontuação foi atualizada e as iniciais maiúsculas foram empregadas conforme a prática atual. Foram respeitadas as marcações de parágrafos feitas por Finney, porém, os mais longos foram divididos. Procuramos apresentar o texto tão livre quanto possível de algo que desviasse a atenção do leitor, preservando a fidelidade ao original. As palavras sublinhadas no manuscrito aparecem em itálico aqui.
O manuscrito não tinha título. Lewis Tappan havia sugerido que se chamasse "Narrativa de avivamentos", considerando que o livro se ocupa principalmente dos grandes reavivamentos nos quais Finney desempenhou um papel de destaque. No entanto, está longe de ser um relato completo de sua participação nesses avivamentos. O texto omite muitos dos locais em que Finney pregou e dirigiu reuniões (os locais por onde ele sabidamente passou estão assinalados nos mapas). Assim, resolvemos manter o título "Memórias", pelo qual o livro já é bem conhecido.
Somos gratos aos diretores da Faculdade de Oberlin por nos terem dado permissão para publicar o texto. Gostaríamos, também, de expressar nossa gratidão à Zondervan e, em especial, ao seu editor-geral sênior, Jim. Ruark, por empreender a publicação desta nova edição. Temos uma dívida especial para com a editora assistente, Angela Scheff, por seus minuciosos trabalhos na preparação do texto.
Garth M Rosell e Richard A. G. Dupuis.
CAPÍTULO I
Meu nascimento e minha formação
Tem sido do agrado do Senhor relacionar, até certo ponto, meu nome e meus esforços com um movimento extensivo da Igreja de Cristo, considerado por alguns o início de uma nova era, em especial, no tocante a avivamentos religiosos. Esse movimento tem abrangido, em grau considerável, o desenvolvimento de alguns conceitos da doutrina cristã que têm passado por modificações e que antes poderiam ser considerados invulgares. Ao mesmo tempo, pelo fato de esse movimento ser levado a efeito mediante mudanças na maneira de fazer progredir a obra da evangelização, era natural que predominassem alguns mal-entendidos no tocante a essas configurações doutrinárias modificadas e ao emprego desses métodos. Também era natural que, conseqüentemente e até certo ponto, mesmo homens bons questionassem a sabedoria dessas medidas e a ortodoxia dessas declarações teológicas e que, também, os ímpios ficassem furiosos a ponto de se oporem energicamente, durante algum tempo, ao avivamento
Relaciono meu nome a esse movimento apenas como um dos muitos ministros de Cristo e das pessoas que participaram com destaque na promoção do trabalho. Tenho certeza de que alguns segmentos da igreja consideram-me um inovador, com respeito à doutrina e aos métodos adotados e que muitos me consideram um líder nos ataques às formas tradicionais de pensamento e expressão teológicos e, sob muitos aspectos, na exposição das doutrinas do evangelho em linguagem nova e na introdução de outras formas de pensamento
Há vários anos, amigos que tomaram parte nos avivamentos têm-me procurado, insistindo em que eu escreva a história desses eventos. Embora tenham prevalecido muitos mal-entendidos no tocante a esses movimentos, pensa-se que a veracidade histórica exige uma declaração da minha parte a respeito das doutrinas pregadas, dos métodos empregados e dos resultados obtidos, com base no que eu e muitos outros acompanhamos de perto durante muitos anos
Parece que minha mente recusa admitir que fale de mim mesmo tanto quanto serei obrigado a falar e caso queira descrever, com honestidade, os avivamentos e minha relação com eles. Por esse motivo, tenho-me recusado, até o presente momento, a empreender semelhante obra. Recentemente, os diretores da Faculdade de Oberlin colocaram a questão diante de mim e aconselharam-me a iniciar logo o trabalho. Apoiados por vários amigos dos Estados Unidos e da Inglaterra, insistiram comigo no fato de que a causa de Cristo merece que exista na igreja um entendimento melhor do que ocorreu até agora. Principalmente, disseram, no tocante aos avivamentos que ocorreram no centro do Estado de Nova York e em outros lugares, a partir de 1821 e daí em diante durante vários anos, porque grandes calúnias e oposição foram levantadas a respeito deles
Devo dizer que é com relutância que abordo o assunto. E isso por muitas razões. Para começar, nunca mantive um diário, por isso, os relatos dependerão exclusivamente de minha memória. É verdade que tenho a capacidade natural de reter os fatos na lembrança e que os eventos que testemunhei causaram impressão profunda em minha mente. Lembro-me com muita nitidez de muitos deles, muito mais numerosos do que caberiam no livro que vou escrever. Quem já testemunhou um avivamento espiritual tem consciência dos muitos casos de conversão que ocorrem diariamente e do interesse que ele desperta no povo. Onde quer que se tenha conhecimento de tais fatos ou das pessoas envolvidas, o efeito produzido é empolgante. E são tão numerosos que, se fossem narrados todos os fatos interessantes de um único avivamento mais longo numa única localidade, seria o bastante para um livro de tamanho considerável
Não me proponho, de modo algum, seguir nessa direção. Traçarei, apenas, os contornos que dêem uma idéia razoavelmente clara de como ocorreram esses avivamentos e relatarei uns poucos casos de conversão acontecidos em diferentes lugares. Sem esses limites, minha narrativa se dilataria até encher muitos volumes. Proponho-me, então e dentro do possível, condensar em um só volume de tamanho moderado o que tenho a dizer. Por mais interessantes que tenham sido os casos de conversão para aqueles que os presenciaram, temo que para os leitores à distância se torne cansativo o excesso de detalhes
Mas, procurarei dar a devida atenção à parte doutrinária e aos métodos empregados. Mencionarei sucintamente os fatos que possam oferecer informações suficientes a esse respeito, a fim de que a igreja, a partir de agora, tenha condições de avaliar pelo menos parcialmente o poder e a pureza dessa grande obra de Deus. Os avivamentos mais puros e poderosos que testemunhei são justamente os mais criticados
Outro motivo para minha hesitação foi o fato de que muitas vezes me surpreendi ao descobrir que a lembrança que eu tinha de fatos ocorridos havia muitos anos era diferente daquilo que outras pessoas recordavam. Minhas declarações, portanto, são passíveis de conflito com as lembranças de algumas pessoas que vivenciaram os fatos quase tão bem quanto eu mesmo. Naturalmente, narrarei os acontecimentos conforme a lembrança que eu tenho deles. Muitos desses eventos serviram para ilustrar, em minhas pregações, as verdades que eu desejava apresentar. Além disso, tão constantemente as pessoas me têm trazido esses fatos à memória e tantas vezes me tenho referido a eles no decurso de meu ministério que estou convicto de que me lembro deles exatamente como se deram
Se em algum momento eu for traído pela memória ou se minhas recordações diferirem das de outras pessoas, espero que a igreja acredite que minhas declarações expressam exatamente o que trago na lembrança. Estou com 75 anos de idade. Naturalmente, lembro-me com mais clareza de coisas que aconteceram há muitos anos que de acontecimentos mais recentes. Quanto à parte doutrinária, acho impossível que minha memória cometa erros
A fim de oferecer um relato preciso do papel para o qual fui chamado a desempenhar naqueles cenários, é necessário que eu apresente um breve histórico de como vim a adotar a posição doutrinária que desde longo tempo venho sustentando e pregando e que é considerada, em certa medida, a reformulação de algumas doutrinas evangélicas tida como nociva por muitas pessoas. Portanto, a fim de tornar inteligível minha narrativa, é necessário que eu apresente um breve histórico de minha vida: nascimento, situação social, educação, conversão a Cristo, formação teológica e as circunstâncias que me levaram à vida ministerial
É necessário lembrar que não estou começando a escrever uma autobiografia, por isso não me aprofundarei em episódios de minha vida particular. Destacarei, apenas, os que ajudarem a compreender como fui orientado e como se deu meu relacionamento com esses grandes movimentos que incentivaram e promoveram mudanças nas igrejas dos Estados Unidos e de outros países
Nasci em Warren, no condado de Litchfield, Connecticut, em 1792. Quando eu tinha cerca de dois anos de idade, meu pai mudou-se para a parte central do estado de Nova York, para o condado de Oneida, que naquela época era ermo na maior parte. Os habitantes da região não contavam com nenhuma assistência religiosa. Ainda não havia sido estabelecida ali nenhuma escola bíblica dominical. Uma pequena quantidade de livros sobre assuntos religiosos estava à disposição dos cristãos. Os novos colonos provinham principalmente da Nova Inglaterra e, quase imediatamente, estabeleceram escolas públicas. Entre eles, entretanto, eram raras as pregações do evangelho apresentadas com coerência. Desfrutei das vantagens de uma escola pública durante todo o verão e o inverno até completar quinze ou dezesseis anos de idade. Com isso, progredi a ponto de ser considerado, dentro dos padrões da época, capaz de ensinar numa dessas escolas
Meus pais não eram cristãos professos e acredito que entre nossos vizinhos poucos o eram. Eu não tinha a oportunidade de ouvir alguém pregar um sermão evangélico, a não ser ocasionalmente quando algum ministro itinerante ou pregadores despreparados apareciam na região com seus sermões medíocres. Lembro-me da notória falta de conhecimento de alguns pregadores que escutei. Eles cometiam os erros mais estranhos e defendiam idéias absurdas, por isso, o povo, ao voltar para casa, ainda passava um tempo considerável sem conseguir reprimir as risadas
Mal havia sido construída uma casa de reuniões nos arredores da casa de meu pai e chegado ali um ministro, podendo eu assim assistir às reuniões, meu pai resolveu mudar-se outra vez, agora para a região ainda desabitada nas margens do lago Ontário, um pouco a sul de Sacketts Harbor. Morei ali vários anos sem qualquer outra assistência religiosa além da recebida no condado de Oneida. Posso dizer que os únicos sermões que ouvia eram os do presbítero Osgood, homem de zelo religioso considerável, mas de pouquíssimo preparo
Seu desconhecimento da linguagem era tão grande que a atenção dos ouvintes se desviava sempre para a maneira cômica pela qual se expressava. Por exemplo, em vez de dizer "eu sou", dizia "eu são". Também confundia os pronomes de modo tão absurdo que era quase impossível refrear as risadas quando ele pregava ou orava. E claro que não recebi nenhuma instrução religiosa com esses sermões
Aos vinte anos de idade voltei a Connecticut e, depois, fui para Nova Jersey, perto da cidade de Nova York, onde me dediquei ao ensino. Ensinava e estudava da melhor maneira que conseguia. Voltei duas vezes à Nova Inglaterra para cursar na escola secundária e, enquanto estudava ali, pensei em ingressar na Faculdade de Yale. Meu mentor formara-se nessa universidade. Mas, ele aconselhou-me a não fazer ali o curso superior. Disse que seria um desperdício de tempo visto que, no ritmo em que estava estudando, eu poderia facilmente cumprir o currículo inteiro do curso em dois anos, enquanto seriam necessários quatro anos para formar-me em Yale. Seus argumentos convenceram-me. E o resultado foi que abandonei a educação formal. No entanto, adquiri, posteriormente, algum conhecimento de latim, grego e hebraico. Mas, nunca fui um erudito nos clássicos nem cheguei a dominar as línguas mortas a ponto de sentir-me capaz de fazer qualquer crítica independente da tradução da Bíblia em inglês. Não me aventurava nisso sem o apoio das mais respeitáveis autoridades na matéria
Meu último professor queria que eu o acompanhasse na direção de uma escola num dos estados sulinos. Estava inclinado a aceitar a proposta com a intenção de completar meus estudos nos intervalos das aulas. Mas, quando informei minha decisão a meus pais, a quem não vira durante os quatro anos anteriores, os dois vieram buscar-me imediatamente e convenceram-me a voltar para casa com eles, no condado de Jefferson, NY. Depois de fazer-lhes uma visita, decidi filiar-me a um escritório de advocacia em Adams, naquele condado, como estudante
Até então, nunca desfrutara de uma real assistência religiosa. Nunca havia feito parte de uma comunidade onde a oração fosse prática constante, a não ser no tempo em que freqüentei a escola secundária na Nova Inglaterra, mas, nem mesmo ali, a religião me atraía. Na escola, os sermões eram pregados por um clérigo de idade avançada. Era um homem excelente, muito amado e venerado pelos membros de sua igreja, mas, a maneira como apresentava os sermões não deixava a mínima impressão em minha mente, pois limitava-se a ler em tom monótono textos que, provavelmente, escrevera muitos anos antes
Para dar uma idéia de como eram seus sermões, os manuscritos tinham o tamanho exato da Bíblia. Sentado na galeria, eu podia vê-lo colocar o papel no meio da Bíblia e encaixar quatro dedos de cada mão nos lugares onde se achavam as passagens bíblicas citadas no sermão. Dessa forma, ele precisava segurar a Bíblia com as duas mãos, o que o impedia de fazer qualquer gesto. À medida que prosseguia, lia as passagens bíblicas onde seus dedos estavam encaixados, liberando assim um dedo após outro até que todos tivessem completado seu dever. Quando isso acontecia, significava que o ministro estava para concluir a mensagem. Eram leituras enfadonhas e inteiramente destituídas de fervor. E, embora a congregação as acompanhasse com reverente atenção, confesso que em nada se pareciam com um sermão ou, pelo menos, com o que eu imaginava que fosse um sermão
No final do culto, eu ouvia com freqüência as pessoas elogiarem o sermão. Não poucas vezes ficavam especulando se ele fizera alguma referência indireta a incidentes ocorridos na igreja. Todos pareciam sempre curiosos para descobrir o propósito do sermão, se continha algo além de enfadonhas considerações doutrinárias. Posso dizer que não eram sermões de má qualidade, mas, era impossível imaginar que conseguissem instruir ou despertar o interesse de um jovem que nada soubesse a respeito de religião e que nem se importava com ela
Quando eu era professor primário em Nova Jersey, os sermões eram quase todos pregados em alemão no bairro onde morávamos. Acho que durante os três anos que passei ali, não cheguei a ouvir meia dúzia de sermões em inglês. Assim, quando fui para Adams fazer o curso de Direito, era quase tão ignorante em assuntos religiosos quanto um pagão. Fora criado no meio da mata. Dava bem pouca importância ao dia do Senhor e não tinha conhecimento das verdades básicas a respeito da fé. Em Adams, pela primeira vez na vida, experimentei os benefícios de um ministério bem estruturado
Pouco depois de minha chegada àquela cidade, o rev. George W. Gale, de Princeton, NJ, assumiu o pastorado da Igreja Presbiteriana. Seus sermões seguiam o estilo da Escola Antiga, ou seja, eram totalmente calvinistas. Ele apresentava as doutrinas de acordo com sua crença e pregava o que hoje é chamado hiper-calvinismo. No entanto, eram raras essas exposições doutrinárias. É lógico que o rev. Gale era considerado extremamente ortodoxo, mas, não consegui receber muita edificação através de suas pregações. Conforme eu mesmo lhe dizia, parecia às vezes que ele começava o sermão pelo meio do discurso e apresentava como certas muitas coisas que, em minha opinião, precisariam ser comprovadas. Parecia, também, que considerava seus ouvintes teólogos, pressupondo que as doutrinas fundamentais da fé cristã eram bem conhecidas por eles. Devo reconhecer que seus sermões deixavam-me mais perplexo que edificado. Apesar disso, freqüentava os cultos com regularidade e costumava conversar com ele sobre seus ensinamentos, para ter certeza do que realmente significavam
Antes desse período, eu nunca havia morado num lugar onde pudesse freqüentar uma reunião de oração. Já que a igreja realizava semanalmente uma reunião desse tipo perto do escritório, passei a freqüentá-la e a prestar atenção às orações que se faziam ali. Essa rotina continuou meses a fio, sempre que eu conseguia licença para sair do trabalho naquele horário. Ao estudar Direito Elementar, também percebi que os autores antigos freqüentemente citavam as Escrituras, referindo-se especialmente às instituições mosaicas como fonte autorizada de muitos princípios legais. Assim, minha curiosidade foi despertada a ponto de eu comprar uma Bíblia, a primeira que possuí. Então, sempre que aqueles autores se referiam às Escrituras, eu consultava a respectiva passagem, procurando estabelecer a devida relação. Não demorou até que esse método despertasse em mim um interesse maior pela Bíblia. Passei a lê-la e a meditar sobre o que ela dizia, muito mais que em qualquer outro momento de minha vida. No entanto, não compreendia boa parte do que lia
O rev. Gale tinha o hábito de passar pelo nosso escritório e parecia sempre muito desejoso de saber que impressão seus sermões haviam produzido em minha mente. Eu respondia bem francamente e penso, agora, que às vezes os criticava sem misericórdia. Eu apresentava objeções às afirmativas que mais me haviam despertado a atenção. Ao interrogá-lo, percebia que ele próprio tinha a mente mistificada e não conseguia expressar com exatidão o significado de muitos termos importantes que empregava em seus sermões
Particularmente, eu achava impossível atribuir qualquer sentido a vários termos que ele empregava com grande solenidade. O que ele queria dizer com arrependimento? Era mero sentimento de tristeza pelo pecado, um estado passivo da mente? Ou envolvia alguma ação voluntária? Quando falava em mudança de pensamento, a que mudança exatamente se referia? O que ele queria dizer com o termo "regeneração"? O que significava "transformação espiritual"? Como ele definia a palavra fé? Era meramente um estado intelectual? Era apenas a convicção de que as coisas declaradas nas Escrituras eram verdadeiras? E "santificação", o que significava? Envolvia mudança física na pessoa ou qualquer influência física da parte de Deus? Eu não conseguia as respostas. Parecia-me, também, que nem ele sabia o real significado da terminologia que usava
Mantivemos muitas conversas interessantes, porém, elas pareciam mais estimular minha mente à pesquisa que satisfazer-me quanto à verdade. Essas questões inquietavam-me mais e mais à medida que lia a Bíblia, freqüentava as reuniões de oração, escutava os sermões do rev. Gale e, de tempos em tempos, conversava com outras pessoas. Um pouco de reflexão convenceu-me de que eu não iria para o céu caso viesse a morrer na situação em que me encontrava. Sentia que deveria haver na religião algo de infinita importância e não demorei a ter certeza de que, se a alma era imortal e se quisesse estar preparado para a felicidade no céu, eu precisava experimentar uma grande transformação nos recônditos de minha mente. Mesmo assim, não me decidira ainda quanto à realidade do evangelho ou da religião cristã em minha vida. A questão, no entanto, era importante demais para que me sentisse sossegado diante de qualquer incerteza nesse assunto
O que me impressionava de modo especial era não constatar resposta alguma às orações que ouvia nas reuniões, semana após semana. De fato, era fácil perceber, pela repetição dos pedidos e pelos comentários dos que participavam das reuniões, que eles próprios não esperavam que suas orações fossem atendidas. Lendo minha Bíblia, descobri o que Cristo dissera sobre a oração e sua resposta. Ele recomendara: "Peçam e ser-lhes-á dado; busquem e encontrarão; batam e a porta vos será aberta. Pois, todo aquele que pede, recebe; e o que busca, acha; e àquele que bate, a porta ser abrirá" (Mt 7.7). Li, também, que Deus está mais disposto a conceder o Espírito Santo àqueles que lhe pedem que os pais terrenos a dar boas dádivas a seus filhos
Naquelas reuniões, eu escutava os membros orarem continuamente pelo derramamento do Espírito Santo e, com igual freqüência, confessarem sua fraqueza por não receberem tudo o que pediam. Exortavam-se uns aos outros a despertarem e a aplicarem-se com fervor à oração por um avivamento. Afirmavam que, se cumprissem seus deveres, orassem pelo derramamento do Espírito e fossem sinceros, o Espírito de Deus seria derramado, eles experimentariam o avivamento e nós, os incrédulos, nos converteríamos ao evangelho. Mas, em suas reuniões de oração e conferências confessavam não ter feito nenhum progresso, nem nas orações, nem em seus esforços e nem nos sinais de um avivamento
A inconsistência entre eles e a fé que professavam — o fato de orarem tanto sem obter resposta — era, para mim, uma lastimável pedra de tropeço. Não sabia como explicar aquilo. Havia dúvida em minha mente. Não sabia se Deus não atendia àquelas pessoas porque elas não eram realmente cristãs, ou se era eu quem não compreendia corretamente as promessas e ensinos da Bíblia a respeito do assunto, ou se devia concluir que a Bíblia não era verdadeira. Havia algo inexplicável para mim. Vez por outra, sentia-me como se estivesse sendo levado a um estado de ceticismo. Os ensinos da Bíblia não concordavam em nada com o que acontecia diante de meus olhos
Certa vez, quando participava de uma das reuniões, perguntaram-me se eu não desejava que orassem por mim. Respondi negativamente, declarando que não vira nenhuma resposta de Deus às orações que faziam. Eu disse-lhes: "Creio que necessito de oração, pois estou consciente de ser pecador, mas, não vejo que proveito terão as vossas orações, pois, estão pedem constantemente sem nunca receberem. Durante o tempo em que estive aqui em Adams vocês têm orado por um avivamento e ainda não o experimentaram. Estão pedindo que o Espírito Santo desça sobre vocês, mas, continuam-se queixando de fraqueza espiritual".
Lembro-me de que também usei a seguinte expressão: "Durante todo o tempo em que freqüento estas reuniões, vocês têm orado o suficiente para expulsar o Diabo de Adams, se a questão for poder em suas orações. Mas, aqui estão vocês, ainda orando e ainda se queixando". Fiz essa declaração com toda a sinceridade — e bastante irritado, penso eu, por ter sido colocado em contato tão direto com as verdades da fé cristã, o que era uma situação nova para mim.
Ao voltar às minhas leituras da Bíblia, no entanto, ocorreu-me que a razão de suas orações não serem respondidas podia ser a falta de disposição daquelas pessoas em cumprirem as condições que Deus pré-estabelecera para tornar efetiva a promessa de poder atender às orações. Aqueles cristãos não oravam com fé, no sentido de crer que Deus lhes daria realmente as coisas que pediam. Percebi que a Bíblia revelava muitas condições para que a oração fosse atendida, as quais aqueles crentes pareciam ignorar totalmente. Essa idéia, no entanto, passou algum tempo embutida em minha mente na forma de confusos questionamentos, impedindo que eu a expressasse em palavras. Mesmo assim, acabaram-se as dúvidas quanto à realidade do evangelho.
Depois de lutar nesse sentido durante dois ou três anos, pude entender de uma vez por todas, que, apesar da falta de clareza em meus pensamentos ou nos pensamentos expressados por meu pastor e pelos membros da igreja, a Bíblia nunca deixaria de ser a verdadeira Palavra de Deus
Resolvido esse assunto, tive de tomar uma posição: ou aceitava a Cristo conforme ele é apresentado nos Evangelhos ou prosseguia com a vida mundana. Nesse período, como vim a tomar consciência mais tarde, minha mente estava tão impressionada pelo Espírito Santo que eu não poderia deixar a questão em aberto por muito tempo e nem hesitar longamente entre os dois estilos de vida colocados diante de mim.
CAPÍTULO II
MINHA CONVERSÃO A CRISTO
Certo domingo à noite, nesse ponto de minha história, concluí que deveria decidir sem demora a questão da salvação da minha alma e, se possível, fazer as pazes com Deus. Mas como estava muito ocupado com os negócios do escritório, eu sabia que sem uma grande firmeza de propósito jamais chegaria a tratar do assunto de maneira efetiva. Resolvi então que, imediatamente e dentro do possível, evitaria tratar de negócios ou de qualquer outra coisa que pudesse desviar minha atenção. Assim, dediquei-me totalmente ao objetivo de alcançar a certeza da salvação de minha alma. Passei a perseguir essa meta com o máximo de vigor e eficiência. No entanto, o trabalho no escritório exigia de mim longas horas todos os dias. Mas, graças à providência divina, consegui mais tempo livre nas segundas e terças-feiras, o que me deu a oportunidade de ler a Bíblia e orar a maior parte desse tempo
No entanto, eu não percebia o quanto era orgulhoso. Para mim, a opinião dos outros não era importante e não me preocupava com o que pensavam a meu respeito. Na realidade, enquanto estava em Adams, eu me destacara muito na igreja, tanto pela freqüência às reuniões de oração quanto pelo grau de interesse na religião. Por esse motivo, a igreja foi levada repetidas vezes a pensar que eu era um inquiridor compulsivo. Mas, quando enfrentei realmente a questão, descobri que não estava muito disposto a deixar que alguém soubesse de minha busca pela salvação. Quando orava, fazia-o aos sussurros, depois de ter de tapar o buraco da chave da porta, para evitar que alguém descobrisse que eu estava orando.
Até aquele dia, minha Bíblia ficava sobre a mesa, lado a lado com os livros de Direito. Nunca me ocorrera sentir vergonha de ser visto lendo a Palavra, assim como não sentia vergonha de ser visto lendo qualquer outro livro. Contudo, depois que me dediquei com seriedade à busca da salvação, passei a manter a Bíblia o mais possível fora de vista. Se alguém entrasse e eu estivesse lendo a Bíblia, jogava os livros de Direito por cima dela, para dar a impressão de que ela não estivera em minhas mãos.
Em vez de tentar uma conversa franca com alguém a respeito do assunto, como fazia antes, não mostrava mais disposição para conversar com quem quer que fosse. Eu não procurava o ministro de minha igreja por duas razões. Primeira: não queria revelar-lhe meus sentimentos. Segunda: não tinha a mínima certeza de que ele me entenderia ou me daria as orientações necessárias. Pelos mesmos motivos, evitava conversar com os presbíteros ou com outros membros da igreja. Por um lado, sentia-me envergonhado de deixar que descobrissem meus sentimentos. Por outro, tinha receio de que me oferecessem diretrizes erradas. Achei-me, então, sozinho com minha Bíblia.
Ao longo daquelas noites de segunda e terça-feira, minhas convicções se fortaleceram, mas parecia que meu coração se endurecera. Eu não conseguia derramar uma lágrima nem orar. Não tinha oportunidade de orar em voz alta, porém, estava convicto de que, se pudesse ficar a sós e usar minha voz para dar expressão aos meus sentimentos, encontraria alívio na oração. Sendo muito acanhado, evitava o quanto possível falar com qualquer pessoa sobre o assunto. Esforcei-me, no entanto, para vencer o bloqueio, procurando não despertar na mente de ninguém a desconfiança de que eu estava buscando a salvação.
Numa terça-feira à noite, senti-me bastante nervoso e de madrugada veio sobre mim uma estranha sensação, como se eu estivesse para morrer. Sabia que, se morresse, iria para o inferno. Meu desejo era gritar em voz alta, mas consegui manter-me quieto até ao amanhecer. Então, levantei-me e ainda cedo saí para o escritório. Pouco antes de chegar ali, porém, senti como se fosse confrontado com perguntas que pareciam ser feitas dentro de mim. Era como se uma voz interior me inquirisse: "O que você está esperando? Você não prometeu entregar o coração a Deus? O que está tentando fazer? Está tentando ser justo por esforço próprio?"
Foi exatamente nesse ponto que a salvação se descortinou diante de mim, de maneira a deixar-me maravilhado. Acho que foi aí que vi, tão claramente quanto em qualquer outro momento de minha vida, a realidade e a plenitude da expiação por meio de Cristo. Entendi que a sua obra já havia sido consumada e que, em vez de necessitar de algum tipo de justiça pessoal para chegar a Deus, eu precisava apenas submeter-me à justiça divina por meio de Cristo. De fato, a oferta da salvação segundo o evangelho parecia algo a ser aceito, algo pleno, completo. E tudo que eu precisava fazer era abandonar meus pecados e entregar-me a Cristo. A salvação, segundo me parecia, em vez de ser levada a efeito pelas minhas obras, tinha de ser encontrada inteiramente no Senhor Jesus Cristo, que se apresentava diante de mim para que eu o aceitasse como meu Deus e meu Salvador.
Sem perceber, eu havia parado na rua, exatamente onde aquela voz interior pareceu deter-me. Não sei dizer quanto tempo permaneci ali. Contudo, mesmo depois de ter, por um momento, essa revelação tão clara em minha mente, parecia ouvir outra pergunta: "Você vai aceitar agora, hoje?'. Respondi: "Sim, aceitarei hoje, ou morrerei tentando!"
Ao norte da aldeia, do outro lado de uma colina, havia um bosque, onde eu costumava caminhar quase diariamente, quando fazia bom tempo. Corria o mês de outubro quando vivi a experiência narrada acima. Àquela altura do ano, já havia passado a estação em que meus passeios podiam ser freqüentes. Apesar disso, em vez de ir para o escritório, voltei-me em direção ao bosque, sentindo que devia ficar longe de todos os olhos e ouvidos humanos, a fim de derramar minha oração diante de Deus. Mas, até ali meu orgulho tinha de se evidenciar.
Ao passar pelo topo da colina, ocorreu-me que alguém poderia ver-me e supor que eu me estava afastando para orar. Hoje tenho a certeza de que não havia uma única pessoa no mundo capaz de imaginar tal coisa ao ver-me passando por aquele caminho. Meu orgulho, no entanto, era tão grande que deixei-me dominar tanto pelo medo dos homens que, lembro-me bem, fui-me esgueirando ao longo da cerca até ficar a uma distância de onde ninguém da aldeia pudesse ver-me. Embrenhei-me, então, bosque dentro a algumas centenas de metros, passei para o outro lado da colina e encontrei um lugar onde algumas árvores grandes haviam caído umas sobre as outras, deixando um espaço aberto entre três ou quatro enormes troncos. Percebi que ali poderia ter uma espécie de aposento particular. Lembro-me de que, ao voltar-me para subir até ao bosque, afirmei decidido: "Darei meu coração a Deus ou nunca descerei dali". Recordo-me de ter repetido a frase enquanto subia a colina: "Darei meu coração a Deus antes que eu desça dali".
Quando tentei orar, porém, vi que meu coração não queria orar. Havia suposto que, se eu tão-somente encontrasse um lugar onde pudesse falar em voz alta, sem que ninguém me ouvisse, seria capaz de orar livremente. Mas, quando tentei orar, emudeci: nada tinha para dizer a Deus. Até consegui dizer umas poucas palavras, mas, não de coração. A cada tentativa, escutava, segundo me parecia, um remexer de folhas secas e parava, levantando os olhos para ver se alguém estava vindo em minha direção. Isso repetiu-se várias vezes. Finalmente, vi-me à beira do desespero e disse para mim mesmo: "Acho que não consigo orar. Meu coração está morto diante de Deus e não quer orar". Passei, então, a repreender-me por haver prometido entregar-lhe o coração antes de sair daquele bosque. Julgava que fizera uma promessa precipitada e que seria obrigado a quebrá-la, pois não tinha condições para cumpri-la.
Minha alma retrocedia e meu coração não se abria para Deus. Comecei a sentir que era tarde demais, que ele desistira de mim e não me restava nenhuma esperança. Naquele momento, o que mais me afligia era a promessa precipitada de entregar meu coração a Deus naquele dia ou morrer se não o fizesse. Parecia-me que aquele voto dominava minha alma; porém, eu estava certo de que o quebraria. Naquele instante, veio sobre mim grande abatimento, fazendo-me sentir fraco demais para firmar-me sobre meus joelhos.
Imaginei, então, ter ouvido outra vez alguém se aproximando. Abri os olhos para ver se realmente havia alguém por perto. Mas, naquele exato momento ficou claro para mim que a grande dificuldade, o que me impedia de orar era a soberba do meu coração. A consciência esmagadora de minha iniqüidade — ter vergonha de que um ser humano me visse de joelhos diante de Deus — apossou-se de mim de modo tão poderoso que passei a gritar, afirmando que não sairia dali nem que todos os homens da terra e todos os demônios do inferno estivessem ao meu redor. "O quê?!", exclamei. "Um pecador tão degradado como eu, de joelhos, confessando seus pecados ao grandioso e santo Deus, com vergonha de que outro ser humano, tão pecador quanto eu, saiba disso e me veja de joelhos procurando a paz com meu Deus, a quem ofendi?!" Meu pecado parecia terrível, infinito. Fez-me quebrantar-me diante do Senhor.
Naquele momento, como um raio de luz, senti que penetrava em minha mente a seguinte profecia bíblica: "Então vocês clamarão a mim, virão orar a mim e eu vos ouvirei. Vocês me procurarão e me acharão quando me procurarem de todo o coração" (Jr 29.12,13). Imediatamente, apossei-me dessas palavras com o coração. Até então, eu havia crido intelectualmente na Bíblia. Nunca percebera que, na verdade, a fé significava confiança voluntária e não um estado intelectual. Tomei total consciência de que, naquele momento, precisava confiar na veracidade de Deus.
De alguma forma, fiquei sabendo que aquelas palavras eram uma passagem das Escrituras, embora creia que ainda não a tivesse lido. Sabia que era a Palavra de Deus, a voz de Deus falando comigo e clamei: "Senhor, eu me aposso de tua promessa. Agora sabes que eu realmente te busco de todo o coração, que vim a este lugar a fim de orar a ti e que prometeste atender-me". A dúvida a respeito de eu poder ou não, naquele dia, cumprir meu voto parecia dissipada. O Espírito parecia enfatizar a idéia dada no texto: "... quando me procurarem de todo o coração". A questão do momento, ou seja, o tempo presente, parecia impressionar fortemente meu coração. Falei ao Senhor que aceitaria literalmente sua promessa, tendo a certeza de que ele não podia mentir e, por isso, estava certo de que atenderia à minha oração e seria achado por mim.
Deus, então, fez-me encontrar muitas outras promessas, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, principalmente as mais importantes, relacionadas ao Senhor Jesus Cristo. Nunca poderei, por meio de palavras, fazer com que alguém compreenda quão preciosas e verdadeiras aquelas promessas divinas me pareceram. Aceitei cada uma delas, uma após outra, como verdades infalíveis, como declarações de Deus, que não pode mentir. Parecia que elas não atingiam tanto meu intelecto quanto me atingiam o coração, para que estivessem ao alcance da força de vontade da minha mente. Agarrei-me a elas, delas tomei posse e segurei-as fortemente, como um náufrago se agarra a alguma coisa.
Continuei a orar e a receber e tomar posse das promessas divinas por um longo período. Não sei quanto tempo durou. Orei até sentir minha mente transbordar e, antes que o percebesse, já estava em pé, subindo aos saltos a ladeira em direção à estrada. O fato de eu ter-me convertido nem sequer chegara ao meu pensamento. Lembro-me, porém, de que, à medida que ia abrindo caminho no meio das folhas, repetia com grande ênfase e determinação: "Se já me converti, vou pregar o evangelho".
Não demorei a alcançar a estrada que levava à aldeia e comecei a refletir sobre o que acontecera. Percebi que minha mente estava, de maneira maravilhosa, cheia de quietude e paz. E falei para mim mesmo: "O que é isto? Devo ter entristecido o Espírito Santo a ponto de ele afastar-se de mim. Perdi toda a convicção. Não tenho a mínima preocupação com minha alma e só pode ser porque o Espírito se afastou de mim. Por que será? Nunca em minha vida me senti tão pouco preocupado com minha salvação!" Lembrei-me, então, daquilo que, de joelhos, eu dissera a Deus, prometendo aceitar literalmente a Palavra. De fato, recordei-me de muitas coisas que eu falara e concluí que não era de admirar que o Espírito me tivesse deixado, pois o fato de um pecador como eu se ter agarrado daquela maneira à Palavra de Deus era uma atitude de presunção, talvez até mesmo de blasfêmia. Deduzi que, na minha emoção, entristecera o Espírito Santo e, talvez, tivesse cometido um pecado imperdoável.
Caminhei tranqüilamente em direção à aldeia. Minha mente estava tão serena que parecia que toda a natureza estava ouvindo. Era o dia 10 de Outubro e o tempo estava muito agradável. Havia saído para o bosque bem cedo, logo depois do café de manhã e quando voltei à aldeia descobri que já era a hora do almoço. No entanto, não tinha a mínima consciência de quanto tempo havia decorrido desde que saíra de casa. Parecia haver-me afastado da aldeia por um período bem curto. Como explicar a paz que sentia na alma? Procurei lembrar-me de convicções que havia desenvolvido e consegui sentir de volta o peso do pecado debaixo do qual sofrera. Mas, todo o senso de erro, toda a consciência de culpa ainda presente havia-se afastado de mim por completo. Disse para mim mesmo: "O que está acontecendo? Não consigo sentir nenhum peso de culpa em minha alma, embora saiba que sou grande pecador!"
Procurei, em vão, despertar dentro de mim alguma ansiedade que pudesse inquietar-me diante do estado em que me encontrava. Percebi que estava muito calmo e cheio de paz, chegando a julgar que a tranqüilidade de que estava tomado era apenas o resultado de eu haver entristecido e afastado o Espírito de mim. Por mais que eu tentasse entender aquele sentimento, porém, nada me levava à mínima compreensão que fosse a respeito daquele estado de minha alma ou de meu estado espiritual. A tranqüilidade em meu espírito era extraordinariamente grande. Não conseguiria descrevê-la em palavras. Nenhuma definição que pudesse elaborar e nenhum esforço que pudesse fazer seriam capazes de trazer-me de volta o senso de culpa ou a mínima preocupação a respeito de minha salvação. Pensar em Deus era doce para mim e a mais bonita tranqüilidade espiritual tomara posse completa de meu ser. Tratava-se de um grande mistério, mas, isso não me afligia e nem me deixava confuso.
Fui almoçar e vi-me sem apetite. Depois, fui para o escritório e verifiquei que o dr. Wright saíra para o almoço. Peguei meu violino e, como costumava fazer, comecei a tocar e cantar alguns hinos. Mas, logo estava chorando. Parecia que meu coração havia-se transformado em água e meus sentimentos estavam em tal estado que eu não podia escutar minha voz sem deixar que as emoções transbordassem. Achava aquilo estranho e procurava evitar as lágrimas, porém, não conseguia. Queria saber o que me impedia de parar de chorar. Depois de tentar, em vão, secar as lágrimas, guardei meu instrumento e parei de cantar.
Estávamos usando o horário após o almoço para fazer a mudança de nossos livros e móveis para outro escritório. Isso mantinha-nos ocupados e pouco conversamos a tarde inteira. Minha mente permaneceu o tempo todo num estado de profunda tranqüilidade. Havia grande doçura e ternura em meus pensamentos e em minha alma. Tudo parecia estar dando certo. Era como se nada me desagradasse ou me perturbasse. Pouco antes do entardecer, senti a mente dominada pelo pensamento de que, tão logo eu fosse deixado sozinho no novo escritório, naquela noite, tentaria orar outra vez. De qualquer maneira, não me esquecia dos temas relacionados à fé e, embora já não tivesse preocupações com a alma, continuaria a orar.
Quando escureceu, já havíamos colocado os livros e os móveis em seus respectivos lugares. Acendi a lareira, na esperança de que, à noite, eu ficasse sozinho. Vendo que tudo estava em ordem e que já escurecera, o dr. Wright desejou-me uma boa noite e voltou para casa. Acompanhei-o até a porta, fechando-a depois de ele sair. Ao voltar-me, senti como se meu coração se tivesse derretido outra vez dentro de mim. Todos os meus sentimentos pareciam vir à tona para se derramarem. Em minha mente, saltava-me o desejo: "Quero derramar toda a minha alma diante de Deus". Era tão grande a elevação de minha alma que fui impelido até a sala de reuniões, que ficava atrás do escritório principal, a fim de orar. Ali, não havia lareira nem qualquer iluminação, estava totalmente escuro. Nem por isso o ambiente deixava de parecer-me perfeitamente iluminado.
Ao entrar e fechar a porta, parecia que eu me havia encontrado com o Senhor Jesus Cristo face a face. Nem naquele momento nem mesmo muito tempo depois me ocorreu que aquele sentimento representava um estado mental. Pelo contrário, parecia que me encontrava realmente face a face com o Senhor, vendo-o da mesma forma que veria qualquer ser humano. Ele nada disse, mas olhou-me de tal maneira que me prostrei quebrantado aos seus pés. Sempre considerei notável aquele estado mental. Cristo parecia-me tão real que o vi em pé, diante de mim, enquanto eu caía e derramava minha alma diante dele. Chorei em voz alta, como criança e fiz tantas confissões quantas podia com minha voz sufocada. Tinha a impressão de que banhava com minhas lágrimas os pés do Senhor, mas não me lembro da sensação de tê-lo tocado. Devo ter permanecido nesse estado um bom tempo, mas, minha mente estava tão absorvida que não me é possível lembrar muita coisa que tenha dito.
No entanto, sei que tão logo minha mente se tranqüilizou o suficiente para que o encontro fosse interrompido, voltei para o escritório da frente e vi que a lareira, que eu acabara de acender com lenha grossa, quase se apagara por falta de combustível. E, quando me voltei com a intenção de sentar perto da lareira, recebi um poderoso batismo com o Espírito Santo.
Sem essa expectativa, sem nunca ter tido em minha mente a esperança de que tal coisa viesse a acontecer em minha vida, sem a mínima lembrança de ter ouvido alguém falar nisso, num momento inesperado, o Espírito Santo desceu sobre mim de tal maneira que parecia atravessar-me o corpo e a alma. A impressão era de que uma onda de eletricidade passava sobre mim e através de mim. Realmente, a sensação parecia vir em ondas e ondas de amor liquefeito — não seria possível expressar de outra maneira o que aconteceu ali. No entanto, aquilo não me parecia água e sim o hálito de Deus. A sensação era de que alguém me abanava com asas imensas. E, à medida que as ondas passavam por mim, parecia que movimentavam meus cabelos, como se fosse uma brisa!
Palavras não podem expressar o amor maravilhoso que foi derramado em meu coração. Tinha a impressão de que ia explodir. Chorei em voz alta, de felicidade e amor e acho que, falando claramente, gritei o indescritível arrebatamento de meu coração. As ondas passavam por mim, muitas vezes, uma após outra, até eu exclamar: "Morrerei se essas ondas continuarem a passar em mim!" Falei, então, ao Senhor: "Senhor, não posso suportar mais!" Não sentia, porém, nenhum medo da morte.
Não sei quanto tempo continuei naquele estado, com o batismo continuando a rolar sobre mim e através de mim. Mas, sei que a noite já ia avançada quando um dos coristas — eu era o regente do coro — veio ver-me no escritório. Era um dos membros da igreja. Achou-me naquele estado, chorando em voz alta e perguntou-me:
— Sr. Finney, o que o está afligindo?
Durante algum tempo, não consegui dar qualquer resposta. Ele continuou:
— Está sentindo alguma dor?
Procurei recuperar minha postura da melhor maneira e respondi:
— Não, mas sinto-me tão feliz que não consigo viver!
Ele saiu do escritório e retornou minutos depois acompanhado de um dos presbíteros da igreja, dono da loja que ficava no outro lado da rua quase em frente ao nosso escritório. O presbítero era um homem muito sério. Mostrara-se sempre muito cuidadoso e quase nunca o vira sorrir. Quando ele entrou, encontrava-me no mesmo estado em que o jovem corista me havia deixado. Perguntou-me, então, como eu me sentia. Comecei a narrar-lhe a experiência pela qual estava passando. Para minha surpresa, em vez de falar alguma coisa, o presbítero caiu numa espasmódica gargalhada que parecia vir do fundo de seu coração. Ele não conseguia parar de rir. Era como se fosse um ímpeto irresistível.
Na vizinhança, havia um jovem que se estava preparando para entrar na faculdade, com quem eu fizera grande amizade. Eu ficara sabendo que o sr. Gale, o ministro, havia conversado com ele repetidas vezes a respeito de questões religiosas e o advertira do perigo de ser desencaminhado por mim. O sr. Gale dissera-lhe que eu era um jovem muito leviano sobre questões da fé. Imaginava que, se ele convivesse muito tempo comigo, sua mente seria influenciada negativamente a ponto de impedir que se convertesse. Depois que aceitou a Cristo, aquele jovem contou-me que várias vezes revelara ao sr. Gale, quando este o admoestava contra o convívio comigo que, freqüentemente, minha conversa surtia sobre ele mais efeito em termos de fé que os sermões do pastor. De fato, eu havia revelado muitos de meus sentimentos àquele jovem, cujo nome era Sears.
Precisamente no momento em que eu expunha meus sentimentos ao presbítero e ao outro membro da igreja, o jovem Sears entrou no escritório. Sentado de costas para a porta, quase não notei sua entrada. Mas, ele entrou e escutou, atônito, o que eu dizia. Só tomei consciência de sua presença quando ele se prostrou e exclamou, na maior agonia: "Orem por mim!". O presbítero e o outro irmão ajoelharam-se e começaram a orar por ele. Depois que oraram, também orei por Sears. Pouco depois, todos se afastaram e deixaram-me sozinho.
Então surgiu em minha mente a pergunta: "Por que o presbítero Bond riu tanto? Será que estava imaginando que eu tentava enganá-lo ou que eu estava louco?" Aquela idéia lançou uma sombra em minha mente e passei a perguntar-me se era lícito que eu, que fora tão grande pecador, orasse por aquele jovem. Parecia que uma nuvem se fechava sobre mim. Nada parecia ser capaz de tranqüilizar-me. E, quando fui para a cama pouco depois, não me sentia mentalmente angustiado, mas, não sabia como interpretar o estado em que me encontrava. Apesar do batismo que recebera, essa tentação obscureceu de tal maneira minha visão espiritual que fui dormir sem sentir a certeza de ter alcançado a paz com Deus.
Não demorei a adormecer. Mas, quase com a mesma rapidez despertei do sono, por causa do grande fluxo do amor de Deus em meu coração. Eu sentia-me tão repleto daquele amor que não conseguia dormir. Adormeci de novo e fui despertado nas mesmas condições. Ao acordar, sentia-me tomado outra vez por aquela tentação e o sentimento de amor que me envolvera o coração parecia diminuir. Mal eu voltava a adormecer, o amor irradiava tanto calor dentro de mim que, de imediato, eu era despertado. Continuei a experimentar essas sensações até que, bem mais tarde, consegui repousar.
Quando despertei na manhã seguinte, o sol já se levantara e derramava uma luz clara dentro de meu quarto. A impressão que aquela luz causava em mim não pode ser descrita com palavras. Imediatamente, o batismo que recebera na noite anterior voltou a envolver-me daquela mesma forma. Fiquei de joelhos na cama e chorei de alegria, em voz alta, permanecendo ali algum tempo, totalmente dominado pelo batismo do Espírito, sem conseguir fazer outra coisa a não ser derramar a alma diante de Deus. Parecia que o batismo naquela manhã estava acompanhado de uma suave repreensão, como se o Espírito me estivesse inquirindo: "Você vai duvidar? Você ainda vai duvidar?" Exclamei, então: "Não! Não duvidarei. Não posso duvidar". As coisas, então, ficaram tão claras em minha mente que me era impossível duvidar de que o Espírito de Deus tomara posse de minha alma.
Enquanto estava nesse estado, fui tomado da certeza de que, agora, a doutrina da justificação pela fé era uma experiência real em minha vida. Nunca antes essa doutrina ocupara minha mente a ponto de eu considerá-la fundamental. Não discernia seu real significado. Mas, agora conseguia ver e compreender a verdadeira acepção do texto: "Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1). Compreendi então que, no momento em que cri, quando estava naquele bosque, todo o sentimento de condenação abandonou minha mente e que a partir daquele momento me senti liberto de qualquer sentimento de culpa ou de condenação. Livrei-me do peso da culpa. Foram-se os meus pecados. Penso que não se achava em mim mais consciência de culpa do que sentiria se nunca tivesse pecado.
Era exatamente essa a revelação de que eu precisava. Sentia-me justificado pela fé e, pelo que podia entender, achava-me num estado em que não pecava. Em vez de sentir que eu pecava o tempo todo, meu coração encontrava-se transbordante de amor. Meu cálice transbordava de bênçãos e de amor. Era impossível sentir que eu estava pecando contra Deus ou que a mínima sensação de pecado tomasse conta de mim pelos erros que havia cometido no passado. Pelo que posso lembrar-me, nada falei a respeito dessa experiência a ninguém na ocasião. Isto é, sobre a experiência de justificação e, segundo o que conseguia enxergar, da santificação por que estava passando.
CAPÍTULO III
COMEÇO DO TRABALHO COM SUCESSO IMEDIATO
Na manha em que vivi as experiências que acabo de narrar, desci para o escritório e ali estava recebendo a renovação daquelas ondas poderosas de amor e salvação fluindo sobre mim, quando o dr. Wright entrou na sala. Falei-lhe sobre sua salvação. Não me recordo do que disse. Sei apenas que foram poucas palavras. Ele olhou para mim, atônito, mas não me respondeu nada de que possa lembrar-me. Curvou a cabeça e, depois de ficar parado alguns momentos, saiu do escritório. Na ocasião, não pensei mais no assunto, mas, depois fiquei sabendo que o que lhe dissera penetrara como uma espada em seu coração e em sua mente de tal forma que ele não se recuperou daquele estado de comoção até converter-se.
Pouco depois de o dr. Wright sair do escritório, o diácono Barney entrou e me disse:
— Sr. Finney, está lembrado de que minha causa será julgada às dez horas da manhã? Suponho que esteja pronto para acompanhar-me.
Como advogado, tinha uma procuração para defender sua causa.
— Irmão Barney — respondi — recebi da parte do Senhor Jesus Cristo um mandamento para advogar a causa do evangelho. Assim, não poderei defender sua causa.
Barney, atônito, olhou para mim e perguntou:
— O que quer dizer?
Contei-lhe, em poucas palavras, que me alistara na causa de Cristo. Revelei-lhe que havia recebido, da parte do Senhor Jesus Cristo uma convocação para defender a causa divina. Assim, o diácono precisaria procurar outra pessoa que pudesse ser seu advogado. Eu não poderia defender sua causa.
Barney abaixou a cabeça e saiu sem responder. Pouco tempo depois, ao passar perto da janela, vi que o diácono estava em pé, na rua, como que em profunda meditação. Fiquei sabendo mais tarde que ele conseguira firmar um acordo extrajudicial amigável. Depois disso, foi dedicar-se à oração. E não demorou a alcançar um estado a que jamais havia chegado em sua vida espiritual.
Resolvi sair do escritório para dar uma volta em busca de pessoas a quem pudesse falar sobre sua alma. Dentro de mim, começou a desenvolver-se um sentimento que nunca mais me abandonou: Deus queria que eu pregasse o evangelho e eu deveria começar a cumprir essa tarefa imediatamente. De alguma forma, parecia que eu já sabia disso. Se você me perguntasse como eu tinha conhecimento desse chamado, não saberia responder. Não poderia explicar como também não posso entender ou justificar como eu sabia que aquilo que recebera se tratava do amor de Deus e do batismo com o Espírito Santo. Mas, eu o sabia, sem sombra de dúvida. Do mesmo modo, parecia saber que o Senhor me comissionara para pregar o evangelho.
Quando, pela primeira vez, tive a certeza de ter vivido uma experiência espiritual, não me ocorreu que a conversão me levaria a sentir a necessidade de abandonar minha profissão, a qual desempenhava com prazer, para dedicar-me à pregação do evangelho. De início, isso constituiu num embaraço. Pensava nos esforços, no tempo e nos estudos despendidos em meu preparo profissional para agora tornar-me cristão, sabendo que isso me obrigaria a dedicar a vida exclusivamente à pregação do evangelho. Cheguei, finalmente, à conclusão de que devia submeter a questão a Deus. Eu não consultara ao Senhor ao iniciar o curso de Direito. Não era justo que, agora, impusesse condições a Deus.
Eu abandonara a idéia de tornar-me ministro de Cristo até que o assunto voltou à minha mente no momento em que deixava meu lugar de oração, ao descer do bosque para a aldeia. Mas, agora, depois de receber o batismo com o Espírito, eu desejava pregar o evangelho. Mais que isso, não tinha disposição para fazer outra coisa. Já não tinha o mínimo desejo de exercer a advocacia. Tudo quanto existia no ramo parecia fechado para mim, nada me atraía. Descobri que minha mente estava totalmente transformada e que uma revolução total ocorrera dentro de mim. Não tinha mais disposição para ganhar dinheiro. Não sentia fome nem sede pelos prazeres e diversões mundanos, quaisquer que fossem eles. Minha mente estava ocupada inteiramente com Jesus Cristo e com a salvação que nele encontrara. O mundo parecia ter pouca importância para mim. Nada se comparava ao valor das almas, pensava. Nenhum esforço poderia dar tanta satisfação e nenhum prazer poderia ser tão grande quanto o de ocupar-me apresentando Cristo a um mundo que estava morrendo.
Envolvido nesses pensamentos, deixei o escritório disposto a conversar com quem quer que encontrasse. Entrei na oficina de um sapateiro, homem piedoso e, segundo meu conceito, um dos membros da igreja que mais se dedicava à oração. Encontrei-o conversando com um dos filhos de um dos presbíteros da igreja. O jovem defendia o universalismo. (O universalismo, isto é, a crença que nega a doutrina bíblica do castigo eterno, alastrava-se pelos Estados Unidos naquela época, principalmente na Nova Inglaterra e na região Centro-Oeste (N. dor.)) Repetindo o que este dissera sobre o assunto, o sr. Willard — assim se chamava o sapateiro — voltou-se para mim e perguntou: "Sr. Finney, o que pensa sobre a opinião deste jovem?" A resposta parecia-me tão evidente que, num instante, consegui deitar abaixo o argumento daquele moço. Vendo que sua opinião fora demolida, o jovem levantou-se sem dar resposta e saiu. Mas, em pé no meio da oficina, pude notar que, em vez de seguir pela rua, o jovem dera a volta na oficina, atravessara a cerca e tomara a direção de um bosque. Não pensei mais no assunto. Só voltei a lembrar-me do incidente quando, ao anoitecer, vi aquele jovem deixar o bosque mostrando-se agora um radiante convertido e relatando a experiência vivida ali. Ele entrara no bosque e, segundo narrou, entregara seu coração a Deus.
Falei do evangelho a muitas pessoas naquele dia e creio que o Espírito de Deus marcou cada uma delas com uma impressão permanente. Não sei de ninguém com quem tenha conversado naquela ocasião que não se tenha convertido logo depois. Ao entardecer fui a casa de um amigo onde encontrei um jovem ocupado na destilação de uísque. Tinham ouvido falar que eu me tornara cristão. Como estavam para sentar-se à mesa a fim de tomar chá, insistiram que eu os acompanhasse. Os donos da casa eram religiosos professos. A irmã da dona da casa, que estava presente, ainda não era convertida. O jovem que trabalhava na destilação de uísque — um parente distante da família — era universalista professo. Falava muito, com bastante franqueza e denotava firmeza de caráter. Sentei-me à mesa com eles para tomar chá e pediram-me para suplicar a bênção de Deus sobre eles. Era algo que eu nunca fizera, mas, sem hesitação, comecei a rogar que Deus abençoasse a todos nós ali sentados.
Mal comecei a orar, minha mente foi envolvida pela lembrança do estado espiritual daqueles jovens. Isso despertou em mim tão grande compaixão que irrompi em lágrimas e não consegui continuar a oração. Todos os que estavam ao redor da mesa ficaram sem fala durante alguns momentos, enquanto eu continuava chorando. Num impulso, o jovem afastou a cadeira e saiu correndo da sala. Correu para seu quarto, trancou-se ali e não foi visto outra vez senão na manhã seguinte quando saiu declarando sua bendita esperança em Cristo. Aquele jovem tornou-se um competente ministro de Cristo, atuando por muitos anos no ministério.
No decurso daquele dia, houve muita comoção na aldeia por causa dos relatos sobre o que o Senhor fizera em minha alma. Os pensamentos divergiam. Ao anoitecer, sem que tivesse sido marcada qualquer reunião — pelo menos que eu soubesse — todos compareceram ao local onde eram realizadas as conferências e as reuniões de oração. Minha conversão deixara atônitos os habitantes da aldeia. Mais tarde, fiquei sabendo que, numa de suas reuniões, alguns membros da igreja haviam decidido fazer de mim o alvo específico de suas orações e que o sr. Gale se posicionara contra a idéia, aconselhando-os a não prosseguirem nesse intento, dizendo não acreditar que algum dia eu viesse a converter-me. Dissera que, baseado em conversas que mantivera comigo, descobrira que eu tinha bastante esclarecimento sobre religião, mas, permanecia com o coração endurecido. Além disso, dissera que estava bastante desanimado, porque, como regente do coro, eu ensinava música sacra aos jovens, influenciando-os de tal forma que, segundo ele, nenhum deles se converteria enquanto eu permanecesse em Adams.
Depois de passar pela experiência da conversão, descobri que alguns dos homens mais perigosos da aldeia antes usavam meu exemplo para justificar suas ações ímpias. Um deles em especial, o sr. Cable, marido de uma piedosa mulher, repetira diversas vezes para a esposa: "Se a religião é verdadeira, por que você não leva Finney a converter-se? Se vocês, cristãos, conseguirem que Finney se converta, vou acreditar em vossa religião".
Um advogado já idoso chamado Munson, residente em Adams, quando ouviu os rumores a respeito de minha conversão, disse que tudo não passava de trote e que eu estava simplesmente tentando ver até que ponto poderia ludibriar os cristãos. Mas, naquela noite parecia que, com um só ímpeto, todo o povo corria para o local de cultos. Eu mesmo fui para lá. O sr. Gale, o ministro, estava presente na reunião e, com ele, quase todas as pessoas de influência na aldeia. Parecia que ninguém se dispunha a iniciar o culto, mas, a casa já estava superlotada.
Não esperei por ninguém. Levantei-me e comecei por dizer que agora sabia que a religião vinha da parte de Deus. Continuei, contando-lhes partes de minha experiência que me pareciam importantes. O sr. Cable, que prometera à mulher que se eu me convertesse acreditaria na religião, estava presente. O sr. Munson, o advogado idoso, também estava ali. A tarefa para que fora capacitado pelo Senhor parecia impressionar maravilhosamente o povo. O sr. Cable levantou-se, abriu caminho no meio da multidão e voltou para casa, chegando a deixar para trás o chapéu. O sr. Munson também se retirou, afirmando que eu estava louco. "Finney está sendo sincero, sem dúvida", disse Munson, "mas, é claro que está mentalmente perturbado".
Tão logo acabei de falar, o sr. Gale levantou-se e confessou que acreditava ter sido um empecilho para a igreja. Confessou, então, que desencorajara a igreja quando os membros se propuseram orar por minha conversão. Revelou também que, quando naquele dia ouviu falar de minha conversão, dissera imediatamente não acreditar nela. Declarou que não tivera fé. Sua maneira de falar denotava um sentimento de humildade.
Eu nunca tinha feito uma oração em público. Mas, tão logo o sr. Gale acabou de falar, convidou-me para orar. Orei e acho que tive grande aprofundamento e liberdade na oração. Naquela noite tivemos uma reunião maravilhosa e, a partir de então, passamos a realizar uma reunião todas as noites durante longo tempo. A obra foi-se expandindo em todas as direções. Como tinha sido líder de jovens, marquei imediatamente uma reunião com eles. Todos compareceram — isto é, todos os que eu conhecia. Dediquei meu tempo ao trabalho pela conversão de cada um deles e o Senhor abençoou de modo maravilhoso todos os esforços empreendidos. Converteram-se, um após outro, com grande rapidez e a obra continuou entre eles até que só um deles permaneceu sem ter tido uma experiência com Cristo.
A obra expandiu-se entre todas as classes sociais e não somente por toda a aldeia, mas para fora dela, em todas as direções. Meu coração estava transbordante e durante mais de uma semana não senti a mínima disposição para dormir ou comer. Literalmente, parecia que o mundo não conhecia os alimentos que me estavam nutrindo. Não sentia necessidade de alimentar-me nem de tirar algumas horas de sono. Minha mente transbordava do amor de Deus. Continuei assim muito tempo, até que, certo dia, enquanto me barbeava em pé diante do espelho, notei como minhas pupilas estavam aumentadas e percebi que teria de repousar e dormir, senão enlouqueceria. A partir de então, passei a usar de mais cautela em meu trabalho. Comecei a alimentar-me com regularidade e a dormir tanto quanto podia.
Descobri que a Palavra de Deus tinha um maravilhoso poder e todos os dias me surpreendia vendo que as poucas palavras que falava a uma pessoa se fixavam em seu coração como uma flecha.
Passado algum tempo, fui visitar meu pai em Henderson, onde ele morava. Ele ainda não se convertera. De nossa família, apenas meu irmão mais novo professava a fé. Meu pai veio ao meu encontro no portão e perguntou:
— Como você está indo, Charles? Respondi:
— Estou passando bem, papai, de corpo e de alma. Mas, papai, você já está idoso, todos os seus filhos cresceram e deixaram sua casa e nunca ouvi uma única oração ser feita em nossa casa.
Meu pai abaixou a cabeça, irrompeu em lágrimas e respondeu:
— Eu sei disso, Charles. Entre e ore você mesmo.
Ali, encontrei-me com meu irmão mais moço. Entramos e passamos a orar. Meu pai e minha mãe ficaram grandemente comovidos e, pouco tempo depois, os dois se converteram. Parece que minha mãe trazia consigo uma esperança secreta. Penso que ninguém na família chegou a saber disso. Percorri a vizinhança por uns dois ou três dias e mantive conversas, breves ou longas, com todas as pessoas que consegui encontrar. Acredito que, na segunda-feira seguinte, à noite, haveria a reunião mensal de oração naquela cidade. Havia ali a Igreja Batista que tinha pastor e a Igreja Congregacional sem pastor. Naquela cidade, porém, a moralidade fora completamente abolida, e a religião havia sido totalmente esquecida.
Meu irmão mais novo havia estado presente na reunião a que me referi, descrevendo-a depois para mim. Os batistas e os congregacionais tinham o hábito de realizar uma reunião mensal de oração em conjunto. Poucos a freqüentavam. Por isso, era realizada na casa de um dos irmãos. Conforme o costume do grupo, a reunião foi realizada na sala de visitas de uma casa de família. Estavam presentes uns poucos membros da Igreja Batista e da Igreja Congregacional.
O diácono da Igreja Congregacional era um homem idoso e franzino chamado Montague. Era de temperamento tranqüilo e tinha boa reputação por causa de sua piedade. Raras vezes, porém, expressava-se sobre qualquer assunto. Era um típico diácono da Nova Inglaterra. Convidaram-no para dirigir a reunião. Ele leu em voz alta uma passagem das Escrituras, segundo o costume do grupo. Depois cantaram um hino e Montague ficou atrás de sua cadeira para dirigir o período de oração. Os demais, todos cristãos professos e mais jovens que Montague, ajoelharam-se espalhados por toda a sala.
Meu irmão contou-me que o diácono começou a oração, como de costume, numa voz baixa e fraca, mas não demorou a mostrar-se mais caloroso e a erguer a voz, tornando-se trêmula de emoção. Passou a orar cada vez com maior fervor, até que, dentro em pouco, começou a levantar-se nos dedos dos pés, fazendo em seguida os calcanhares voltarem ao chão. Repetiu o movimento até todos sentirem o baque do impacto dos calcanhares contra o chão. Continuava a erguer a voz e a levantar-se cada vez mais na ponta dos pés, voltando a bater os saltos dos sapatos no chão, mais fortemente. E, à medida que o Espírito o levava adiante, passou a levantar a cadeira juntamente com os calcanhares e voltava ao chão com ela. Não demorou a levantá-la ainda mais alto e a bater com ela no chão com mais força, produzindo maior impacto. Continuou fazendo isso cada vez com maior ênfase, como se pretendesse despedaçá-la. Enquanto isso, os irmãos e irmãs que estavam de joelhos começaram a gemer, suspirar, chorar e agonizar em oração.
O diácono continuou a bater a cadeira até ficar exausto. E, conforme contou meu irmão, quando parou não havia ninguém na sala que conseguisse levantar-se. Só tinham forças para chorar e confessar seus pecados e todos se quebrantaram diante do Senhor. A partir dessa reunião, a obra do Senhor propagou-se por toda a cidade. E, tendo Adams como ponto de partida, estendeu-se a quase todas as cidades do condado.
Já falei sobre a convicção espiritual de que foi tomado o dr. Wright, em cujo escritório eu estudava Direito. Mencionei, também, que minha experiência de conversão foi vivida num bosque, para onde me dirigi a fim de orar. Pouco depois de minha conversão, várias pessoas converteram-se em circunstâncias semelhantes, isto é, subiam ao bosque para orar e ali encontravam a paz com Deus. Quando o dr. Wright ouvia falar dessas experiências, imaginava que ele podia orar na própria sala do escritório, sem precisar ir até o bosque. Assim, não teria de contar a mesma história, ouvida tão freqüentemente. Segundo parece, Wright assumiu consigo mesmo um firme compromisso. Embora se tratasse de um detalhe insignificante, o orgulho deu-lhe dimensões exageradas, fato que quase o impediu de entrar no Reino de Deus.
Em minha experiência ministerial, descobri muitíssimos casos desse tipo, nos quais questões não essenciais passavam a ser importantes por causa do orgulho de um pecador. Em todas as circunstâncias, o pecador precisa render-se diante da luta, ou jamais alcançará o Reino de Deus. Conheci pessoas que se debateram semanas em grande tribulação mental, sentindo a pressão do Espírito, sem fazer o mínimo progresso até reconhecer que o caminho era a submissão. O caso do dr. Wright foi o primeiro, nessas circunstâncias, a chegar ao meu conhecimento. Depois de ele se converter, disse-me que a questão surgia com freqüência em sua mente quando estava orando e que foi levado a perceber que a soberba o fazia tomar aquela posição, mantendo-o fora do Reino de Deus.
Mesmo assim, Wright não se dispunha a reconhecer o fato. Procurava, de todas as maneiras possíveis, acreditar e levar Deus a acreditar que não era soberbo. Certa noite, segundo me contou, orou a noite inteira em sua sala, pedindo que Deus tivesse misericórdia dele. Pela manhã, porém, sentia-se mais aflito do que nunca. Finalmente, acreditando que Deus não atendia à sua oração, viu-se em tamanha crise que chegou a pensar em suicídio. Era tão grande a tentação de usar seu canivete para cumprir esse intento que, para vencê-la, teve de jogá-lo fora. Depois disso, Wright contou que, certa noite, quando voltava de uma reunião de oração, tomou consciência da soberba que o dominava. Tentou provar a si mesmo e a Deus que a soberba não o impediria de subir ao bosque para orar. Queria mostrar que não era orgulhoso. Procurou então uma poça de lama e ajoelhou-se nela, demonstrando, assim, que a soberba não era obstáculo nele. E essa luta prolongou-se por várias semanas.
Certa tarde, porém, eu estava sentado em nosso escritório e alguns dos presbíteros da igreja estavam comigo, quando o jovem universalista que conheci na oficina do sapateiro e que se convertera naquele dia entrou às pressas e exclamou: "O dr. Wright converteu-se!" E continuou: "Subi ao bosque para orar e escutei alguém, no vale do outro lado, gritando com muita força. Subi até o cume da colina, de onde podia olhar para baixo e vi o dr. Wright dando passos largos para trás e para frente e cantando tão alto quanto conseguia. Fazia pausas, de momentos em momentos, para bater palmas com muita força e gritar: 'Eu me regozijarei no Deus da minha salvação!' Depois, marchava e cantava de novo. E parava, gritava e batia palmas".
Enquanto o jovem nos contava tudo isso, pudemos ver o próprio dr. Wright descendo do bosque. Quando chegou ao pé da colina, assistimos a seu encontro com Pai Tucker, como todos nós o chamávamos, um irmão metodista de idade avançada. Wright correu para ele e levantou-o nos braços. Depois de colocá-lo no chão outra vez, conversou com ele alguns momentos e veio rapidamente em direção do escritório. No momento em que entrou, notamos que suava profusamente — ele era um homem pesado. Exclamou: "Oh meu Deus, recebi a bênção! Eu a recebi!" Batendo palmas com todas as suas forças, ajoelhou-se e começou a dar graças a Deus. Em seguida, relatou-nos o que se passara em sua mente e a razão por que não conseguira ter essa esperança antes. Disse que tão logo deixou de resistir e foi para o bosque, sentiu a mente aliviada e que, quando se ajoelhou para orar, o Espírito de Deus veio sobre ele com tamanho poder que o encheu de indizível alegria, a ponto de se desenrolar a cena que o jovem testemunhara. Naturalmente, a partir daquela ocasião, o dr. Wright tomou posição ao lado de Deus.
No início da primavera, os membros antigos da igreja começaram a dar mostras de que seu zelo espiritual estava sendo menor. Habituei-me a levantar cedo, ir sozinho até a casa de reuniões e ali passar um período em oração. Consegui, depois, persuadir um número considerável de membros da igreja a juntarem-se a mim. As reuniões começavam tão cedo que, às vezes, não havia luz suficiente para ler. Convenci o pastor a se juntar a nós também. Logo, porém, aqueles irmãos começaram a faltar àqueles encontros de oração, por isso passei a levantar-me ainda mais cedo, a tempo de ir acordá-los em casa. Muitas vezes, percorria as ruas do bairro e chamava os irmãos que me pareciam mais inclinados a comparecer. Então, desfrutávamos de um precioso período de oração. Apesar dos esforços, notei que freqüentavam as reuniões cada vez com mais relutância e isso atormentava-me.
Certa manhã, depois de eu ter feito minha ronda para chamar os irmãos, voltei à casa onde se realizavam as reuniões e notei que poucos deles estavam ali. Quando retornei, o irmão Gale, ministro da igreja, estava em pé diante da porta do templo. Enquanto chegava à igreja, toda a glória de Deus brilhou, de repente, sobre mim e ao meu redor de forma maravilhosa. O dia estava apenas começando a raiar. Mas, repentinamente, uma luz de brilho extraordinário banhou minha alma e quase me lançou ao chão. Com essa luz, veio-me a impressão de que toda a natureza, exceto o homem, louvava e adorava a Deus. A luz assemelhava-se ao fulgor do sol espalhado em todas as direções. Era demasiadamente intensa para meus olhos. Lembro-me de que abaixei os olhos e irrompi em copiosas lágrimas. Foi quando me veio ao pensamento o fato de a humanidade não louvar a Deus. Creio que passei então a conhecer, por experiência própria, a mesma luz que prostrou Paulo no caminho para Damasco. De fato, a luz que me banhava era tão forte que eu não a poderia suportar durante muito tempo.
Irrompi num pranto que podia ser ouvido de longe e o sr. Gale perguntou-me: "Qual é o problema, irmão Finney?". Eu, porém, não conseguia contar-lhe o que se passava. Percebi que ele não vira nenhuma luz e que, por isso, não fazia idéia do motivo de minha reação. Narrei-lhe bem pouco do que acontecia comigo. Creio que simplesmente respondi que vira a glória de Deus e que não suportava mais pensar na maneira displicente com que Deus era tratado pelos seres humanos. De fato, naquele momento, parecia-me que a visão que tivera da glória divina não podia ser descrita através de palavras. Só minhas lágrimas eram capazes de descrevê-la. A visão, se assim pode ser chamada, desapareceu e a tranqüilidade voltou à minha mente.
Na minha vida cristã, desfrutava de muitos períodos de comunhão com Deus. É impossível descrever com palavras o que significavam para mim. Não foram raras as vezes em que, ao fim desses períodos, eu tinha a impressão de ouvir em minha mente a seguinte advertência: "Vá e tome o cuidado de não contar isso a ninguém". Na época, eu não conseguia compreender o motivo dessa imposição e várias vezes relatei a meus irmãos cristãos aquilo que o Senhor me dissera, ou melhor, descrevi-lhes os momentos de comunhão que tivera com ele. Entretanto, não demorei a descobrir que não deveria ter relatado àqueles irmãos o que se passara entre mim e o Senhor. Eles não conseguiam compreender. Davam a impressão de estar surpresos e, às vezes — pensava eu — incrédulos. Não demorei a decidir que me manteria em silêncio no tocante àquelas manifestações divinas. Revelaria bem pouca coisa a respeito delas.
Em dias passados, dedicara muito tempo à oração. As vezes, "orava sem cessar", literalmente falando. Freqüentemente dedicava-me ao jejum pessoal e particular e sentia-me muito disposto a isso. Naqueles dias procurava estar inteiramente a sós com Deus e, geralmente, caminhava até aos bosques, ou buscava a casa de reuniões, ou ainda procurava um lugar afastado onde pudesse ficar inteiramente só. Às vezes, seguia uma direção errada no jejum, procurando examinar a mim mesmo segundo as idéias de introspecção então aceitas pelo pastor e pela igreja. Procurava examinar o próprio coração, no intuito de analisar meus sentimentos e voltava minha atenção especialmente para motivos pessoais e para o estado de minha mente. Quando tomava essa direção, descobria invariavelmente que o dia chegava ao fim sem nenhum progresso perceptível.
Posteriormente, vim a descobrir por que aquilo acontecia. Percebi que, ao desviar minha atenção do Senhor Jesus Cristo, procurando voltá-la para mim mesmo, ao examinar motivos e sentimentos próprios, estes eram naturalmente abafados. Mas, quando eu jejuava, deixando que o Espírito lidasse comigo à sua maneira e quando me entregava permitindo que ele me orientasse e instruísse, tudo resultava em meu máximo proveito. Descobri que não podia mais viver sem desfrutar da presença de Deus e, quando se punha sobre mim um período de escuridão, não conseguia repousar, nem estudar, nem cuidar de qualquer outra coisa que produzisse em mim a mínima satisfação ou me trouxesse o mínimo benefício. Precisava, antes, reabrir o caminho da comunhão entre mim e Deus.
Sentia-me realizado em minha profissão. Mas, conforme já relatei, quando me converti tudo que se referia a ela ficou em segundo plano e, para mim, tratar de assuntos jurídicos já não me dava nenhum prazer. Recebi insistentes convites para advogar causas nos tribunais, porém, recusava-as sistematicamente. Não ousava confiar em mim mesmo em meio às emoções de um processo jurídico. Além disso, o próprio fato de conduzir as causas de outras pessoas parecia-me odioso e repugnante.
O Senhor ensinou-me naqueles primeiros tempos de minha experiência cristã algumas verdades muito importantes no tocante ao Espírito de oração. Logo depois de minha conversão, uma senhora da casa onde eu fora pensionista ficou muito doente. Ao contrário do marido, cristão professo, ela não era convertida. Certa noite, seu marido, que era irmão do dr. Wright, entrou em nosso escritório e disse-me: "Minha esposa não sobreviverá a esta noite!" Foi como se uma flecha atingisse meu coração. Senti algo como cãibras apertando-me nessa região do corpo. Veio sobre mim um fardo que me esmagava, uma coisa espasmódica em meu interior, cuja natureza não conseguia entender. E com essas sensações veio o intenso desejo de orar por aquela mulher. O peso espiritual era tão grande que saí quase imediatamente do escritório e fui para a casa de reuniões orar por ela.
Ali, enfrentei terrível luta, mas, não fui capaz de dizer muita coisa. Só conseguia gemer. Eram gemidos tão altos e profundos que me teria sido impossível emiti-los sem aquele terrível estado de pressão em minha mente. Permaneci um tempo considerável na igreja nesse estado mental, sem experimentar qualquer alívio. Voltei ao escritório, mas, nada era capaz de acalmar-me. Andava de um lado para outro na sala, como que agonizando. Voltei à casa de reuniões e passei pela mesma luta. Durante longo tempo, procurei colocar minha oração diante do Senhor, mas, por alguma razão, não conseguia expressá-la em palavras. Apenas gemia e chorava, sem dizer nada. Mais uma vez, voltei para o escritório e continuei sem tranqüilizar-me. E, pela terceira vez, voltei à casa de reuniões.
Dessa vez o Senhor concedeu-me força. Senti-me capacitado para lançar sobre ele o fardo e, em minha mente, alcancei a certeza de que aquela senhora não morreria e, ainda mais, que não viria a morrer em seus pecados. Retornei ao escritório, com a mente em perfeita calma, sentindo que já podia voltar para casa descansar. Na manhã seguinte, bem cedo, o marido daquela mulher entrou no escritório. Perguntei-lhe como ela estava passando e ele respondeu, sorrindo:
— Está viva e, ao que tudo indica, está bem melhor hoje.
— Irmão Wright, sua esposa não morrerá dessa doença, pode confiar nisso. E também não morrerá em seus pecados — retruquei.
Não sei como me foi dada essa certeza, mas, isso ficou tão claro para mim que não pairava em minha mente a mínima dúvida de que ela se recuperaria. Por isso falei assim àquele homem. Realmente, a mulher recuperou-se e, pouco depois, alcançou a firme esperança em Cristo. De início, não conseguia entender a experiência pela qual havia passado. No entanto, ao relatá-la a um irmão em Cristo, este disse-me: "Ora, isso é a dor de parto da alma". Uns poucos momentos de conversa com ele e a indicação de alguns textos bíblicos levaram-me a compreender do que se tratava.
Outra experiência que vivi pouco depois ilustra a mesma verdade. Falei aos crentes sobre certa jovem que fazia parte da classe de moços e do coro que eu regia e que não passara ainda pela experiência da conversão. O fato de ela ainda não ser convertida atraiu grandemente a atenção e gerou entre os cristãos muitos comentários. Ela era, por natureza, charmosa e muito esclarecida quanto às questões de fé, mas, permanecia em seus pecados. Um dos presbíteros da igreja fez um pacto comigo no sentido de fazermos dela assunto diário de oração — apresentaríamos seu nome diante do trono da graça a cada manhã, ao meio-dia e à noite, até que ela se convertesse ou viesse a morrer, ou até o dia em que não conseguíssemos mais cumprir nosso acordo.
Percebi que minha mente se ocupava muito e cada vez mais com aquela jovem, à medida que continuava a orar por ela. Entretanto, logo descobri que o presbítero que fizera o acordo comigo estava enfraquecendo em seu propósito. Nem por isso desanimei. Continuava a sentir-me cada vez mais importunado com a necessidade que aquela jovem tinha da conversão. Aproveitava todas as oportunidades para conversar claramente com ela a respeito da salvação.
Continuei a viver essa experiência algum tempo. Certo dia, à tarde, fui visitá-la, exatamente ao pôr-do-sol. Quando cheguei à porta de sua casa, pude escutar o grito de uma voz feminina, sons de luta e confusão. Fiquei em pé, esperando, até que tudo se acalmasse. A dona da casa veio abrir a porta trazendo na mão parte de um livro que, evidentemente, fora rasgado em dois pedaços. Estava pálida e muito agitada. Estendeu-me a parte do livro que tinha na mão e disse: "Sr. Finney, veja que minha irmã se tornou universalista!" Ela referia-se à jovem por quem estávamos orando.
Ao examinar o livro, vi que era uma obra escrita em defesa do universalismo. Sua irmã encontrara a jovem lendo o livro — até então, ela o lera em secreto — e tentara tirá-lo de suas mãos. Foi a luta pelo livro que ouvi quando cheguei. Fiquei sabendo que elas me tinham visto chegar à porta durante a briga. A jovem correra para seu quarto, no andar superior, levando na mão a outra parte do livro. Por esse motivo, não quis entrar. Senti um peso semelhante ao que desceu sobre mim quando fui informado da mulher que estava para morrer. A questão deixou-me abatido e em grande agonia. Enquanto voltava aos meus aposentos, a certa distância daquela casa, quase cambaleei sob o fardo que passei a carregar. Fui para o quarto e ali fiquei lutando e gemendo em agonia, sem poder emitir nenhuma palavra para expor o problema diante de Deus. Só conseguia gemer e chorar. A informação de que aquela jovem, em vez de converter-se a Cristo tornara-se universalista, chocou-me de tal modo que eu não conseguia mais interceder por ela.
Parecia haver trevas pairando sobre a questão, como se um muro fora levantado entre mim e Deus, no tocante a lutar pela salvação daquela jovem. Mas, até então, o Espírito da oração lutava dentro de mim com gemidos inexprimíveis. No entanto, fui obrigado a ir deitar-me naquela noite sem obter progresso algum. Tão logo raiou a luz da manhã, acordei e a primeira coisa em que pensei foi implorar, de novo, ao Deus da graça em favor daquela jovem. Imediatamente, saí da cama e coloquei-me de joelhos. No mesmo instante em que me ajoelhei, as trevas dissiparam-se, a questão inteira abriu-se em minha mente e Deus, em resposta à minha petição por ela, falou-me: "Sim! Sim!" Ainda que ele tivesse falado com voz audível, eu não teria ouvido e compreendido mais nitidamente aquela voz dentro da alma. Num instante, senti um grande alívio. Minha mente encheu-se de paz e alegria. Tive, então, a certeza de que a salvação daquela jovem estava garantida.
No tocante ao tempo de sua conversão, cometi um equívoco que, a propósito, não causara impressão em minha mente enquanto eu orava. Mesmo assim, esperava que ela se convertesse imediatamente. Porém, isso não aconteceu. Ela permaneceu em seus pecados vários meses. Mais adiante, falarei sobre sua conversão. No entanto, fiquei decepcionado ao ver que ela não se convertera imediatamente. Senti-me um pouco abalado, procurando saber se realmente eu havia vencido a batalha.
Pouco depois de minha conversão, o homem em cuja casa me hospedara durante algum tempo — um magistrado de grande influência local — foi profundamente convencido de que era pecador. Havia sido eleito membro do poder legislativo estadual e eu orava diariamente por ele e tentava convencê-lo a entregar seu coração a Deus. Sua convicção de pecado tornou-se muito profunda. Mesmo assim, dia após dia, ele prorrogava a decisão de submeter-se a Cristo. Por isso, não conseguia desenvolver a esperança real de salvação. Minha inquietação a respeito dele crescia mais e mais.
Certa tarde, alguns de seus amigos políticos tiveram uma reunião prolongada com ele. Ao anoitecer, procurei de novo apresentar a Deus o assunto, pois sentia que a conversão do magistrado era questão de urgência. Na minha oração, passei a ficar muito perto de Deus. Pelo que consigo lembrar-me, nunca senti tão íntima comunhão com o Senhor Jesus Cristo como naquela noite. A presença divina era tão real que fiquei banhado em lágrimas de alegria, de gratidão e de amor. Nesse estado mental, procurei orar em favor de meu amigo. No mesmo instante, porém, minha boca foi fechada. Descobri que era impossível orar uma só palavra a favor dele. O Senhor parecia dizer-me: "Não, não quero escutar!" A angústia apossou-se da minha mente. De início, eu pensava tratar-se de uma tentação. Mas, parecia que o Senhor me dizia: "Não me fale mais desse assunto". Aquilo foi mais doloroso para mim do que posso expressar. Era inexplicável.
Na manhã seguinte, conversei com meu amigo e, tão logo levantei a questão da submissão a Deus, ele disse-me: "Sr. Finney, não quero mais tocar nesse assunto, até que eu retorne do encontro que tenho com os membros do poder legislativo. Assumi com meus amigos políticos o compromisso de votar a favor de certas medidas incompatíveis com meu propósito de tornar-me cristão e prometi a mim mesmo não pensar mais no assunto até regressar de Albany".
Depois do que me acontecera na noite anterior, fugiu de mim o espírito de oração por ele. Tão logo aquele político me contou o que havia feito, compreendi tudo. Percebi que todas as suas convicções foram dissipadas e que o Espírito de Deus se afastara dele. A partir daquele momento, ele tornou-se mais relapso e endurecido do que nunca relativamente à fé. Assumiu seu cargo no poder legislativo e, quando regressou, na primavera, percebi que se tornara um universalista quase enlouquecido. Digo enlouquecido, porque, em vez de ter formado uma opinião a partir de qualquer evidência ou argumento, disse-me o seguinte: "Cheguei a optar pela doutrina universalista não porque a tenha encontrado na Bíblia, mas por ser uma doutrina oposta à mente carnal. É uma doutrina tão rejeitada e combatida que isso, para mim, prova que ela desagrada à mente carnal ou não convertida". Suas palavras deixaram-me atônito. E tudo mais que consegui saber acerca de suas opiniões era confuso e absurdo. Ele permaneceu no pecado, entrou em decadência e assim morreu, ainda agarrado à crença universalista.
CAPÍTULO IV
MINHA PRIMEIRA CONTROVÉRSIA COM MEU PASTOR E OUTROS EVENTOS EM ADAMS
Pouco depois de converter-me, fui visitar meu pastor e conversei longamente com ele a respeito da doutrina da expiação. Formado em Princeton, obviamente, ele defendia a doutrina da expiação limitada, isto é, a salvação oferecida apenas aos eleitos por Deus desde a criação do mundo (Ef 1.4). Nossa conversa durou quase metade do dia. Ele defendia o preceito de que Jesus sofrera o castigo que, literalmente, era imposto aos eleitos pela justiça retributiva. Objetei a essa doutrina, considerando-a absurda, posto que, nesse caso, Cristo sofrera o equivalente às infinitas misérias multiplicadas pelo número total de eleitos. Ele insistia em afirmar que essa era a verdade. Asseverava que Jesus satisfizera, literalmente, a justiça retributiva. Eu, ao contrário, defendia a idéia de que Jesus satisfizera apenas a justiça pública e isso era tudo o que o governo moral de Deus exigia.
No entanto, eu era ainda uma criança em teologia, um noviço em religião e em conhecimento bíblico. Mesmo assim, pude perceber que o pastor não baseava suas opiniões na Bíblia e falei-lhe nisso. Eu nada lera sobre o assunto, a não ser o que a própria Bíblia dizia a respeito do assunto. E aquilo que descobrira, eu interpretara da mesma forma em que teria compreendido passagens semelhantes num livro de Direito. Parecia-me que o pastor entendera os textos a respeito da expiação levando em conta uma teoria já existente. Nunca o ouvira transmitir em seus sermões as opiniões externadas naquele debate. Surpreenderam-me as posições tomadas por ele e procurei opor-me a elas o quanto me era possível.
Creio que ele ficou alarmado com aquilo que julgava ser apenas teimosia de minha parte. Para mim, a Bíblia ensinava com clareza que a expiação fora um ato extensivo a todas as pessoas, enquanto ele defendia que ela se limitava a apenas a uma parte da humanidade. Eu não podia aceitar essa opinião, já que não encontrava base bíblica para ela. O critério usado por ele na interpretação da Bíblia não coincidia com minhas opiniões. Eu julgava suas idéias pouco coerentes, sem a lucidez daquelas que eu costumava encontrar nos livros de Direito. Ele não apresentou nenhuma resposta satisfatória aos meus questionamentos. Perguntei-lhe se a ordem bíblica não era para que todos quantos ouvissem as boas novas da salvação se arrependessem, cressem no evangelho e fossem salvos.
Ele reconheceu que, de fato, era assim, mas, como poderiam crer e aceitar uma salvação que não fora providenciada para eles? Apesar de eu não estar acostumado a debates teológicos, naquela tarde meu pastor e eu discordamos e discutimos sobre as várias correntes de teologia, da Escola Antiga e da Nova, no tocante à doutrina da expiação, conforme aprendi em meus estudos teológicos subseqüentes. Não me lembro de ter lido uma única página sobre o assunto, a não ser o que se encontrava na Bíblia. Não ouvira nenhum sermão ou debate sobre o tema. Supunha, então, que o sr. Gale estabelecera uma filosofia própria, uma teoria que precisava ser mantida e, à luz dessa teoria, ele interpretava a Bíblia. Ele aproximava-se da Bíblia através da teoria dele.
Debatemos o assunto durante todo o meu curso de teologia, administrado por ele, que se mostrava preocupado com a possibilidade de eu não aceitar a fé ortodoxa. Acredito que estava convencido de minha conversão, mas, desejava ardentemente que eu me mantivesse dentro das rigorosas linhas da teologia de Princeton. Estava convicto de que eu me tornaria ministro, esforçava-se para isso. Tentava persuadir-me de que o Senhor não abençoaria meus esforços no ministério e de que o Espírito Santo não confirmaria minha pregação, a não ser que eu pregasse a verdade.
Eu mesmo acreditava nisso. Para mim, entretanto, esse não era um argumento que pudesse fortalecer os pontos de vista dele, já que, em outra ocasião, ele afirmara não fazer idéia de ter sido alguma vez instrumento para a conversão de um pecador. Eu nunca o ouvira pregar especificamente sobre a doutrina da expiação. Penso que receava apresentar diante da congregação seus conceitos sobre o assunto. Estou certo de que sua igreja não compartilhava das opiniões que ele mantinha sobre a expiação limitada. Depois dessa ocasião, mantivemos várias conversas, não só a respeito da expiação, mas, também, sobre outras questões teológicas, às quais terei oportunidade, ainda neste histórico, de referir-me mais detalhadamente.
Já mencionei que, na primavera daquele ano, os membros mais antigos da igreja começaram a manifestar certo esfriamento em seu zelo pelo Senhor. Aquilo oprimia-me grandemente e, também, aos jovens convertidos. Naquela época, li num jornal um artigo intitulado "Um avivamento reavivado". O artigo narrava que, em certa localidade durante um inverno fora experimentado um avivamento. Com a chegada da primavera, o avivamento entrara em declínio, mas, por meio de orações sinceras pela continuação do derramamento do Espírito, o avivamento foi poderosamente reavivado. A leitura do artigo levou-me a chorar copiosamente.
Na ocasião, eu morava como pensionista do sr. Gale. Levei o artigo para que ele o lesse. Senti-me tão dominado pela certeza da bondade de Deus em ouvir e atender as orações e pela convicção de que Deus ouviria e atenderia às orações feitas em prol do avivamento de sua obra em Adams que entrei na casa chorando em voz alta, como uma criança. O sr. Gale pareceu surpreendido com meus sentimentos e com a confiança que eu expressava que Deus reavivaria sua obra. O artigo não o impressionou da maneira em que impressionou a mim.
No encontro de jovens que se realizou a seguir, propus que empreendêssemos uma campanha de oração em nossos aposentos pelo avivamento da obra de Deus — cada um de nós deveria orar três vezes ao dia: ao raiar do sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol — e mantivéssemos esse plano durante uma semana, reunindo-nos, então, para decidir o que mais deveria ser feito. Nenhum outro meio foi empregado nessa busca pelo avivamento da obra de Deus. No entanto, o Espírito de oração foi imediatamente derramado de modo maravilhoso sobre os jovens convertidos. Antes daquela semana chegar ao fim, tomei conhecimento de que alguns jovens, ao tentar cumprir seu período de oração, sentiram-se totalmente sem forças, não conseguindo manter-se de joelhos sequer. Alguns permaneceram prostrados no chão, orando com gemidos indescritíveis e pedindo o derramamento do Espírito de Deus.
O Espírito foi derramado e, antes que a semana terminasse, as pessoas aglomeravam-se para participar nas reuniões. Havia tanto interesse em buscar o poder do Espírito que, penso eu, nada superou o entusiasmo revelado durante todo o tempo em que se deu o avivamento. Entretanto, é triste ter de reconhecer que, nesse mesmo período, um pecado foi cometido por alguns dos membros da igreja, pecado que resultou em grande mal para eles.
Tomei conhecimento de que um número considerável de membros antigos da igreja oferecia resistência ao novo movimento surgido e propagado entre os jovens convertidos. Parecia que tinham receio de perder alguma coisa com o entusiasmo dos jovens. Não sabiam como interpretar o movimento e julgavam que os jovens convertidos eram demasiadamente presunçosos e não se mantinham em seu devido lugar, sentindo-se, às vezes, no direito de exortar os membros mais antigos. Essa atitude acabou por entristecer o Espírito de Deus. Após minha saída de Adams, o entusiasmo pela religião começou a arrefecer. Não demorou muito e o irmão Gale foi demitido do ministério, por motivo de saúde. Foi morar num rancho, no condado de Oneida, NY, no Oeste, a fim de restaurar a saúde.
Dentro de pouco tempo começaram a surgir dissensões entre os membros mais antigos da igreja. As divergências acabaram por provocar grandes danos entre aqueles que resistiam ao avivamento. Os jovens conseguiram resistir bem. Pelo que eu saiba, eram, quase em sua totalidade, cristãos convictos e produtivos.
Na primavera daquele ano, passei a receber orientação do presbitério, como candidato ao ministério de evangelização. Alguns dos presbíteros insistiam em que eu fosse estudar teologia em Princeton, mas, recusei. Quando quiseram saber a razão de minha recusa, disse-lhes que minhas condições financeiras não o permitiam. Mas eles se prontificaram a arcar com as despesas. Continuei, porém, recusando-me a ir e, quando insistiram em saber o motivo, respondi-lhes com clareza que não me submeteria à influência que eles haviam recebido. Revelei-lhes minha plena certeza de que eles haviam sido educados erroneamente e que, por isso, não satisfaziam, de modo nenhum, o padrão que eu tinha como ideal para um ministro de Cristo. Relutei em fazer-lhes essa revelação, mas, não me era possível ser honesto sem dizer-lhes aquilo. Nomearam meu pastor, o sr. Gale, para supervisionar meus estudos. Ele permitiu-me usar sua biblioteca e disse que me daria toda a orientação necessária. Mas, no tocante ao seu papel de professor, as aulas não passavam de controvérsia.
O sr. Gale sustentava a doutrina presbiteriana do pecado original, ou seja, o ensinamento de que a constituição humana é moralmente depravada. Sustentava, ainda, a idéia de que o homem é totalmente incapaz de satisfazer as condições impostas pelo evangelho: arrepender-se, crer ou fazer o que é exigido por Deus; que, mesmo sendo livre para praticar todas as formas de mal e capaz de cometer qualquer quantidade de pecado, o homem não tem capacidade para praticar tudo o que é bom; que Deus condenara os homens por terem uma natureza pecaminosa e, por causa disso e de suas transgressões, eles mereciam a morte eterna e estavam sob condenação. Gale pregava, também, que as influências do Espírito de Deus na mente humana eram físicas, que estas agiam diretamente sobre a substância da alma e que os homens agiam passivamente na regeneração. Resumindo, ele sustentava todas as doutrinas que logicamente advêm do fato de uma natureza pecaminosa em si mesma.
Eu não podia aceitar tais doutrinas. Não conseguia acolher as opiniões do sr. Gale a respeito de expiação, regeneração, fé, arrependimento, escravidão da vontade ou de doutrinas afins. Mas, quanto a essas opiniões ele era bastante tenaz e, às vezes, parecia muito impaciente, porque eu não as ouvia sem questionar. Insistia em dizer que, se eu continuasse meu raciocínio sobre o assunto, provavelmente acabaria tornando-me um ímpio. Em seguida, fazia-me lembrar de que alguns dos alunos que haviam estudado em Princeton haviam-se tornado hereges por insistir em manter o próprio raciocínio a respeito do assunto, negando-se a aceitar a Confissão de Fé, bem como os ensinamentos dos teólogos daquela escola. Além disso, o sr. Gale advertia-me repetidas vezes e com muito sentimento, que eu, como ministro, nunca serviria para nada a não ser que abraçasse a verdade, isto é, o que ele ensinava e acreditava ser a verdade.
Estou certo de que me mostrava completamente disposto a acreditar nos ensinos encontrados na Bíblia, e revelei-lhe isso. Tivemos muitos e prolongados debates. E, freqüentemente, eu saía do gabinete deprimido e desanimado, dizendo comigo mesmo: "Aconteça o que acontecer, não poderei aceitar essas opiniões. Não posso acreditar que elas sejam ensinadas na Bíblia". E, várias vezes, cheguei a pensar em abandonar tudo, em desistir do ministério.
Na igreja, havia um único membro com quem eu me abria livremente sobre o assunto. Era o presbítero Hinman, homem de oração e muito piedoso. Fora educado segundo os conceitos de Princeton e sustentava as doutrinas rígidas do calvinismo. No entanto, depois que ele e eu começamos a manter conversas freqüentes e prolongadas, Hinman convenceu-se de que eu tinha razão e passou a visitar-me regularmente, a fim de orarmos juntos. Incentivava-me a prosseguir nos estudos e ajudava-me a enfrentar as polêmicas com o irmão Gale, fazendo-me firmar a decisão de pregar o evangelho, acontecesse o que acontecesse. Várias vezes, quando eu voltava deprimido do gabinete do irmão Gale, o presbítero Hinman acompanhava-me até meu quarto e, às vezes, ficávamos até tarde da noite rogando a Deus que nos desse luz e forças e nos enchesse de fé para que pudéssemos aceitar e realizar sua perfeita vontade.
O velho presbítero morava a uns cinco quilômetros da aldeia e costumava ficar comigo até as dez ou onze horas da noite, tendo de voltar a pé para casa. Um ancião muito querido! Tenho motivos para acreditar que ele orava por mim diariamente. Depois que assumi o ministério, enfrentei muita oposição por causa de minha mensagem — o que, no momento oportuno, terei oportunidade de relatar — e, quando encontrava o presbítero Hinman, ele costumava dizer: "Minha alma sente tamanho peso de responsabilidade pelo seu ministério que oro em seu favor de dia e de noite. Mas tenho certeza de que Deus o ajudará. Continue assim, irmão Finney e o Senhor lhe dará livramento!"
Certa tarde, o sr. Gale e eu havíamos conversado durante longo tempo sobre a doutrina da expiação, e chegou a hora de comparecermos a uma reunião. Continuamos a conversa até chegarmos ao lugar do evento. Como chegamos antes do início dos trabalhos, havendo poucas pessoas no local, continuamos a conversar. As pessoas foram chegando e, ao entrarem, sentavam-se e escutavam atentamente o que dizíamos. Nossa discussão era séria e tenho certeza de que se desenvolvia num espírito cristão. À medida que chegavam, os membros da igreja mostravam-se cada vez mais interessados no debate. Quando dissemos: "É hora de parar, para que possamos começar a reunião", eles imploraram-nos com sinceridade que continuássemos o debate e que este fosse o nosso culto. Assim fizemos e, a meu ver, foi muito proveitoso para os presentes. Estou certo de que receberam permanente edificação a respeito de algumas das questões.
Eu estudava teologia havia alguns meses, quando a saúde do sr. Gale piorou a ponto de ele não conseguir mais pregar. Então, um ministro universalista assumiu a igreja e passou a promulgar suas doutrinas. Algumas pessoas interessadas em fugir ao arrependimento e à verdade mostraram-se dispostas a ouvi-lo, enquanto outras mostravam-se confusas quanto aos conceitos bíblicos que haviam aprendido. Diante disso, o sr. Gale, juntamente com alguns presbíteros, expressaram o desejo de que eu pregasse sobre o assunto, para refutar os argumentos daquele ministro, cujo principal objetivo era, obviamente, demonstrar que o pecado não merecia castigos intermináveis. Colocava-se violentamente contra a doutrina do castigo eterno, considerando-a cruel e absurda. Deus é amor, dizia, então como poderia um Deus de amor castigar eternamente os homens? Certa noite, em um de nossos cultos, levantei-me e disse: "Esse ministro universalista defende doutrinas que são estranhas para mim. Não acredito que elas sejam ensinadas na Bíblia. Mas vou pesquisar o assunto e, se não puder provar que são falsas, eu mesmo me tornarei universalista".
Programei, então, um culto para a semana seguinte, no qual apresentei uma preleção em oposição às opiniões do ministro universalista. Os crentes ficaram um pouco assustados com a minha ousadia em dizer que eu mesmo me tornaria universalista se não pudesse comprovar que as doutrinas pregadas por ele eram falsas. Eu, porém, tinha a certeza de que poderia apresentar essas provas. Quando chegou a noite em que faria minha preleção, a casa de culto estava superlotada. Levantei a questão da justiça das penas eternas, tecendo considerações naquele culto e na noite seguinte. Dessa forma, acredito que a dúvida quanto à justiça das penas eternas foi completamente esclarecida na mente de todos os presentes. Ouvia-se dizer por todos os cantos que o argumento fora convincente. O povo mostrava-se surpreso com o fato de o sr. Gale nunca ter tratado do assunto a fim de proteger sua congregação contra o universalismo.
O próprio ministro universalista percebeu que a congregação estava convicta de que as doutrinas que pregava eram falsas e, por isso, passou a apresentar seus conceitos de outro ângulo. O sr. Gale, juntamente com os de sua linha teológica, sustentava que a expiação realizada por Cristo era o pagamento literal da dívida dos eleitos e que por meio dela ele sofrera exatamente o que estes mereciam sofrer. Desse modo, os eleitos eram salvos segundo os princípios da justiça exata, sendo que Cristo, no tocante a eles, cumprira plenamente as exigências da Lei.
O ministro universalista aproveitou-se dessa declaração. Tomando por certo que essa era a definição exata de expiação, bastava-lhe, agora, comprovar que a expiação fora realizada em favor de todas as pessoas. Ele queria demonstrar que todos, sem exceção, seriam salvos, porque a dívida de toda a humanidade havia sido literalmente paga pelo Senhor Jesus Cristo. Portanto, por causa da expiação, o universalismo baseava-se na própria justiça, pois, Deus não podia castigar com eqüidade aqueles cuja dívida já fora paga. Eu vi e os presentes também viram, que o ministro universalista colocara o sr. Gale numa posição delicada. Era, no entanto, fácil comprovar que a expiação fora feita em prol de toda a humanidade. E, se a natureza e o valor da expiação eram realmente como o sr. Gale sustentava, a salvação universal seria um resultado inevitável. Assim, a congregação foi levada outra vez ao erro. O sr. Gale pediu-me que continuasse com minhas preleções, refutando o universalismo. Disse entender que a questão fora resolvida na esfera da Lei, mas, que agora eu precisava contestar o argumento que o ministro apresentava na esfera do Evangelho. Respondi-lhe:
— Sr. Gale, não poderei fazer isso sem contradizer suas opiniões a respeito do assunto. Terei de deixá-las de lado. Não poderei oferecer nenhuma resposta à doutrina do universalismo com as opiniões que o irmão mantém a respeito da expiação. Se seu conceito sobre a expiação for correto, a congregação facilmente acabará acreditando que a Bíblia comprova que Cristo morreu por todos, pelo universo total dos pecadores. Portanto, a não ser que o irmão me permita corrigir suas opiniões a respeito da expiação, nada poderei dizer para contestar essa heresia.
O sr. Gale acrescentou:
— Bem, não podemos deixar que a situação permaneça como está. Você pode dizer o que quiser. Responda da maneira que achar melhor. Se julgar necessário, pregarei refutando o que você pregou.
— Muito bem! — respondi. — Basta que eu possa externar minhas opiniões e poderei responder ao ministro universalista. Depois o senhor poderá dizer o que quiser aos membros da igreja.
Em seguida, combinei a data da preleção. Preguei duas vezes sobre o assunto e creio que alcancei pleno êxito em demonstrar que a expiação não consiste no pagamento literal das dívidas dos pecadores, como sustentam os universalistas, mas que ela simplesmente torna possível a salvação de todos; que, por si só, não obriga Deus a salvar pessoa alguma; que não era verdade que Cristo sofrera exatamente a pena que deveria ter sido paga por aqueles em favor de quem ele havia morrido; que nada disso era ensinado na Bíblia e, portanto, não era verdade. Pelo contrário, Cristo morrera simplesmente para remover do caminho do perdão divino um obstáculo intransponível, a fim de permitir que Deus proclamasse uma anistia, o perdão geral e convidasse todos ao arrependimento, levando-os a crer em Cristo e a aceitar a salvação.
Demonstrei, também, que em vez de ter satisfeito a justiça retributiva e de ter sofrido exatamente o que os pecadores mereciam sofrer, Cristo apenas satisfez a justiça pública, honrando a Lei, tanto em sua obediência quanto em sua morte, tornando, assim, moralmente possível Deus perdoar o pecado de todos os que se arrependessem e cressem em Cristo. Defendi o conceito de que, na expiação, Cristo só fez o necessário como condição do perdão do pecado e não o que viesse a cancelar o pecado, no sentido de pagar literalmente as dívidas dos pecadores.
Assim, o ministro universalista recebeu a resposta às suas opiniões e cessaram ali os questionamentos relativos ao assunto. O mais notável, porém, é que as preleções levaram a uma experiência com Cristo a jovem citada por mim anteriormente, em favor de cuja conversão havia orado sinceramente e em intensa agonia. Esse fato deixou o sr. Gale atônito, pois ficou manifesto que o Espírito de Deus aprovara e abençoara minhas explicações sobre a expiação, apesar de ele haver argumentado que Deus nunca abençoaria semelhante conceito. Penso que o fato deixou-o muito confuso, procurando decidir se o ponto de vista que defendia seria ou não o correto. Numa conversa com ele, pude perceber que ficara surpreendido com o fato de minha idéia sobre expiação ter sido o instrumento para a conversão daquela jovem.
Depois de muitos debates com o sr. Gale no decurso de meus estudos teológicos, o presbitério finalmente foi convocado para reunir-se em Adams e proceder ao meu exame e, caso me aprovasse, conceder-me a licença para pregar o evangelho. Imaginei que durante o exame haveria severa discussão com os presbíteros. No entanto, eles mostraram-se consideravelmente brandos. Creio que a bênção manifestada em minhas conversas, os ensinos por mim transmitidos nas reuniões de oração e nas conferências e nas preleções tornaram-nos mais cautelosos, evitando qualquer polêmica, o que, em outras circunstâncias, com certeza teria ocorrido. No decurso do exame, evitaram formular perguntas cujas respostas possibilitassem discordância com suas opiniões.
Depois de me haverem examinado, votaram unanimemente pela concessão da licença. De modo inesperado para mim, perguntaram-me se eu aceitava a Confissão de Fé da igreja Presbiteriana. Eu nem sequer a havia estudado, pois essa obra — o catecismo da denominação — não fizera parte de meus estudos. Respondi que a aceitava pela substância de sua doutrina, dentro dos limites de meu entendimento. Imagino que tenha falado de modo a deixar claramente subentendido que não era minha pretensão saber muito a respeito. No entanto, respondi com honestidade, conforme o que conhecia da obra. Ouviram, também, os sermões de prova que preparei baseado nos textos que me haviam indicado. Fui aprovado em todas as partes normais do exame.
Nessa reunião, vi pela primeira vez o rev. Daniel Nash, conhecido como Pai Nash. Era membro do presbitério. Em Adams, uma grande congregação reunira-se para assistir ao meu exame. Cheguei um pouco atrasado e encontrei um homem em pé, no púlpito. Como imaginei, ele estava falando à congregação. Notei que olhou para mim quando entrei e para as outras pessoas quando estas entravam e buscavam assento. Logo que cheguei ao meu lugar e passei a escutar o que ele dizia, observei que estava orando. Olhei de novo e, surpreendido, vi que passava os olhos por toda a congregação ali reunida, como se estivesse dirigindo-se a ela, mas, na realidade estava orando a Deus. Obviamente, aquilo não me soava muito como uma oração. E, realmente, naquela época ele estava num estado de muita frieza. Mencionei aqui o nome do rev. Daniel Nash porque daqui em diante irei referir-me a ele com freqüência. No domingo seguinte ao meu ingresso no ministério, preguei a pedido do irmão Gale. Quando desci do púlpito, ele disse-me: "Sr. Finney, ficarei muito envergonhado se, por onde você passar, revelar que estudou teologia comigo". Essa atitude era típica dele e combinava com o que repetidas vezes me dissera. Por isso, pouco ou nada lhe respondi. Abaixei a cabeça, senti-me desencorajado e continuei a caminhar. Posteriormente, ele passou a considerar o assunto de modo muito diferente e revelou-me que bendizia ao Senhor pelo fato de, em todas as nossas controvérsias e em tudo que me dissera, ele não exercera a mínima influência sobre minhas opiniões. Confessou muito francamente haver errado no modo de falar comigo e de tratar-me e acrescentou que, se eu o tivesse escutado, teria-me deixado arruinar como ministro do evangelho.
A verdade é que a formação do irmão Gale para o ministério havia sido deficiente. Absorvera um conjunto de opiniões, tanto teológicas quanto práticas, que eram como uma camisa-de-força para ele. Realizaria bem pouco ou nada se mantivesse seus próprios princípios. Ele permitira que eu fizesse uso de sua biblioteca. Aproveitando o oferecimento, revirara totalmente os livros que ali havia, buscando estudar e esclarecer todas as questões que possivelmente sairiam na prova. Porém, quanto mais examinava os livros, mais insatisfeito me sentia. Estava acostumado às sucintas e lógicas argumentações dos juízes citadas nos livros de Direito. E, quando pesquisei em sua biblioteca os livros da Escola Antiga, nada encontrei que me satisfizesse. Não que eu quisesse opor-me à verdade, mas, os argumentos que eles apresentavam eram pouco sólidos.
Segundo me parecia, freqüentemente declaravam uma coisa e comprovavam outra. Faltava lógica na exposição das idéias. Finalmente, disse ao sr. Gale: "Se não existe nada melhor que aquilo que se encontra em sua biblioteca para sustentar as grandes doutrinas ensinadas pela nossa igreja, forçosamente terei de tornar-me um incrédulo". E, realmente, estou convicto de que, se o Senhor não me tivesse levado a constatar as falsas afirmações encontradas naqueles livros e a reconhecer que a verdade deve ser estabelecida segundo a Bíblia e se ele não se tivesse revelado a mim pessoalmente, de um modo que me era impossível duvidar da veracidade do cristianismo, eu teria caído no ceticismo.
No começo, por eu não ser teólogo, minha atitude diante das opiniões do sr. Gale eram mais negação ou recusa que propriamente um choque com alguma teoria minha. Eu costumava dizer-lhe: "Seus pontos de vista não podem ser comprovados. Eles carecem de provas". Assim eu pensava e assim continuo a pensar. Mas, ele insistia em que eu cedesse diante das opiniões dos sábios e virtuosos homens que, após muitas considerações, haviam chegado às conclusões que regiam sua corrente teológica. Dizia não ficar bem para mim, um jovem que se havia preparado para a profissão jurídica e sem nenhuma educação teológica, colocar-me contra as opiniões de grandes teólogos, cujos conceitos estavam expostos em sua biblioteca. Ele insistia em dizer que, se eu persistisse em satisfazer a razão, questionando aquelas doutrinas em vez de aceitar as opiniões de homens que sabiam mais que eu, acabaria tornando-me um infiel. As decisões da igreja deviam ser respeitadas por um jovem como eu, cuja obrigação era submeter minhas idéias ao julgamento de outros que demonstravam ter sabedoria superior à minha.
Eu não podia negar que os argumentos do sr. Gale eram bastante fortes. Mesmo assim, sentia-me totalmente incapaz de aceitar doutrinas na forma de dogmas. Ainda que tentasse, tal coisa ser-me-ia impossível. Não estaria sendo honesto nem respeitando a mim mesmo caso agisse assim. Depois de conversar com o sr. Gale, eu ia quase sempre para meu quarto e passava um longo tempo de joelhos diante da Bíblia. Na realidade, durante aquele período de constantes discussões com o sr. Gale, dediquei-me especialmente à leitura bíblica e à oração, implorando ao Senhor que ele me revelasse sua vontade no tocante àquelas questões. Não tinha a quem recorrer senão diretamente à Bíblia e à minha consciência. Lentamente, minhas opiniões foram tomando forma. De início, era impossível aceitar as opiniões do sr. Gale. Em seguida, fui formando conceitos próprios, aceitando, da parte dele, apenas os que inequivocamente eram ensinados na Bíblia.
Conforme já ressaltei, não eram apenas as opiniões teológicas do sr. Gale que enfraqueciam sua capacidade de trabalho: suas opiniões práticas eram igualmente errôneas. Daí ele prever que minhas opiniões acarretariam todos os tipos de males. Em primeiro lugar, dizia ele, o Espírito de Deus não aprovaria nem cooperaria com meus esforços; em segundo lugar, quando eu me dirigisse às pessoas, conforme lhe dissera que faria, elas não me ouviriam e ainda fugiriam de mim; em terceiro lugar, ainda que elas viessem assistir às minhas pregações, logo se mostrariam decepcionadas e se afastariam; em quarto lugar, a não ser que eu escrevesse meus sermões, eu tornar-me-ia obsoleto e não despertaria a atenção dos ouvintes; em quinto lugar, ao invés de unir, eu dividiria o povo e faria com que as congregações se dispersassem sem as edificar.
Na realidade, vi que todas as opiniões do sr. Gale eram quase totalmente opostas às que eu considerava deveres de ministro. Não era de admirar que se mostrasse chocado com minhas opiniões e propósitos quanto à pregação do evangelho. Com a formação que ele recebera, não poderia ser diferente. Gale propunha-se ir até as últimas conseqüências para manter suas opiniões, mas, na prática, os resultados que ele obtinha eram poucos. Eu prosseguia com meus conceitos e, com a bênção de Deus, os resultados que alcançava eram o inverso dos previstos pelo sr. Gale. Quando esse fato ficou evidente, o ministério dele enfraqueceu. Os resultados alcançados por meu trabalho puseram por terra suas esperanças como cristão, antes que ele viesse a ser um verdadeiro ministro do evangelho, como relatarei mais tarde.
Havia, no entanto, outra deficiência na formação do irmão Gale, a qual eu considerava da maior gravidade. Ainda que ele fosse convertido, não recebera a unção divina do Espírito Santo, o que teria feito dele um poderoso elemento para a conversão de almas, no púlpito e na sociedade. Não recebera o batismo com o Espírito Santo, o que é indispensável para o sucesso ministerial. Quando Cristo comissionou os apóstolos a pregar, ordenou que permanecessem em Jerusalém até serem revestidos do poder do alto. Esse poder, como todos sabem, era o batismo com o Espírito Santo derramado sobre eles no dia de Pentecostes, uma qualificação indispensável para o êxito do ministério.
Sempre acreditei que esse batismo não era simplesmente o poder para a operação de milagres. O poder de operar milagres e o dom de idiomas foram dados como sinais para atestar a realidade da comissão divina. Mas, o próprio batismo era a purificação vinda de Deus, era a plenitude do Espírito Santo para os que o recebiam, outorgando-lhes iluminação do Senhor, que os enchia de fé, amor, paz e poder. Dessa maneira, suas palavras, vivas e eficazes, mais cortantes que uma espada de dois gumes, penetrariam profundamente o coração dos inimigos de Deus. Essa é uma qualificação indispensável ao ministro que des