"O Senhor te guiará
continuamente, e te fartará até em lugares áridos, e fortificará
os teus ossos; serás como um jardim regado, e como um manancial,
cujas águas nunca falham", Is.58:11
PREFÁCIO
TUDO ISTO É VERDADE QUE NÃO CONSIGO EXPRESSAR
Já me achei sorrindo sem
sorrir, já vi meu coração rir sem que minha face se mexesse
E isso acontece de forma permanente e inabalável, já quase de maneira inconsciente e natural
Pois minha alegria é grande demais para ser vista, meu amor do tamanho que não cabe numaexpressão
Meu olho brilha, minha face tem luz que não vejo e não se exalta, que não ouço por fora
Meu lamento se foi e não sei para onde, meu Deus chegou e sei onde está e porque está
Havia um vazio em mim do qual nem me lembro mais, existia uma dor que já não sei como é
Veio o amor, entrou em mim de forma abundante e chegou para ficar:
Ora digam-me se vou esperar para o céu limpar toda minha lágrima? Qual lágrima?
Sei que tenho vida, pois
a Vida sabe que me tem e ela sabe e fala disso dentro de mim
Minha vida não depende de nada, minha vida não depende de meu casamento, felicidade ou dor
Mas meu casamento e felicidade são quem dependem de minha vida, da que eu a tenho dentro de mim.
Posso dizer que também falei "Em Tuas mãos entrego meu espírito" e entreguei,
Pois entreguei mesmo sem saber o que fazia, como há quem não entregue pensando, achando que o faz
Minha dor sumiu e nada mudou fora de mim, todos os objectos cortantes que magoavam em nada mudaram
Mas meu coração mudou, isolou-se da morte e da dor que ainda assolam lá fora, mas não mais em mim
De Deus fiz meu abrigo e digo "Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu
aguilhão?" 1Cor.15:55.
Tudo que falo aqui é verdade, só que tão grande que fica sem expressão e com isso me acham mentiroso
Por isso posso apenas falar pouco, viver muito, amar muito, sendo que meu amor não termina mais
E não temo não poder ser amanhã mais do que já sou hoje: um cântico com menos expressão e mais amor
Se não amo e expresso porque não amo, sendo hipócrita, serei amado e entendido dos que não amam
Se não me expresso porque amo para além do que consigo expressar
Serei apenas amado dos que amam e não só a mim, mas dos que amam porque têm amor por expressar
Assim, falarei, sim, mas quando posso amar, sorrirei mas nem sempre de forma que se veja
Amando sem esforço, vivendo sem a dor de ser ofendido, porque a vida é agora em mim, como é lá no céu
Não mais chorarei a não ser por falta de amor para dar, por falta de vida que não sei como expressar.
Meu Deus, que bem que me fizeste, buscando-me sempre que não te buscava, achando-me sempre primeiro
Vivia longe da vida vivendo para mim e nada tinha para dar a não ser dor que também não sabia expressar
Agora sei o que é Vida que busca sem ser amada; ela não depende de mim mas sou eu quem dela depende.
Tudo que sou, tudo que sei, tudo que dou é Vida, porque Vida achei e com ela me reconciliei como ela é
Não mais preciso fingir a alegria, pois ela é enorme demais para a buscar e achar pela via do fingimento
Não mais preciso segurar a felicidade, pois a vida é minha ocupação permanente, todo meu envolvimento.
Quem busca felicidade não busca Vida, quem acha Vida achou felicidade também
Meu cântico é de amor que não sei expressar, por meu Deus que não sei ver porque não cabe em minha visão
Tudo nos é acrescentado, tudo nos é dado, desde que busquemos e achemos essa Vida de Quem tudo é.
JOSÉ MATEUS
CAPÍTULO 1
Nasci em Angola. Sou filho de pai português e de mãe descendente de
Sul-Africanos. Não era católico praticante, mas alguém que temia
qualquer coisa que fosse sobrenatural; temia porque não sabia o que lá
se passava e tudo o que tivesse a ver com Deus ou bruxedo fazia-me
estremecer. Como não sabia distinguir entre Deus e bruxedo, não sabendo
que sempre foram coisas opostas, pensava inconscientemente que se
tratava do mesmo fenómeno.
Tive um pai fabuloso, uma mãe que me criou dentro do melhor que sabia e
que me carregou nos seus braços desde criança. Lembro-me das muitas
vezes que o meu pai me punha a conduzir ao seu colo quando tinha entre
dois a seis anos de idade. Raras foram as vezes em que ele não me punha
ao seu colo quando surgiam oportunidades e locais apropriados, isto para
que me pudesse sentir um grande condutor. A minha mãe, muito bonita,
punha-se sempre a ver o que os dois homens da família estavam a fazer,
não fossem eles distrair-se por qualquer motivo!
Assim, em criança era muito vivaço, naturalmente traquina e travesso.
Jogava futebol, tinha alguma aptidão para os estudos e coroava com êxito
muito daquilo que empreendia, sendo o futebol a área em que mais me
destacava. Recordo-me que estava sempre a jogar com e contra equipas
compostas de outros jovens muito mais velhos que eu. Era audaz no jogo e
despontava naturalmente e isso fazia os mais velhos quererem sempre que
integrasse as suas equipas. Tal ocorrência também me trazia muitos
sonhos à flor da pele, pensando eu que um dia seria como o Eusébio ou o
Pelé. Naturalmente, também me sujeitei aos muitos vícios das crianças e
isto desde muito cedo. Fui bastante feliz até aos meus dez anos de
idade. Foi nesta tenra idade que sofri a primeira das muitas, grandes e
bruscas mudanças que sempre foram ocorrendo ao longo da minha ainda
curta vida.
Num triste Sábado, fui atropelado por uma bicicleta quando me deslocava
para os treinos de futebol, na escola e onde nunca chegaria. Este foi o
primeiro aviso de que a minha vida iria mudar e desde muito cedo se vê
uma Mão poderosa por detrás de tudo o que me ocorria - e hoje tudo se
faz por reverter a meu favor. Foi desde esse infeliz dia que passei a
fazer visitas regulares a médicos, mais tarde a bruxos e outros que
fosse. Logo de seguida - umas poucas semanas depois - comecei a
sentir-me mal, embora não sabendo ao certo porquê. A situação
agravara-se com uma brusca broncopneumonia que me levou a consultar uma
médica que tinha acabado de finalizar o seu curso de medicina, a qual
ainda não sabia muito bem o que receitar. Isto levou a que tudo se
agravasse ainda mais. Esta médica, estagiaria, consultou alguns livros
enquanto me auscultava e depois de muito ler e pouco consultar, deu-me
uma prescrição de medicamentos que só achamos normal enquanto não fomos
à farmácia. Acertou no diagnóstico, mas assustou a minha pobre mãe com a
quantidade de caixas de medicamentos com que saímos da farmácia, onde
nos deslocamos para aviar aquela simples prescrição. O ter acertado no
diagnóstico reputo por bom, porque olhando para a receita penso que
poderia ter sido pior: quase foi preciso um carrinho de mão para
transportar toda a minha 'cura' para o carro e deste para casa!
Uma simples reunião entre mãe e mãe, de próprio a próprio, deu logo para
perceber que me iria sujeitar a uma outra consulta por outra médica que
na altura morava perto de nossa casa. Pelo sim, pelo não, a minha mãe,
que sempre foi um género de 'farmacêutica' por causa da sua 'aptidão'
natural para distribuir medicamentos a quem quer que se sentisse
'doente', pôs logo de parte cerca de metade da receita que havia aviado
na farmácia local, não fosse esta medica enganar-se também. Quanto à
outra metade, levou-a para mostrar na consulta. Para espanto de todos,
embora o diagnóstico fosse irremediavelmente confirmado, o receituário
foi substancialmente reduzido para provavelmente menos de metade das
muitas caixas que a minha mãe ousara carregar até esta médica - quer
dizer que fui tratado apenas com cerca de um quarto daquilo que
originalmente me havia sido prescrito. Não que fosse esse o grande
dilema: para mim só contava que tinha de levar várias injecções, não sei
bem quantas vezes ao dia. Bom era terem sido substancialmente reduzidas
as picadelas que ia levar, mas, quanto a mim, resolveria a questão duma
outra maneira muito mais simples e menos dolorosa! Não sei se no entanto
sobreviveria a tal feito! E como os médicos sabem sempre mais, mesmo
quando nos furam a pele, fui levando injecções durante o que para mim
seria uma eternidade, eternidade essa que se prolongou muito mais porque
estava proibido de jogar futebol, de correr e de fazer qualquer esforço
físico. Seria mais por essa razão que não "via" o dia bater-me à porta
em que me deixassem voltar à minha vida normal. Mas isso nunca mais iria
acontecer, por muito que alguém quisesse, porque, algum tempo depois,
ocorreu algo que iria determinar todo o meu futuro.
Os meus pais estavam fora, numa fazenda de gado que possuíam no sul de
Angola, a uns bons quatrocentos quilómetros da cidade onde vivíamos. Eu
estava na casa da minha avó materna por causa da escola, sentindo muito
a sua ausência. Certo dia, estava a brincar com os meus primos na rua e
comecei a sentir uma ligeira dor numa das nádegas, no sítio onde havia
levado injecções. Naquele momento não dei muita importância a esta
ocorrência, mas, passado uma hora ou duas (não sei ao certo), a dor
começou a ser quase insuportável. Minuto a minuto foi-se intensificando
de tal modo que havia mesmo deixado de ser despercebida. Fui ter com a
minha avó e queixei-me. Passado ainda mais algum tempo, quando já era
noite e os meus primos já se haviam ido embora, a dor não só resolveu
molestar-me ainda mais, como passou a banquetear-se nas duas nádegas -
uma já não lhe chegava. O inferno por que passei nas horas seguintes,
são dos momentos mais horríveis de que tenho memória. De tão intensos
que foram que me recordo hoje muito mal de quanto tempo passei aos
gritos em busca de alívio - tenho uma noção de que me parecia uma
eternidade daquelas em que o tempo passava por mim impiedosamente
despercebido, como se nunca mais fosse acabar aquele martírio.
Nunca houve uma explicação plausível para o que ali se passou comigo -
para mim foi simplesmente um inferno do qual eu não via chegar o fim.
Lembro-me de ter a sensação de me faltar a respiração e de me abrirem as
janelas, tentando que assim obtivesse milagrosamente algum alívio com o
ar fresco daquela noite de tormentos inexplicáveis. A minha pobre avó já
não sabia o que fazer. Como único recurso levou-me para o hospital local
por volta das dez da noite. Mas imagine-se quem iríamos encontrar lá
para me consultar: pois, nem mais nem menos do que a médica que foi aos
livros ler o que me havia de receitar, aquando da broncopneumonia. Já se
imaginaram a pensar estarem a ser consultados por uma má feiticeira que
resolvia sempre o dilema consultando os seus livros para ver que mal
poderia extrair destes para melhor nos atormentar? Foi o que ocorreu,
pois, para não ser muito diferente da última e única consulta que me
havia feito, foi outra vez aos seus livros, que mais pareciam de magia,
tentar obter um outro conselho para me poder oferecer algum alívio do
inferno pelo qual passava. Se já estava num inferno mesmo, nada mais que
colorir o mal com uma consulta com alguém que não destoasse em nada do
ambiente que fez por me estar a rodear. Lembro-me, porém muito
vagamente, do resto da consulta em si. Recordo-me apenas que fui para
casa depois de ter sido medicado (não sei bem com o quê) e de ter ido
para a cama da minha mãe, deitando-se o meu tio ao lado. Todos os meus
pedidos naquela agonia me eram concedidos e como gostaria muito de me
deitar na cama de minha mãe que estava fora há tempo demais para mim,
ninguém se sentia com vontade de não aceder àquela chantagem envolta em
lágrimas. Pensava talvez que o cheiro da minha mãe, ou seu travesseiro
apenas, bastariam para me dar o único consolo que buscava naquele
momento, porque os outros não conseguiriam fazer-me imaginar perto dela.
Dormi durante algum tempo, para tornar a acordar com dores muito piores
do que as anteriores. Fui de novo levado para o hospital um pouco à
força, porque sabia que iria ser atendido pela pessoa que já conhecia.
Mas desta vez foi diferente, porque esta 'bruxa' má foi ao seu guisado
desencantar um enfermeiro que me administrou uma dose de morfina em cada
nádega. Penso que a dose daria para drogar qualquer "super-cavalo" e eu,
como criança que era, senti logo os seus efeitos - foi a única vez que
passei por drogado na minha curta vida!
Aplicaram-me uns pensos estranhos nas nádegas e pensei que iria para casa
logo de seguida. Mas não, porque, contra o que mais esperava e
desejaria, resolveram que iria ficar ali debaixo do olho maligno daquela
que eu consideraria como uma fada malévola. Deram-me ordem de
internamento. Lembrando-me porém que o meu pai se havia recusado
deixar-me internado naquele hospital quando tive a pneumonia e visto a
chantagem das minhas muitas palavras em choro não estarem a resultar
desta vez, tentei desesperadamente fugir dali. Se me tivessem deixado
correr, muito dificilmente me apanhariam para me aprisionarem na casa
daquela senhora que lia nos livros o mal que me havia de infligir e que
cheirava muito a éter. Mas como para me internarem os livros não traziam
qualquer sugestão em contrário, agarraram-me, levaram-me e puseram-me em
cima duma maca com rodas, pois as camas do hospital estavam todas
lotadas. Tentei calar-me para passar despercebido e, recordo-me que
quando me largaram por breves momentos, por os ter levado a pensar que
me havia acalmado, saltei da maca e tentei pôr-me a milhas dali.
Contudo, depois de uns poucos passos dei comigo derreado no chão, sem
forças para me tornar a erguer. Poderia ser da morfina administrada, mas
o que era certo é que estava lentamente (ou muito rapidamente!) a perder
as forças nas pernas. A ultima coisa de que me recordo antes de sucumbir
sob o efeito da droga, foi de estar a ser preso à dita maca com aqueles
cintos de couro característicos das mesmas e que são usados para segurar
lá os pacientes nas correrias pelos corredores dos hospitais, coisa que
muitas vezes me haveria de transportar ao longo dos intensos anos que se
seguiram de entradas e saídas de hospitais. O meu futuro estava, pois,
determinantemente traçado por algo que eu nunca havia escolhido e o qual
nunca me traria quaisquer conclusões sobre as razões de tudo aquilo. Não
me dera oportunidade de escolher algo diferente do infortúnio.
Horas mais tarde, suponho, despertei de um pesado sono para entrar num
pesadelo que ainda hoje se encontra fresco na minha memória. Penso que
acordei a dizer que queria ir à casa de banho. Mas também penso que a
simples ideia com que adormeci ainda fervilhava na minha mente, pois a
droga não me havia permitido fugir dali; se foi uma desculpa para tentar
uma nova fuga ou não, não sei precisar ao certo. Porém aconteceu que o
enfermeiro dos meus pesadelos (aquele que havia saído da panela da magia
daquela pessoa de quem eu passei a ter muito medo), apareceu para me
ajudar a sair da maca onde me havia prendido. Levantou-me e retirou-me
daquela cama horrível e dura (da qual ainda me lembro, embora com muita
dor). No entanto, ao retirar-me dali e tentar colocar os meus pés no
chão, entrei num vazio repentino, sendo sugado para o chão onde caí
estrondosamente sem saber muito bem porquê. Ficaram todos espantados a
olhar para mim naquela meia escuridão do quarto sem saberem muito bem o
que fazer, nem tão pouco o que havia ocorrido. O enfermeiro, com olhar
incrédulo, ficou estupefacto a olhar para mim. Passados alguns breves
instantes, tentou erguer-me de novo ao passar-lhe aquele choque inicial
de puro pasmo. A verdade era mais aterradora para eles do que para mim,
porque eu poderia pensar como defesa que estaria ainda a sonhar ou a
passar por um pesadelo que logo passaria. Mas para eles não haveria
alternativa senão conciliarem-se com a vista daquela horrorosa
realidade. Descobrimos que perdera por completo as forças nas pernas. De
nada valiam os muitos esforços para tentar remediar a questão
incontornável que perante todos se deparou. Perdi toda e qualquer
sensibilidade (que mais tarde recuperei) e debaixo de mim apenas havia
um pequeno abismo com fundo duro que me engolia sempre que tentavam
pôr-me de pé. O enfermeiro ainda gritou comigo em desespero de causa
para que eu tentasse segurar-me firme nas minhas pernas. O seu grito
fez-me ver que realmente estaria acordado, pois o eco deste assustou-me
tanto que só não me poria em pé se não pudesse! Deitaram-me de novo e
adormeci para aquilo que não seria apenas um pesadelo do qual me
esqueceria ao acordar.
Pela manhã estava rodeado de vários médicos mesmo antes de abrir os
olhos, creio. Por cada olho que abria, via a silhueta de dois ou três e
quando os esfreguei vi aparecerem mais uns enfermeiros com uma agulha de
mais de dez centímetros numa seringa. Esta seria usada para que me fosse
extraída medula ou algo assim, para fins de análises. Estava paralisado
da cintura para baixo e ninguém sabia muito bem porquê. Fenómeno ou
negligência médica, ninguém sabia. Também nunca chegariam
verdadeiramente a conseguir desvendar todo aquele imbróglio panorâmico
que perante todos se evidenciava já como uma certeza aterradora e sem
volta. Seguiram-se análises e mais análises das quais nada se concluiu:
não acusavam nada de nada. Durante alguns dias, ou mesmo semanas, passei
por dezenas de picadelas e agulhas, testes e mais testes partir dos
quais nunca se conseguiu concluir nada, nem desvendar a causa deste
filme de horror que lentamente se começava a prefigurar como
irreversível. E foi assim que comecei a viver as coisas: como um filme
de horror que assistia de corpo e alma, mas que na realidade não se
tratava de nada do género. Pensei que não estava mesmo a viver tudo
aquilo, mas as evidências logravam contradizer-me sempre que tinha de
ser carregado para onde achassem que deveria ir. Como vivia apenas como
protagonista num filme, a imaginação é que ditava que a 'realidade'
fosse outra. E assim começou a minha luta pela sobrevivência e pela
busca de verdade, porque a minha imaginação atraiçoava-me sempre que
queria correr, jogar futebol ou brincar normalmente. Esta foi no entanto
sempre uma mestre aliada para a vida futura que se adivinhava agreste.
Não terá sido necessariamente por causa de tudo isto, mas penso que,
aqui sim, tudo começou rumo à vida que até então desconhecia e da qual
pretendo falar adiante. O que encontrei mais tarde foi vida sem mácula e
assustadoramente bela e real - antes assim! Mas já lá irei.
Passei muito tempo no hospital, já na presença dos meus pais. Decorrido
algum tempo, julgo que cerca de alguns meses, a minha mãe descobriu que
eu estava com feridas nas costas por má assistência hospitalar, passando
muito tempo deitado na mesma posição sem ser virado. Por essa razão
levou-me para casa, não se importando de correr os riscos de ter de
cuidar de mim lá. O despacho da sua fúria, que tinha já de si muito a
que responder também devido à grande tristeza que lhe ia na alma, ditou
que iria para casa. Há momentos como este em que uma mãe zangada
consegue pôr um filho feliz - existem outros que não. Ela sentia-se
assim porque tinha de reagir muito depressa à surpresa e à dor que tudo
aquilo havia sido para ela também. Porém essa surpresa e dor passariam
logo de seguida a ser encaradas apenas como um contratempo menor, pois o
amor de mãe levou-a a pensar, embora escondidamente envolta em lágrimas,
que haveria de existir alguém neste imenso mundo com poder para me
curar, o qual acabaria por aparecer e tudo acabaria, enfim, em bem.
Devido a esta esperança à qual o amor de mãe permite chegar, mesmo contra
qualquer evidência, por mais concludente e persuasiva que esta possa
ser, continuei a saga de exames e correrias entre médicos e quem mais
dizia ter poderes para me curar: desde feiticeiros africanos a
especialistas em ortopedia, não havia ninguém a quem os meus pobres e
dedicados pais não recorressem - perto ou distante, para eles nada
importava. Recorri ao lado negro do espiritismo e da bruxaria de muito
género sem, claro está, encontrar a cura em que, a partir de certo
momento, só os meus pais acreditavam. Nesta onda de busca tive a
oportunidade de conviver e ver de perto muito do real e da mentira que
existem nos círculos do espiritismo e outro género de práticas que hoje
sei serem poderes reais, mas satânicos. Durante os anos seguintes
percorri tudo o que era curandeiro ou espírita na ânsia de poder ser
curado, ou de então encontrar alguma explicação para o que me havia
acontecido. Porém, nem uma coisa nem outra ocorreriam.
Lembro-me por exemplo de um dos muitos esforços rocambolescos que foi o
de ter ido visitar um padre católico que se dizia operar alguns milagres
em nome de Cristo e de não passar de mais um espírita a usar o nome de
quem não devia. Porém, os seus poderes eram reais e impressionantes,
embora agora saiba qual a sua origem maléfica. Recordo-me que fomos três
famílias em busca deste dito padre por razões de cura bastante diversas.
Uma dessas famílias era a minha professora da escola primária que tinha
o marido doente com uma enfermidade que agora não consigo precisar.
Viajamos sob um regime de 'apartheid', isto é, homens num carro e
mulheres noutro, isto por imposição graciosa de meu pai. Eu com meu
querido pai íamos no carro de minha professora conduzido pelo marido
desta, enquanto ela ia com a minha mãe no nosso carro.
Este carro onde viajávamos eu e meu pai, havia sido uma recente aquisição
do seu orgulhoso dono. Por essa razão, ele não parava de insinuar como
havia sido uma bela compra, não parando de mostrar a sua enorme
satisfação com o seu novo 'brinquedo'. Tanto assim era que lá convenceu
o meu pai a dirigi-lo por algum tempo durante a longa viagem de mais de
quinhentos quilómetros, só para melhor poder substanciar o orgulho que
considerava legitimo dadas as circunstancias. Ele queria que o meu pai
se orgulhasse também daquilo que tanto o empolgava. Mas para espanto do
homem, o meu pai, manifestou uma opinião oposta à esperada ao pegar no
volante daquela virgem viatura. Disse-lhe que algo de errado se passava
com a direcção do seu carro novo! Algum defeito numa das rodas ou algo
assim, explicava meu pai muito sério ao incrédulo homem: "é que o seu
carro dá uns esticões para fora da estrada e só com algum custo é que
consigo controlá-lo". O pobre homem gelou com aquela acusação, pois
estava à espera que saísse um elogio quente da boca do meu pai e em vez
disso saiu um punhal em direcção à sua agora defraudada expectativa!
"Não pode ser", dizia o pobre senhor em sua defesa, tentando ganhar
tempo para se recompor daquele 'rude' golpe, "deixe-me lá confirmar
isso". Trocaram de lugar e o dono não via nem se apercebia de nada de
errado com seu carro. Foi então a vez do meu pai dizer "não pode ser",
pois a pressão da 'acusação' que havia feito, havia rebolado para o seu
lado. Pararam o carro de novo e tornaram a trocar de posição para nova
experiência de condução por parte de quem sabia não estar a inventar o
que fosse. Incrivelmente, alguns quilómetros de viajem mais e deu para
perceber que algo muito estranho de facto se passava com o novo carro do
senhor. No entanto, descobrimos mais tarde que não se tratara de
qualquer problema mecânico.
Chegámos ao local dos rituais do dito padre mesmo a tempo de assistir a
uma das suas sessões espíritas. Lembro-me que estava muita gente no
local, tanto fora como dentro da casa que era usada para o efeito. Do
lado de fora estava um homem a ludibriar gente com umas práticas muito
estranhas, desde revirar olhos a dizer coisas imperceptíveis. Entrei ao
colo do meu pai e sentámo-nos no chão duma sala diante do misterioso
padre em quem agora depositávamos alguma esperança. Só os doentes lá
podiam entrar por haver grandes limitações de espaço; ele estava sentado
num banco comprido com quatro mulheres (creio que se intitulavam de
médiuns), duas de cada lado, mesmo diante de mim e de meu pai. De
repente uma delas caiu no espaço vazio que havia no chão à nossa frente
e rugia com um olhar feroz e muito avermelhado! O padre colocou-lhe um
pé em cima como sinal de autoridade e a mulher não se mexeu debaixo
dele. Amainando assim a sua dita fúria, perguntou ao demónio que a havia
possuído o que o trazia ali. Disse assim o demónio: "quero destruir (ou
matar, não sei ao certo) aquele que está ali com o pai. (Ninguém nos
conhecia naquele local). "Mostra-me lá a quem te referes", disse-lhe o
padre levantando o pé de cima dela como que dando-lhe a liberdade de ir
mostrar a pessoa a quem se referia; a mulher foi directamente em nossa
direcção com uma fúria tal, dando dois ou três poderosos e inesperados
estalos ao meu pobre pai. O meu pai, que é descrente no tocante a certos
fenómenos sobrenaturais, ainda mais agnóstico ficou com isto de uma
mulher lhe estar a bater sem ele lhe poder responder à letra! Foi no
entanto com algum custo que se conteve, não respondendo com alguma
contra agressão. A mulher deve à surpresa que causou o não ter levado
nada em troca, pois esta ocorrência ficou atravessada na garganta de meu
pai e embora a sua maçã de Adão continuasse singular, ficou tão
espantado e mudo que ainda hoje não quer falar sobre o assunto!
O padre gritou uma ordem de volta e ela (ou o demónio) obedeceu e relatou
então que já me tentara matar varias vezes antes. Disse, entre outras
coisas, que desde que nasci me perseguia e que sempre lhe escapara. (Não
quero de maneira alguma dar credibilidade o que aqui se passou, nem tão
pouco fazer crer em demónios, que são mentirosos por natureza; apenas
tento relatar o que ali ocorria, sem pôr nem tirar, na medida que me
permite a memória). Disse que alguém havia cozido uns olhos de rã ou
algo assim antes de eu haver nascido e que o propósito seria evitar que
vivesse. Eu estava perplexo em silencio a olhar para tudo aquilo. É
sabido que estas práticas são demonstrativas do real poder de quem se
chama Diabo e que não faz nada mais que tentar dar credibilidade a quem
o rodeia e serve. Aqui está um exemplo vivo do que se faz para dar
credibilidade em opinião a quem afasta as pessoas através de práticas
que serão sempre condenáveis perante Quem criou o Universo. Estes
demónios eram reais, sobre isso não tenho qualquer dúvida. Existem
muitos praticantes charlatães nestes meios, o que não seria o caso aqui,
seguramente. Mas mesmo sendo verdade como o eram estes, não quero de
maneira nenhuma passar a ideia que se pode viver nestes antros de real
engano sem esperar que, mais tarde ou mais cedo, a ira de Deus se não
manifeste contra quem passa o seu precioso tempo a dar ouvidos a
"doutrinas de demónios".
Agora repare-se na demonstração sabiamente maléfica destes demónios para
fornecerem credibilidade a quem desvia do bem. O demónio que possuiu
aquela mulher, disse que havia feito tudo para que eu nunca chegasse
aquele lugar onde, passo a citar, "ia ser ajudado". Passou então a
relatar em pormenor aquilo que ocorrera connosco na estrada, (do carro
querer sair da estrada, etc.). Riu-se do meu pai por este haver pensado
que algo de errado se passava com o recém-adquirido carro do senhor com
quem viajámos. Disse outras coisas mais também que não poderei aqui
relatar porque a memória atraiçoa-me. Mas, as suas palavras davam sempre
a entender que o dito padre seria sempre o bom da fita e o poderoso
naquele antro, enquanto estes demónios se faziam passar 'humildemente'
pelos maus do filme, os quais deveriam sempre ser expulsos dali, se
calhar para voltar numa outra sessão personificando-se de outros sem
nunca deixarem de ser os mesmos protagonistas! No entanto, formavam uma
equipa coesa que se enlaçava em formas de entre ajuda mútua, pois, estes
passavam por maus para o padre enganador e espírita ganhar a
credibilidade. Muito se esforçavam, também, para enraizar crenças
através da surpresa que a veracidade das suas ocorrências produziam em
quem as presenciava. O medo que incutiam nas pessoas, eram a sua
poderosa arma contra qualquer bem. O facto de as pessoas serem apanhadas
desprevenidas, munia-os duma certa estranheza de poder na crença de quem
nada vê mesmo, para aprofundar as praticas de espiritismo existentes,
tão somente para aterrar nas mais densas e convincentes trevas quem não
vê.
Lá para o fim do dia, o dito padre consultou pessoalmente quem quisesse
falar com ele e fez-me umas rezas estranhas com uma chave que, dizia
ele, fechariam o meu corpo. Fomos para casa aconselhados a comprar uma
garrafa de um líquido qualquer que era vendido por eles e sobre o qual o
padre enganador havia rezado. Não podíamos deixar de ir ao supermercado
do padre, pois este necessitaria de vender os seus produtos. Teria de
beber de quando em quando dessa água para poder ficar bom. Nunca
cheguei, no entanto, a provar tal coisa! Mas continuei paralítico e não
foi por haver-me abstido de beber dessa dita água benta!
Durante muito tempo, depois de chegarmos a casa, isto foi tema de
conversa entre família e vizinhos. O meu pai que fora involuntariamente
um participante activo nesta história, que ele preferiria que não se
houvesse passado com ele, optou por se mostrar ainda mais agnóstico para
poder de alguma forma manter a sua pose forçada de descrente. Se ele
soubesse que daria naquilo tudo, teria evitado a qualquer custo o ter
sido ele a levar-me lá! Foi provavelmente por essa razão que ele
declinou levar-me à traseira da igreja para ser benzido pelo padre com
aquela chave que este desencantou do grande bolso da sua batina, pois
havia sido a minha mãe que fizera por lá me levar ao seu colo. Só que
não saberia nunca como explicar racionalmente o que se passara connosco
naquele local. Por isso mesmo, nunca vi o meu pai comentar algo sobre o
assunto, talvez para não ter de se envolver naquilo que ele "sabia" ser
alguma tramóia que ele não saberia bem como explicar.
Assim foi passando o tempo e eu continuava a minha nova forma de vida na
escola agora andando de muletas e tentando fazer com as mesmas tudo
aquilo que deixara de poder fazer por causa da súbita paralisia que tão
descaradamente me surpreendera. Subia árvores feito macaquinho e
"jogava" futebol de canadianas e os meus primos logo iam arranjando
maneiras de me deixarem participar nos seus jogos por sentirem algo que
os comovia a permitirem-me participar e integrar como legitimo parceiro
em tudo o que fizessem. Nunca me senti, nem nunca me permitiram sentir
diferente de ninguém e o que não conseguia fazer era encarado com uma
espantosa naturalidade de criança. Lembro-me que até mesmo nos meus
sonhos nesta fase da minha vida, andava sempre e corria normalmente,
aparecendo inquestionavelmente sempre como um herói normal que fugia de
quem o perseguisse, mesmo que para isso necessitasse de voar acima de
qualquer perigo. Sempre que sonhei, nunca dei comigo a andar de
canadianas ou como sendo deficiente: aparecia sempre como me conhecia
antes de me tornar paralítico. Penso também que quem comigo brincava,
rapidamente se adaptara àquela nova realidade, principalmente os meus
primos para quem, de certa maneira, eu passara a ser um protegido muito
especial. Estes também nunca podiam aceitar-me de outra maneira, pois
estávamos sempre juntos e a surpresa de tudo aquilo não lhes permitiu
evidenciar algum outro comportamento senão o que tinham antes do
infortúnio me haver batido à porta.
Mas lá no fundo desenvolveu-se seguramente uma grande vontade de vencer,
custasse o que custasse, uma teimosia que ainda hoje tenho de limitar
dentro do aceitável. No meu subconsciente desenvolveu-se uma fúria de
sobrevivência tal que me levou durante anos a fio a patamares de sucesso
e também de cansaço interior incomparáveis. Esta fúria silenciosa passou
a ser uma parceira despercebida e, de tão actuante que era, passou a
conviver no meu ser naturalmente sem dar qualquer indício ou sinal de
alguma vez ser qualquer coisa estranha. Eu não me esforçava por ter
força de vontade: tinha-a muito naturalmente por tentar recuperar tudo o
que havia perdido porque a lei da sobrevivência assim o determinava.
Passei a ser escravo de tudo ter de conseguir fazer. Foi esta atitude
que, embora me assegurasse uma certa sobrevivência de algum modo
agonizante, não me deixou descansar com a plenitude de vida que acabei
por encontrar mais tarde, pois é distinta na sua maneira de viver.
Passava os meus momentos a desafiar fosse o que fosse e, deste modo, a
sobrevivência estava assegurada num mundo amargurado, o qual eu nunca
reconheceria como tal. Se o fizesse, teria necessariamente de cair na
tentação de parar para dar ouvidos a evidências impiedosas às quais eu
nunca saberia como responder. Vivi assim durante muitos anos mesmo e os
elogios verdadeiros que recebia de variados quadrantes, faziam por
alimentar ainda mais este estado de coisas, pois não me deixavam parar
para olhar a silhueta que a sombra da verdade projectava contra a parede
que não me deixava passar aquela fronteira para onde poderia correr e
brincar livremente.
Passei a ser elogiado por todos pela rebeldia que evidenciava quando um
obstáculo não me permitia fazer aquilo que outros faziam. Aprendi muito
naturalmente também a liderar todo o tipo de brincadeira ou situação
para não ter de ficar de fora dos círculos de amigos e familiares para
que assim, talvez, não tivesse de me explicar perante uma qualquer
realidade que não gostava de encarar. Os meus amigos permitiam-me muitos
caprichos para não me excluírem das muitas coisas que as crianças fazem
sempre juntas. Só que as brincadeiras eram quase sempre concebidas onde
eu pudesse ser um protagonista activo, o que levava os meus parceiros a
serem escravos daquilo que eu poderia ou não fazer, excluindo-se estes
voluntariamente das suas brincadeiras normais de correrias. Os meus
primos principalmente seriam imbatíveis nesta sua benevolência.
Na escola excedia de longe todos em persistência e nos exames muito
dificilmente não era sempre o melhor. Tal era a atenção que prestava nas
aulas que nunca precisava de estudar em casa para tirar boas notas,
principalmente nas disciplinas de que gostava. Na verdade, vingava-me no
que podia e enfrentava tudo na vida como um possível adversário que me
queria derrubar e também privar de uma vida normal. A agilidade que
perdera nas pernas, estacionou-se na mente e passei a aprender a usar a
inteligência que possuía e que antes se encontrava um tanto ou quanto
adormecida pela distracção infligida pelo gosto de jogar à bola e não
só. Compensava os meus primos nas aulas com os grandes problemas
aritméticos que as professoras nos davam para fazer e para os quais eles
tinham muito poucas aptidões - tentava sempre resolver-lhes esses
problemas às escondidas, dando-lhes dicas para que acabassem sempre
antes da concorrência, que por sua vez era bravíssima! Como isso os
alegrava, seria assim que tentava compensar de alguma maneira o amor e
desinteresse próprio que demonstravam para comigo. Destacava-me em
disciplinas mais difíceis como matemática e sempre que podia ajudar os
meus primos a acabarem antes de quem era mais perspicaz que eles, isso
enchiam de enorme gozo.
A vida em si tornou-se, enfim, um adversário de respeito e, pior ainda,
sem escrúpulos. Só que eu queria sair vencedor de qualquer disputa que,
com o tempo e por vezes, só passaria a existir no pequeno e hipotético
reino da minha própria imaginação. Creio que os adversários começavam a
'aparecer' de todas as possíveis origens, tanto os reais como os
irreais. Os irreais passaram a ser os assíduos convidados dos outros e
nunca me pude desembaraçar da inimizade que entretanto fizera por
labutar e dar vida contra coisas que só eu mesmo via. Tirar-me dessa
luta seria uma tarefa absurda, pois tão enraizado se tornou o
envolvimento nela no meu interior que pensar em viver sem ela não fazia
sentido. Tudo se tornou uma disputa pessoal e a minha forma de vida
transfigurou toda a razão; nada deixava de ser competitivo e esta
maneira de ser revelou-se fatídica, não me permitindo qualquer descanso
interior, cansando-me imensamente o espírito desde muito cedo. Mas, por
estranho que pareça, saía sempre vencedor de qualquer disputa, até das
que acabavam por ser apenas idealizadas, nem que para isso tivesse de
imaginar para além de qualquer inconformidade - é que conformar-me nunca
seria opção sequer! Recordo-me que até para os meus pesadelos, mesmo
enquanto dormia, encontrei solução: saia deles vendo que não passavam de
sonhos que nada tinham a ver com a realidade das coisas. Acordava sempre
a rir-me dos maus sonhos que tinha e passado algum tempo nem sequer os
teria mais! Foi desta maneira que comecei globalmente a encarar a minha
vida.
Foi assim também que fui levado ao sabor dos ventos, que de certo modo eu
próprio fui levado a criar durante os anos seguintes, por me esconder
muito bem de qualquer realidade vivendo muito e apenas daquilo que
imaginava. Isto, por sua vez, instigava-me a ver as coisas
imaginariamente reais - não tinha como mentir à real percepção das
coisas que interiorizava para que, depois de ruminado, exteriorizasse
num outro formato. Readaptava todas as realidades às minhas actuais
capacidades, mesmo sem saber como! Só que tudo isto logo viraria solidão
devido à guerra que entretanto começara em Angola, a qual obrigaria a
separar-me da família por muitos e longuíssimos anos. O meu mundo
desabou ainda mais e os meus sonhos readaptados também desvaneceram. Não
bastaria a casa dos meus sonhos haver ruído, como também haveriam as
ditas ruínas de serem engolidas por um abismo que se abriu na terra onde
permaneciam. Está claro que com esta forma de encarar a vida,
vivia sempre muito mais do que devia, porque a imaginação não parava em
direcção às realidades que fariam sempre por me assolar e surpreender.
Foi assim que me tornei num adulto precoce.
Nunca fui adepto de pensamento positivo porque eu nunca me permitia a
veleidade sequer de pensar que a minha vida não pudesse ser positiva. A
imaginação que possuo realizava milagres tais que as doutrinas do
pensamento positivo sempre me pareceriam coisas banais perante a maneira
como enfrentava a vida. Aprendi então e também, a fechar-me cada vez
mais à realidade das coisas e de as ir contemplando apenas muito
vagarosamente sempre na medida e no tempo em que pudesse assegurar uma
visão regenerada das mesmas, a menos que algo me sucedesse que eu não
pudesse de qualquer maneira alterar em forma. Se não conseguisse
recapitular as coisas de forma a que viessem a mim num formato concebido
para me agradar, então ia assimilando tudo lentamente de maneira tal que
não me ferisse e não beliscasse a realidade que para mim quereria que
existisse. Esta maneira de fugir à realidade digamos, seria uma
preciosidade também, porque foi assim que aprendi a ser verdadeiro
comigo mesmo, embora muito lentamente. Ao tentar evadir-me do real,
concebia uma beleza para a minha própria situação a qual me levava a ver
as coisas duma forma mais real ainda, porque as coisas reformuladas
desta forma teriam sempre o aval da minha aceitação. Com o dito aval,
não tinha como não ver as coisas como eram de facto. É que a fuga da
realidade em que me encontrava, levava-me direitinho aos braços duma
realidade concebida apenas para me agradar. Isto era fatídico e não
tardei em sentir-me cansado com a vida, porque no fundo, ela não
corresponderia nunca aos meus muitos anseios. Uma mão poderosa, porém,
carregava-me ao sabor dos Seus ventos e eu disso não me apercebia ou
nada sabia na altura. É que a verdade no íntimo atrai essa mão poderosa.
A vida nos anos seguintes revelou-se, pensava eu, mais impiedosa ainda,
até ter olhado para cima e desconfiado que algo mais havia que esta vida
não dava - precisamente à vida que tanto me havia atraiçoado até ali.
Passei a viver muito sozinho desde os quinze anos e busquei quem me
criou para Lhe poder colocar umas pequenas questões que me perturbavam
muito e encontrei-O. Mas já lá iremos. Quero chegar ao fim da minha
história dando todos os passos. Mas que encontrei, lá isso é verdade e
por esta razão resolvi escrever este livro, para dizer ao mundo que me
ouve que a vida é outra e muito mais bela do que eu imaginava (e
tenhamos em conta que possuo uma muito fértil capacidade de imaginação!)
Vamos por partes então.
CAPÍTULO 2
Lembro-me dos tempos de escola, já no 5º e 6º ano escolar, onde um padre
nos dava aulas de moral e religião. O que mais gostava eram as histórias
da Bíblia que ele nos contava, como as de David e Golias. Este padre
tinha uma grande aptidão para contá-las e eu para ouvi-las. De certo
modo aquelas histórias conseguiam captar toda a minha imaginação sem
qualquer esforço. De tão bonitas que eram eu até pedia para ouvi-las. A
minha alma encontrava-se muito faminta e debilitada, creio que como a
maioria das pessoas que conheço. Só que tinha a oportunidade de
senti-las muito avidamente perto. Porém, o padre era um homem que nunca
se vestia de padre, de cor negra, o que me levou a admirá-lo bastante.
Se este homem contava aquelas histórias sem sequer as estar a ler é
porque conhecia Deus, pensei, pois não as tinha decoradas e parecia que
as vivia pessoalmente. Que santo deveria ser ele, imaginava! Um belo dia
deixou de contar as ditas histórias e passou a dar aulas sobre outros
assuntos que para mim se espelharam como fatídicas e pareciam nunca mais
acabar. Claro está que estas se tornaram indesejáveis porque nunca mais
se ouviu qualquer narração sobre Quem eu gostaria de poder vir a
encontrar. Como o padre me conseguia fazê-las viver intensamente de tão
belas que eu as achava, parando de contar aquelas histórias assim
abruptamente deixou-me quase sem saber o que pensar de tudo aquilo!
Fiquei suspenso num abismo no qual nunca cheguei a cair. Então, às
Quintas-feiras, ia para as aulas já a desejar que naquele dia ao menos
ouvisse uma história daquelas onde alguém era herói pela intervenção
directa de Quem eu gostaria e desejaria muito que existisse mesmo e Quem
talvez me pudesse ser apresentado por aquele misterioso homem que se
calara sem quaisquer explicações. Acho que um dia lhe cheguei a
perguntar porque razão ele não dizia mais nada sobre aquelas histórias,
ao que ele retorquiu que tinha de seguir com o programa estabelecido
pelo director e que aquelas, para mim avalanches de água viva, haviam
sido de autoria dele, não tendo permissão para as contar.
Conseguindo estas histórias consumir toda e qualquer concentração que em
mim era possível, desejava tanto, por outro lado e por uma ou outra
misteriosa razão, conversar com esse dito padre pessoalmente. Recordo-me
como ele escrevera no quadro de giz de como havia sido o seu percurso de
vida com Deus - fez uma linha muito direita com uma lomba ao meio: a
lomba significava a única vez que ele falhara "e muito gravemente",
dizia ele. Lembro-me porém muito mais do dia em que ocorreu uma das
minhas maiores desilusões de sempre. Desejava tanto vê-lo que contornei
o edifício pelo lado de fora só para poder ver o padre no seu
escritório, o tal que se vestia como um homem e que tão santo seria por
saber de todas aquelas histórias de verdades bonitas! Afinal não era o
padre que era verdadeiro, mas sim as histórias que contava e eu estava a
querer confundir tudo. Quando passei pelas muitas janelas de vidro
(provavelmente pela milésima vez) e por causa daquela ânsia de espírito
que em mim havia em ver o padre mesmo que fosse ao de longe, vi-o
finalmente mas a fumar o seu cigarrinho com um prazer de loucos. Esta
ocorrência foi provavelmente levada a extremos no meu imaginário pelo
simples desapontamento de criança que me trespassara naquele triste
momento. Não que eu já soubesse que Deus condena quem fuma ou algo
assim, embora tal seja verdade também. É que eu aprendera a fumar por
banditismo e como sabia que para mim era um acto condenável (pelo menos
da parte do pai que eu muito amava e admirava), pensei que o padre
estava a fazer uma coisa terrível! Acho que se o visse a cometer
adultério, como já havia ouvido dizer de alguns padres que conhecia, não
teria tido o efeito que teve vê-lo fumar. O padre era um pecador afinal
e fazia coisas pelas quais o meu pai me batia! Concluí, se calhar, que
só contava as histórias de Quem afinal não conhecia. O meu coração doeu
muito em desalento profundo. Foi um choque tão grande para mim que, por
alguma outra razão misteriosa, comecei a sentir-me só no mundo outra vez
- isto para nunca mais olhar para o homem, pois não sabia ainda que a
Bíblia diz: "maldito é o homem que confia no homem (ou noutra coisa!)" e
não em Deus só porque não O vê - se calhar Deus não seria nada mais que
uma história de nos fazer embalar em fé. Subitamente, havia ruído uma
preciosa e muito misteriosa esperança que me acompanhava
despercebidamente. Como depositava já alguma esperança em poder ver Deus
ou saber d'Ele pelo menos, morri tristemente naquele momento mais que
marcante da minha infância. Mas, muito milagrosamente, essa esperança
resistiu tal semente escondida por muitos anos num deserto à espera de
um pouco de água para poder brotar e, se calhar, foi por essa razão que
Deus olhou para mim e viu que o desejava encontrar pessoalmente. São
orações deste género que nunca sairão defraudadas, pois, aquele que O
busca, encontra sempre, seguramente; e se não encontrar será tão só por
uma certa maldição de quem vai bater na porta errada só por esta ter um
letreiro "DEUS" - Deus não usa letreiros e, por isso, não se faz servir
de correios, muito menos se imitam chaminés ou outra coisa qualquer! E
nós deveríamos saber melhor do que isso.
Foi, no entanto e muito principalmente, por causa deste estado de
espírito fraudulento em mim que passei muitos dos problemas que passo a
resumir adiante. Assumo que era idiota, embora nunca tolo, pois, o
idiota busca o que deve buscar onde não deve e, o tolo, diz, ou conclui
'muito sabiamente' por ele, ou tão só, que Deus não existe. O idiota
pode transformar-se num grande tolo por buscar onde nunca deve, tirando
conclusões precipitadas daquilo que não deveria estar a inquirir sobre
quem deveria ser questionado em pessoa sem ser por terceiros! Se Deus é
Deus, não terá Este de responder por Ele? Haja é quem pergunte por Ele a
Ele! Não é a fofoca que pergunta sobre alguém a terceiros? Não sabia que
me assemelhava a uma tia mexeriqueira até descobrir como o era! Mas, o
meu passado de ensino (pouco) religioso - pelo menos daquilo que se
ouvia em meios católicos, embora, depois daquele desapontamento violento
e quase sinistro (pois, poderia tornar-me um tolo porque era idiota!),
nunca mais fosse à bola com quem não sabe que existem bolas que não são
assim tão redondas - levava-me, se calhar, a buscar em terceiros aquilo
a que só Deus em pessoa tem de dar resposta por Ele mesmo. Sempre
me disseram que Maria intercedia por nós juntamente com outros santos,
dos quais alguns se chamavam apóstolos e outros de S.to António e S.ta
Isabel! Eu pouco sabia da Bíblia e pensava que quem andava com ela não
poderia nunca ser o diabo, mesmo sabendo do ditado que diz 'se não os
podes vencer, junta-te a eles'. Esta diz: "não recorrerá um povo ao seu
Deus? A favor dos vivos interrogar-se-ão os mortos?...(Assim!) passarão
pela terra duramente oprimidos e famintos... enfurecendo-se...
amaldiçoando o seu Deus... e olhando para a terra, eis que haverá
angustia e escuridão... e serão arrastados para a escuridão,
entenebrecidos com ânsia... Ao Senhor... a Ele santificai... Ele vos
será Santuário". Mas a mim sempre me foi dito que os únicos Santuários
eram Fátima e Meca! (Isaías 8:9-22).
Se levasse a Bíblia um pouco a
sério podia dar razão a Deus pessoalmente sem quaisquer terceiros. Mas,
assim, só podia assimilar que quem anda de Bíblia na mão ou a usa num
altar ao lado dum boneco com nome de santo, ou expulsa demónios, é quem
é verdadeiro. E se gostamos de agradar a tais pessoas, pior cenário não
pode existir mesmo, pois enganamo-nos sobre assuntos de vida ou morte,
tristeza e alegria, porque nos agrada fazê-lo sob desculpa de que
não queremos magoar quem está perto de nós. Mas, como até as oliveiras
precisam de ser sacudidas para darem azeitonas antes que apodreçam para
de nada mais servirem nem para os porcos... não vejo porque não seguimos
o conselho de Quem disse: "se não negardes pai, mãe e filho, não
podereis seguir (a verdade)... aquele que agrada a homens (mesmo a ele
próprio!) não tem como agradar a Deus".
Passado algum tempo, tendo eu já cerca de catorze anos então, passamos a
fronteira da Namíbia (Sudoeste Africano) para fugir àquela guerra
impiedosa que ainda hoje mata e já lá vão muitos anos. Nada disto seria
surpreendente não tivéssemos sido presos e, por pouco, sumariamente
abatidos por nos considerarem espiões devido à nossa mais que tardia
fuga de Angola. Quase quando já me ia resignar à nossa sorte e com a
imaginação já sem conseguir pôr-me fora de algum caixão - até então a
minha preciosa aliada - já pouco esperávamos e mesmo assim chegou aquela
ajuda que veio provar que, afinal de contas, éramos descendentes de
Sul-Africanos (pela linhagem de minha mãe). Desse modo escapamos a uma
condenação mais que certa e injusta. Daí a entrarmos na capital da
Namíbia como privilegiados foi um passo. Era-nos dito que havia sido
Deus quem nos salvara. Mas eu já não conversava mais sobre esse Ser
misterioso que não sabia se alguma vez me iria aparecer. Gostava que
fosse verdade tudo aquilo que ouvira d'Ele, mas se não fosse verdadeiro
ou não me quisesse ficaria mais desgostoso ainda. Tinha como muito
provável que tal esperança viesse facilmente a ser defraudada. Temia ser
desapontado outra vez, visto Ele talvez não existir ou algo assim. Mas
como gostaria tanto de Lhe poder fazer umas perguntinhas pessoalmente,
não excluía totalmente a hipótese de Ele existir de facto. Só não queria
era falar abertamente sobre o assunto, não fosse sair envergonhado de
mais uma expectativa defraudada. Por causa da nossa ascendência,
deram-nos de imediato vistos de permanência no país e a mim, em cerca de
três anos, foi-me dada a naturalização Sul-Africana que ainda hoje
mantenho com muito gosto.
Como todos sabem, a medicina Sul-africana é louvada e prestigiada em todo
o mundo - é da melhor que há. Por isso, o meu pai estabeleceu desde logo
que iríamos consultar os melhores médicos possíveis. Fui de imediato
consultado por especialistas ortopédicos e a única coisa boa no meio
disso tudo, foi nunca mais ter consultado qualquer bruxo ou espírita.
Como o país que nos acolheu é protestante, as pessoas falam mais de Deus
e não tardou em vir alguém convidar-nos a ir às igrejas locais, embora
nada entendêssemos da língua. Aprendi muito afincadamente Afrikaans com
a ajuda preciosa de minha avó e de seguida o Inglês, as línguas locais;
e de repente, as coisas começaram a tomar um rumo muito estranho e
indesejável para os meus jovens sonhos bastante regenerados e isto em
vida ainda muito tenra. Tinha a coluna vertebral bastante deformada
devido aos muitos excessos descuidados e sem acompanhamento ortopédico e
devido às minhas muitas expedições àquelas tentativas de independência,
das quais muito dependi até então para poder sobreviver. Recebi ordem
para imigrar para uma escola muito especial e por sinal bastante boa,
mais para dentro da África do Sul, isto é em Kimberley, a cidade mais
famosa do século passado pelos seus diamantes. A sua fama, porém não me
entusiasmou assim tanto, visto esta ser a cidade que para mim se
encontrava a milhares de quilómetros de distância da minha família. Esse
facto fazia por me prender numa súbita e profunda tristeza interior, a
qual subia de tom a olhos vistos, tomando grandes e enormes proporções.
Esta ia-me fazendo sentir forçosamente abandonado por não sei quem.
Tenho por seguro que a imaginação pura que terá a capacidade de nos
poder afastar de qualquer realidade, também faz por nos levar a
patamares incalculáveis de consciências de factos, porque, ao aumento
daquela dor, respondeu a imaginação com uma montanha de tristeza - é
precisamente através da imaginação que se pode chegar tanto a qualquer
mentira, como a qualquer verdade. A minha melhor aliada só via como única
saída, o transfigurar-se muito denunciadamente numa possível fé que me
dizia, quem sabe, haver de certeza um qualquer esquema para a resolução
de tudo o que me estava a ocorrer. Aqui não conseguia apresentar
qualquer 'realidade' diferente daquela que diante de mim se estabeleceu
sem que eu pudesse intervir contra tal ocorrência. Foi aqui que se
calhar, apesar dos esforços daquela minha aliada, me senti derrotado e,
pela primeiríssima vez, sem qualquer saída de que gostasse.
Sentia-me abandonado, perdido e sem ninguém. As pessoas deixadas sós
normalmente têm quem culpar, mas eu não tinha. Não sabia quem me havia
deixado ao abandono, nem se havia solução para aquela triste realidade
sem razão de ser. E assim, com cerca de quinze anos de idade, começou a
minha independência muito forçada sobre a qual os meus pais nada podiam
fazer - e eu muito menos ainda. Esta independência só viria a
destronar-se quando acabei por encontrar o Algo mais da vida - aquilo
que eu encontrei destrona qualquer tipo de independência por completo,
sob pena de se perder a Vida que tal ocorrência muito graciosamente
fornece se não nos tornarmos inteiramente e plenamente e sem quaisquer
reservas dependentes da mesma Vida que é e sempre faz por ser - "Eu
sou", disse a Vida a Moisés - e convenhamos que o que é bom para ele,
não deixará nunca de ser igualmente bom para todos.
As primeiras pessoas no entanto a tentarem-nos "converter" foram
testemunhas de Jeová. É bastante comum que assim que alguém se propõe ou
apenas deseja buscar alguma verdade, mesmo inconscientemente, aparecem
logo "turistas bíblicos" a desviar quem possa poder descobrir algo
daquela Verdade que, por muito ou pouca que esta seja, transforma vidas.
Achei no entanto estranho que, alguns amigos que entretanto fizéramos e
que se diziam amar e crer em Deus, os desprezassem publicamente em sinal
de repúdio pelas suas doutrinas adversas à fé cristã; achei esquisito
alguém que crê em Deus não aceitar quem d'Ele fala. Na minha mente de
criança pensava que Deus era Deus e não entendia muito bem o que ali se
desenrolava, visto que me falavam de Quem eu gostaria de ouvir, nem que
fosse apenas para Lhe colocar umas quantas questões (continuei sem
perceber isso por muito tempo). Mas a simplicidade com que eu buscava
Deus em pessoa, revelou-se perseverante durante muitos e longos anos,
revelando-se também uma das chaves do Grande Segredo que ainda hoje e
infelizmente, nem os mais entendidos conseguem desvendar - e ainda bem.
Também se mostrou muito oportuna esta pouco elaborada e estranha busca
de Deus sem conceitos preestabelecidos, devido à inutilidade dos mesmos.
Se os possuísse, estaria a debatê-los e defendê-los e decerto que assim
estaria muito mais longe de encontrar cara a cara Quem me criou. Hoje
afirmo convictamente que quem quiser ver Deus frente a frente terá
necessariamente de perder todo e qualquer preconceito, sejam estes
religiosos ou não! A religião, seja esta qual for, opera tanto aberta
como subtilmente contra qualquer pequeno conhecimento real de Deus!
Foi neste estado de espírito que acabei por ir para longe dos meus pais e
da restante família. A resposta àquela dúbia situação seria que ia para
ser tratado e acompanhado por quem, pensávamos, poderia ter algo a dizer
sobre aquilo que me assolava fisicamente. Para além disso frequentaria
uma escola para me formar, diziam os adultos em forma de consolação. Mal
eu sabia que seria uma separação familiar bastante longa e que para mim,
me pareceria infinitamente mais do que aquilo que realmente foi. Acabei
por ter de ser submetido a variadíssimas cirurgias à coluna (quatro se
não me falha a memória), cirurgias essas que muitas vezes duravam umas
boas oito horas sob anestesia e das quais levava uma semana ou mais a
despertar lucidamente. Também às pernas e às ancas fui submetido a todo
o género de cortes e cirurgias e passava todas as férias, (as únicas
alturas em que podia visitar a família se estes tivessem dinheiro para
me proporcionar as respectivas viagens), em hospitais ortopédicos para
que pudessem corrigir muitos defeitos ósseos que desenvolvera. Passado
mais algum tempo, depois de ter ido para esta escola especial que até um
hospital próprio tinha, o meu pai teve de sair do país. Veio para
Portugal e eu fiquei por lá. A minha mãe e irmãos seguiram-lhe as
pisadas e deparei-me perante um facto dolorosamente incontornável:
dificilmente tornaria a ver os meus familiares. Os milhares de
quilómetros que até ali nos separavam, nada seriam comparados com a
triste realidade que me fez entristecer ainda mais. Para mim, estar mais
um dia sem vê-los era extremamente difícil - imagine-se agora ter uma
ampla e inquestionável visão daquela impossibilidade de nunca mais poder
tornar a ver os meus familiares (coisas da minha aliada que aqui se
inverteu contra mim outra vez). Se já estava longe deles, isto é,
a cerca de três mil quilómetros, imagine-se estar a um continente de
distância. A meu ver isto seria uma distância muito difícil de
suplantar. Porém, a minha imaginação dizia-me também em forma de consolo
que teria de trabalhar muito na escola para poder ser rico e poder ir
visitar os meus pais e irmãos a Portugal, dos quais nem pude ir-me
despedir. Só que até lá havia uma névoa de muitos anos pela frente,
visto apenas haver começado o 10º ano escolar e pelas minhas contas
seriam mais dois anos de escola, três ou quatro de faculdade, um de
trabalho até ganhar o dinheiro que poderia transportar-me àquela Europa
que passou a ser um sonho a partir daquele momento.
Foi isto que me levou a amadurecer ainda muito jovem e a buscar
inconscientemente e desde logo, o algo que a vida nunca fazia por me
dar. Alguns vão para a droga e mais caminhos hajam; eu, no entanto,
apliquei-me nos estudos com mais afinco ainda e tudo o que a minha fiel
aliada me sussurrava, fazia por empreender. Abanava a cabeça ao nada
fazer, porque essa seria a pior das opções. Mas essa aliada não dava
nada de volta e não desvendaria nunca uma simples solução de poder ter
tudo ao mesmo tempo, tanto família como estudos e tratamentos. Pensava
eu que as coisas seriam assim mesmo, que no fundo era o que as pessoas
me faziam crer que Deus era. Parecia que me tirava tudo e não me dava
nada de volta. Afinal, vim a descobrir mais tarde, que me tirava de tudo
para que me pudesse dar tudo melhor ainda. Mas como na altura não
percebia nada do que se passava comigo, não havia maneira de ser
concludente em qualquer explicação sobre tudo o que me ocorria.
Foi principalmente por essa razão que não me dava um momento de sossego
interior, se é que tal coisa existia mesmo! Não havia nada que me
tirasse o alvo de diante dos olhos de ser o melhor em tudo - temia pela
vida. Eu achava que a única maneira de me desforrar dela (da vida),
seria exceder-me em tudo. Discriminava então quem fosse preguiçoso e que
tivesse outros defeitos tais, o que no fundo, não deixava de ser um
julgamento simulado por serem precisamente estas as coisas que nunca
quereria para mim, pois era daquelas coisas que eu consideraria as
ameaças mais volúveis à minha prematura forma desequilibrada de
sobrevivência que já me fugia. Eu via os meus piores defeitos e temores
reflectidos sempre nos outros e será por esta razão que a Bíblia diz
"ficas sem desculpa quando julgas ó homem, quem quer que sejas, porque
te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro" (Rom.2:1) e também
"com o juízo com que julgardes, sereis julgados e com a medida com que
medirdes vos hão-de medir a vós". Entendia, no entanto, que a vida não
me iria dar quaisquer tréguas e a dor da separação da família levou-me a
limites muito próximos daquilo que podia fazer, tanto humana como
intelectualmente. Mas nada me satisfazia - julgando os outros ou não,
lutando ou não: nada me fazia esquecer que não passava de mais um ser
perdido no meio dum infinito mundo que eu não ajudara a criar. Mas temia
olhar para cima para não ter de me sentir mais miserável ainda. Temia
poder vir a depositar esperança em quem não existia, ou não ouvia se
existisse. Parecia que flutuava numa vida perdida ora com ora sem nexo e
se não fosse uma réstia de esperança na angústia, teria por certo
sucumbido ao som duma contínua dor de espírito. As suas poderosas
cornetas tocavam uma tristonha melodia de morte contra as quais nunca
conseguiria responder, mas as quais também nunca me chegariam a matar ou
a fazer sequer pensar em morte.
Sentia-me morto e sem vida e daí a buscar vida foi um pequeno passo.
Pensava que como já havia perdido tudo mesmo, então nada mais que pensar
que pudesse existir alguma surpresa escondida no meu já de si inseguro
futuro. Hoje sinto que fui um privilegiado no meio de toda esta dolorosa
angústia, porque por certo tive uma oportunidade única de sentir na pele
aquilo que de facto se passa com qualquer ser humano afastado de Deus.
Enquanto se tem algo que nos satisfaça, não fazemos por ser
responsavelmente obrigados a buscar Quem pensamos não existir. Mas na
altura pensava que tudo o que viesse, mesmo mau, viria acrescentar à
falta, pois nada mais havia que a falta de mim pudesse despojar. A minha
casa seria daquelas que já não necessitavam de trancas à porta depois de
roubadas - já não havia nada mais para roubar mesmo! Muitos estão
sonâmbulos e desajeitadamente adormecidos na sua dor: eu porém, não
conseguia resistir à única saída possível para um emaranhado impossível
de dor e angústia sem fim. Em mim não foi possível a morte adormecer
realidades tão conclusivas que a 'felicidade' de quem prolifera em bens
e novelas de baixo teor de vida fazem por passar despercebidas,
atenuando assim a possível fome que essas realidades adormecem: de
estarmos seguramente mortos enquanto não encontrarmos Deus cara a cara e
muito intimamente; e as quais fazem desvanecer em complicados imbróglios
de fofocas sem vida e para as quais deixar passar o tempo também não
será solução, seguramente! Porque para muitos a alternativa é deixar
passar o tempo e ver o que acontece. Eu já nem me importava de passar
pela 'normal' vergonha daqueles que pensam em Deus. Só que eu não me
conformava com a minha situação, qualquer que fosse o ângulo do qual
olhasse para ela. Haveria de haver resposta para a vida, fosse ela qual
fosse!
Deixei de fumar - um vício que apanhei ainda com cerca de sete anos de
idade com primos e pessoas mais velhas. Deixei de fazer muita coisa que
considerava ruim e devido à falta de quem me ensinasse a levar uma vida
sã e anti-prejudicial, não consegui no entanto que certas coisas não se
tornassem uma obsessão obsoleta que não me permitiam gozar e desfrutar
de paz interior. O meu pai sempre dissera de modo a que se fizesse
ouvir, que o seu maior desgosto era ver-me fumar. "Ai está pai, agora
vou fazer-te feliz", pensei de onde ele não me poderia ouvir nunca, mas
a imaginação levava o correio pondo-me a ver o meu pai a ficar feliz com
o que fazia e isso lá me alentava. Tentava em forma de esperança
trazer-lhe uma alegria imaginária, visto imaginar constantemente que meu
pai também estaria muito triste lá longe e que ao menos o que fizera o
faria feliz, por haver decapitado um vício em mim contra o qual ele
tanto se esforçara lutando, mas sem sucesso.
Contudo, tudo na vida passara a ser um obstáculo sem sentido para mim. O
sucesso já não era alegre e eu não podia deixar de me sentir inútil e
sem jeito. Assim, perdia-me com facilidade em contornos da verdade e
sentia-me cada vez mais obsoleto e obtuso na vida. Nem a namorada muito
bonita que tive nesta altura me conseguia dar a vida que me faltava
dentro. A alma é que não tinha descanso, mas também não dava muita
atenção aos seus gritos de morte por temer que me levassem a parar para
pensar por uns instantes. Mal sabia eu que este seria o principal câncer
mortal que me levaria em direcção à vida! Nesta altura ainda conseguia,
com algum esforço, silenciar muitos desses gritos com algum virtuosismo
de criança e quase sem saber passara a buscar Deus com uma angustia
descontrolada que passara a não reconhecer abertamente por não ter de
ficar mal visto, nem por mim nem por quem me via viver - isso é que não
podia ser, não fosse alguém pensar que eu estava a desistir da vida e
arranjar uma desculpa qualquer de perdedor! E todos aqueles que buscam
Deus em pessoa são considerados, de uma maneira ou de outra, perdedores.
Imagine-se!
Mas isso ajudou-me a controlar certas angustias e certos sofrimentos
recalcados sob o peso de tudo bem-fazer, porquanto não conhecia Deus e
na ausência daquela plenitude de vida que sempre nos foi prometida e
desde que para essa sarça em fogo vivo nos viremos. Não procurava
solução longe demais daquilo por que passava - só via o que em mim se
desenrolava desenfreadamente. Digamos que já havia olhado para cima e
saído desapontado. Mas descobri que ao olhar para outras possíveis
soluções, nenhuma destas me dava qualquer garantia de Verdade e Vida
também. Nada me dava paz de espírito agora que se esgotara a ultima
força motriz da minha débil existência na terra. (Visto assim de longe
parece obvio que tais atitudes a nada levariam, certamente, mas já
experimentou colocar uma pequena moeda bem perto da menina do olho? Não
tem esta coisa tão minúscula a capacidade conferida por nossa própria
teimosia em encobri-nos o resto do mundo que é e será sempre gigantesco?
Imagine agora o que era pôr uma tela com todas as insignificâncias da
minha curta e já defraudada vida diante dos meus pouco iluminados olhos.
A única coisa boa no meio disto tudo, foi que, como não via Deus nem ao
longe, também não encontraria qualquer outra solução para tudo o que me
sucedia até ao dia em que me apercebi mesmo, que solução em nós não
existe mesmo sem Deus. Com Deus, até para a morte existe solução. Foi
por isso que este privilegiado que vos quer transmitir uma mensagem de
Vida em plenitude inigualável nunca teve oportunidade sequer de se
iludir com um qualquer remendo 'novo' em roupa muito velha e mais que
esfarrapada). Estes novos parceiros que escolhera do gueto da minha
angustia não me serviam fielmente também e nada trouxeram de mais mesmo,
sendo estes tão ou mais traiçoeiros para a minha alma que a visão
deixada por aquele padre fumador: a não existência de Deus neste modo de
viver num mundo sem outro provável nexo, era a pior das possíveis
visões. A vida tal qual ela nos é posta a ver, deixa de ter sentido sem
Deus. Até os descendentes dos macacos - os 'cientistas' - não arranjam
explicações para todo este panorama, pois, a única coisa que demonstram
é a sua tendência para a irracionalidade que querem que seja a única
herança deles. Eu não me sinto descendente de macaco. A 'inteligência'
destes seres que me querem convencer que virarei cinzas para entrar no
ciclo normal da natureza, mostram que a única coisa que possuem com a
qual se podem assemelhar a macacos, é a maneira como reflectem sobre as
coisas. De facto, não são lá muito inteligentes!
O mundo nada mais me podia oferecer a não ser aquilo que nele existe - o
que para mim já não bastava. Algo mais haveria de haver para além do que
via. Todos os conselhos que me haviam dado para o bem ou para o mal, só
me conseguiam transportar até onde os outros seres humanos se
encontravam a vaguear infrutiferamente, diga-se de passagem! Por muito
que tentasse fazer e cumprir aquilo que achava que devia no mínimo a mim
mesmo, não encontrava solução para o descontrolo e rebentamento do
ridículo estado emocional em que me encontrava - eram areias movediças
das quais eu nunca conseguiria sair até ao dia em que encontrei a
Verdade e a Vida, porque continuava sempre a haver muitas brechas nas
fendas que eu tentava concertar a qualquer custo com aquela ajuda
rudimentar e primitiva, a qual só os humanos pensam ser a solução ideal
e da qual passara a dispor, pensando estar também ao meu alcance.
Por seu turno, a vida e a morte tornaram-se enigmas tão paradoxais para
mim que já não entendia mais nada mesmo. Viver (só) para morrer já era
mau, agora imagine-se o que seria viver mal e sofridamente, tentar
restabelecer sem qualquer sucesso o que a dor levava constantemente e
mesmo assim ter de vir a morrer um dia qualquer! Um caixão frio
servia-me de única recompensa para todo esforço e tristeza! Que ridículo
era tudo aquilo! Eu era jovem, mas sabia que de nada valia todo aquele
esforço brutal de regeneração e reparação audazes de fendas e sulcos
fundos demais para a precária habilidade de que dispunha na altura.
Quando acabasse de lutar - se saísse vencedor desta luta - teria de
prestar contas da minha vida ao entrar num caixão vazio e sem paga para
tudo o que tentara alcançar. Se a morte não tivesse qualquer
significado, enfim, a vida perderia o seu valor, porque não deixaria de
se tornar absurda se o galardão de todo aquele esforço infrutífero fosse
o ter de ir para uma cova funda e desconhecida. Qual seria o sentido da
vida afinal?
Foi por esta altura que o director da minha escola faleceu. Comecei a
pensar que não valeria a pena o esforço e as forças interiores
despendidas nesta já longa caminhada que era a minha jovem vida, pois
toda a motivação que me levou a patamares inquestionáveis de
sobrevivência, ia falhando redondamente. Com dezassete ou dezoito anos
apenas era um adulto fora de tempo, um farrapo que só podia dar uma
palavra em forma de conselho a quem já houvesse vivido muitos mais anos
do que eu. Eu cresci tanto que os adultos preocupavam-se em inquirir-me
sobre os seus próprios problemas. Mas como era jovem e tenro, destoava
tanto deles como dos meus colegas e companheiros porque sentia que não
fazia parte nem do mundo dos grandes nem dos pequenos. Transformara-me
em alguém que já fazia perguntas e afirmações fora de tempo, tais que
nem os adultos se atreveriam a fazer, sem no entanto deixar de ser uma
jovem criatura.
E assim apeguei-me muito rudimentarmente à única solução que achei ser
indispensável à busca de qualquer verdade: ser sincero comigo mesmo - a
minha mais recente parceira e aliada. Mas tudo isto a nada levaria a
menos que existisse Deus. Não valia a pena ser fingido e religioso sem
desfrutar realmente das coisas que a Bíblia, que já lia com assiduidade,
prometia. Religiosidade também é idolatria e instintivamente vivia
fugindo dela - não por saber na altura que isso fosse pecado como de
facto o é - o pior de todos os pecados - mas, porque tal nunca me
satisfazia por necessitar de verdades concretas para questões ainda mais
concretas e nunca badaladas de sinos mortos, nem do apoio a uma vida sem
qualquer nexo, com um eixo imaginário que diziam vir a ser Deus que iria
ver só depois de morrer. Isto não fazia muito sentido para mim, sabendo
que era agora e ali que mais precisava d'Ele! Ah, se o encontrasse! Como
não via o que buscava na vida dos religiosos, fugia da mentira e do
engano que as suas vidas me reflectiam. A existir Deus, não fazia muito
sentido vir a vê-Lo só depois da morte, seguramente! Já que havia
tratado da coluna vertebral do meu corpo, porque haveria de deixar agora
o eixo à volta do qual deveria girar o espírito de quem busca verdade,
flutuar perdidamente para mais longe, ficando assim sem saber que rumo
tomar? Se não encontrasse Deus, de que me serviria tornar-me religioso?
Seria só para me tornar menos pecaminoso? Servir-me-ia isso para algo?
Se assim fosse, temeria vir a descobrir que Deus não existia como não
existia na vida de quem me pregava da Bíblia. Mas vivendo de realidade e
em clara sintonia com o que pudesse vir a ser verdade, destronaria, por
outro lado, mais uma ilusão à qual me pudesse apegar de novo e de forma
inconscientemente irresponsável! Pois, achei que mesmo assim, se Deus
não existisse, seria bom descobrir se tal era verdade porque assim não
me iludiria mais com essa profunda capacidade de esperar que possuía
dentro de mim e que ia mantendo viva uma ligeira esperança em poder
vê-Lo como Ele é e nunca como queriam que Ele fosse - só para lhes poder
agradar!
E graças a Deus que este foi um temor que passou a ser enfrentado
frontalmente e confrontado muito pessoalmente, porque se Ele não
existisse, enfim, nada mais faria sentido. Existindo Ele, porém, já tudo
faria muito sentido e viver nem que fosse para encontrá-Lo apenas, já
valeria a pena! (Esta foi uma época muito confusa para mim e como a
minha memória não consegue desfazer tudo o que o meu pesar não foi capaz
de manter em lembrança viva, tentarei mesmo assim auscultar e
transcrever tudo dentro daquilo que agora penso haver ocorrido. Como se
devem ter apercebido, faço algum esforço para tentar descrever
minimamente o que comigo se passou, sem adulterar verdades, visto eu não
estar na altura com capacidades de qualquer ordem para conseguir
descrever ou sequer tentar alinhavar em palavras o que quer que fosse
que se desenrolava dentro de mim. Hoje posso desenrolar o livro e lê-lo
devidamente).
Mas sem saber vivia as coisas de maneira tal que nunca conseguia objectar
sequer contra a existência de Deus - e isto revelou-se vir a ser
determinante para a busca daquilo que seguramente encontrei sem
quaisquer margens para dúvidas. Por esta razão a Bíblia também nos diz
que "é necessário que (todo) aquele que se aproxima de Deus creia que
Ele existe" e se tal for feito sem fingimentos de qualquer ordem "Ele é
galardoador dos que assim O buscam". Será ofensa sim, fingir que Deus
existe e começar assim a ser religioso, tal como será arranjar um bocado
de pedra para adorar numa igreja qualquer. Sendo Deus vivo e verdadeiro,
para quê tais praticas? Eu assumia isto instintivamente no entanto,
porque nunca ninguém me havia dito que Deus odeia religião por esta
estar sempre a querer elevar-se como um substituto barato da essência da
vida. Para mim era um facto assumido que Ele existia e que muito
dificilmente o veria em qualquer igreja que conhecia na altura - e ainda
bem que assim foi, pois todos os religiosos me consideravam um rebelde
contra o que eles chamavam a "graça de Deus". Mas que dizer da realidade
de Ele não aparecer para me esclarecer algumas coisas? 'Mestre, onde
habitas Tu?' Se não estás na igreja, nem no mundo das minhas muitas e
exaustivas soluções e querendo-te real como um verdadeiro Deus que assim
se apraz ser para todos, como e onde encontrar-Te então?
Lembro-me de uma passagem Bíblica onde os discípulos perguntaram a Cristo
quando O viram pelas primeiras vezes, "onde habitas tu ó Mestre" e Ele
disse "venham e verão, as raposas têm o seu covil mas o Filho do Homem
não tem onde assentar a Sua cabeça". Só que a mim isso de ir e ver nunca
me havia sido sugerido sequer por Quem eu dizia com muita fervura ter de
existir de facto, muito provavelmente porque O buscava somente onde
pudesse recostar-me descansadamente e onde por certo não o encontraria.
Como eu buscava descanso de espírito naquela vida já causticamente muito
materializada pelos muitos temores em forma de tristeza desesperada e
agonizante, as quais me assolavam noite e dia, não pude sequer parar
para suspeitar sequer que tal esforço pudesse vir a ser inútil e, de
algum modo, infrutífero para as minhas aspirações mais íntimas. E ainda
bem que assim foi, pois não me dei conta de alguma vez questionar a
existência de Deus abertamente, pois o estado de espírito em que me
encontrava favoreceria tais duvidas em muito se a tal crime me viesse a
entregar por desfalecimento profundo. Estranho é que Quem criou o mundo
não tivesse sequer onde pousar a sua canseira quando resolveu passar
pelo mundo que criou - onde o mundo chegou! Foi por esta razão, se
calhar, que pude manter em mim a esperança em chama viva. Mesmo assim lá
fui intercaladamente vivendo desajustado e estudando muito, tirando boas
notas por querer ingressar numa universidade e estudar engenharia de
computação e programação.
Poderia também rejeitar completamente a existência de Deus, bastando para
isso aceitar apenas que a religiosidade fosse de facto o tal mistério da
vida. É o que muitos fazem, pois ninguém à minha volta vivia o que eu
lia na Bíblia. A ser assim, seria aceitável optar pela não existência de
Quem de facto existe! Mas como não é, nem nunca será, verdade tudo o que
os homens possam afirmar de Quem nunca viram, tive de me confrontar com
o facto de que são precisamente os religiosos que crucificam Quem os
quererá salvar. A partir desse ponto de vista seria fácil concluir que
Deus existe, nem que fosse só para os humilhar naquela sua arrogância
predeterminada que destrói abusivamente a partir das suas igrejas, agora
feitas autênticos palacetes, toda e qualquer realidade sobre Ele por
ser precisamente lá onde qualquer pessoa pensaria poder encontrá-Lo!
Deparando-me perante fingimentos de fé que actuam só por veemência e
esforço contra uma boa consciência, mesmo não sabendo na altura expor o
erro, todos sentirão lá a falta de Verdade que se quer divinal, mesmo os
que lá nascem e morrem passando todo o seu tempo de vida a enganarem-se.
O apóstolo Paulo escreveu dizendo: "Mas o Espírito expressamente diz que
nos últimos tempos muitos se apostarão da fé, dando ouvidos de espíritos
enganadores e a doutrinas de demónios pela hipocrisia de homens amantes
de si mesmos que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria
consciência, proibindo o casamento e ordenando a abstinência dos
manjares que Deus criou a fim de usarem deles com acções de graças".
Isto revela uma verdade desconcertante sobre aquilo que as pessoas fazem
à própria consciência para manterem a sua dita fé!
Cabe-me aqui fazer um reparo que me assistirá em mostrar com mais alguma
destreza uma pré-condição para se poder encontrar Deus de maneira real e
verdadeira, estabelecida desde há longa data, isto é, desde a criação do
mundo, para que nunca ninguém necessite sequer de fingir que Ele é.
Muitos tentam amarrar quem quer que seja a uma qualquer religião ou
religiosidade muito ou pouco profana, ou mesmo mais ou menos idólatra,
para que as ovelhas não venham a apascentar-se nas cercanias dos únicos
ribeiros de água viva onde também haverá seguramente pastos bastante
verdejantes que em Deus sempre proliferarão abundantemente. É mesmo
necessário nas circunstâncias actuais, despedirmo-nos de todo e qualquer
fingimento religioso para podermos vir a ver Deus - é uma exigência
d'Ele por ser real e verdadeiro. Com isto quero dizer que não será nunca
através do culto que O encontraremos, mas sim através dum coração que
faça por buscá-Lo incessantemente na pureza só existente na ausência de
fingimento que força sempre e só para o que gostaríamos que fosse
verdade. Nunca vi um religioso que não se fizesse sempre passar por
detentor de toda a verdade.
Ora isso é arrogância e não verdade visível e actuante. Não será o padre
ou o pastor que nos levará ao conhecimento profundo e real de Quem nos
criou, mas sim o Próprio - terá de ser o Próprio. Quem não é capaz de
nos levar a conhecê-Lo pessoalmente, é lobo vestido de ovelha! É
fantasma! Por essa razão Cristo disse e bem "Eu sou o caminho, a verdade
e a vida; ninguém (ninguém mesmo!) vem ao Pai senão por mim". O acender
de velas, o muito ou o pouco sacrificar, o muito benzer e mesmo ser
benzido, por muitas mais coisas que se possam fazer, nunca terão outro
efeito que não o igual aos que a mim mesmo, humana e constantemente, fui
tentando em forma de luta. As pessoas em vez de falar com Deus rezam; em
vez de encontrarem, pensam que são; em vez de receberem respostas
concretas, contentam-se com o acreditar levianamente que já as têm (é
muito mais fácil e conveniente!), ou que serão os donos das mesmas,
porque será mais fácil e mais aprazível benzer-se de vez em quando do
que ousar decapitar tais práticas em favor da realidade que, sem
qualquer margem de dúvida, lhes tirará toda e qualquer proeminência;
será porque estas verdades vêm desmanchar o que ainda nos autoriza a
leviandade que não as aceitamos com facilidade? É mais fácil prender as
pessoas numa doutrina porque quem prega encontra-se sempre ávido por
dominar em vez de trazer o verdadeiro conhecimento de Deus às almas
famintas e dispersas pelos beirados destes lobos muitíssimo famintos,
que são quem é religioso e consequentemente profano, embora sem nunca se
reconhecerem como tal. "Mas eis para quem olharei: para o pobre e
abatido de espírito e que treme da Minha palavra". Eles não tremem -
alguns dançam na profanidade!
CAPÍTULO 3
A FACULDADE, AINDA SEM ENCONTRAR QUEM BUSCAVA CADA VEZ COM MAIS CERTEZA
Fui para a universidade numa outra cidade a cerca de 250 km da dos
diamantes. Ali tive amigos e conheci pessoas de muitas classes e de
variantes de vida muito diferenciadas. Sentia que uma nova fase da minha
vida começara. Mas, também não era particularmente o que eu esperara que
fosse, pois as muitas respostas que me faltavam continuavam sem ser
atendidas. Foi então que entrei numa fase em que as coisas se começaram
a desenrolar muito rapidamente, mas ainda sem qualquer conforto à vista.
Parecia que Deus tinha pressa em que eu perdesse qualquer réstia de
falsa esperança que ainda depositava no futuro que aquele bacharelato me
iria proporcionar. O tempo demorou-se muito até ali, mas agora sentia
que só faltavam quatro anos para tudo, enfim, talvez acabar em bem.
Evidenciava ainda no meu dia a dia muito esforço próprio, pensando que
seria capaz de me salvar a mim próprio. Desconhecia que a vida que então
buscava intensamente, destoava e inimizava por completo com a forma de
viver com que eu fazia por empreender aquela (vendo agora!) rudimentar
vida já de si muito precária, pelo menos aquela que ainda se fazia ouvir
em mim. A que eu buscava não se entenderia com qualquer outra. Daí tudo
se desenrolar estranhamente rápido para mim. Também não buscava
propriamente conforto, mas sim verdade, aquela que deveras conforta - e
ainda bem que assim se proporcionou ser também! Não se pode buscar o
conforto que tal vida fornece, mas sim a vida, pois "mais vale a vida
que o sustento" que ela dá, "mais vale o corpo que o vestido", disse
Cristo. Ele lá sabe o que diz.
Todas as condições para se achar Deus iam sendo cabalmente produzidas
pela vida que entretanto começara, embora tudo fosse presenciado muito
inconscientemente. Daí concluir-se que essa Vida é activa e actuante
para bem. Já não depositava qualquer esperança em qualquer ídolo ou
imagem; já deixara de ser fingido e pretensiosamente religioso, ou seja
pretensioso e frequentador de igrejas; sabia que não seria o baptismo ou
uma qualquer reza que me levaria à plenitude de qualquer verdade, pois
sempre que rezei continuei vazio; mais ainda, não pretendia nunca mais
tornar a ser ludibriado. Se Deus existisse, a ideia de pensar que
existiria não seria a tal maneira de me contentar. Se existisse, teria
de encontrá-Lo. Nunca me fartaria dum deleite ou duma possível prova da
Sua existência - isso seria muito menos que insuficiente para mim, pois
já havia lido demais da Bíblia para esperar menos que aquilo que Cristo
prometia sem qualquer hesitação, como sendo algo muito simples até,
simples demais para não ser possível. "Quem Me busca, encontra" - que
palavras mais direccionadas e racionais poderá haver? Teria de me
contentar com o buscar sem encontrar, de me sentir realizado e feliz com
tal ocorrência mais que absurda? Por isso é que eu acho que os
religiosos se tornam absurdos, pois buscam mais, muito mais, do que
aquilo que encontram. Porém, por aquilo que Cristo disse, dever-se-ia
encontrar em iguais proporções tudo aquilo que se busca - nem mais nem
menos. Muitos diziam que encontravam e pulavam feito loucos para se
convencerem que era verdade; outros que não encontraram mas que tinham
fé! De qualquer modo, eram igualmente irracionais aos descendentes de
macacos.
A rotina de sofrimento e busca tornou-se insuportável e nem ir às igrejas
protestantes locais me dava o conforto que eu de certo modo sabia
existir - algures. Eu hoje sei porque Cristo chamou o Espírito Santo de
'o Consolador' que viria depois da Sua ascensão. Mas na altura nada
sabia, nem tão pouco estaria em condições de o saber! Mesmo que
soubesse, não o entenderia. Só que uma das pré-condições que Deus
estabeleceu para encontrá-Lo ainda persistia em não desfazer-se: eu era
egoísta na procura de Quem muito ama.
Por muito que estudasse e lesse a Bíblia, não só por ler mas sim a fim de
tentar desvendar o que ela continha de valor e de preciosidade, de
verdade ou de mentira, fui-me apercebendo e confirmando cada vez mais
instintivamente que religiosidade era muitíssimo enganosa, sendo mesmo
considerado como o inimigo numero um da minha alma. A vida que a Bíblia
prometia era apresentada como agreste e inimiga de qualquer tipo de
religiosidade. Isso fez-me desfazer desde logo e desde aí de todo o tipo
de bruxedo e crença, porque nada do que é verdadeiro e real tinha a
forma daquilo, pois entendia, ainda que muito precariamente, da Bíblia e
as suas verdades. Não era possível contestar qualquer coisa da Bíblia
depois de a entender devidamente. As pessoas que contestam a Bíblia são
só aquelas que não a lêem, porque as outras descobrirão com assiduidade
que Deus existe para além de qualquer possível constatação. Os únicos
que a contestam são aqueles que dela nada entendem! Mas que dizer do
facto mais que evidente que também a verdade não me alcançava ou
alcançaria e assim me confortasse? Pois, quanto mais eu lia, devida e
honestamente, preto no branco, mais me angustiava por O começar a saber
real. Tentava ignorar que daquilo que lia também nada estava a dar certo
comigo, porque senão tudo seria doloroso demais e não saberia muito bem
como enfrentar mais uma desilusão não encontrando Quem era verdadeiro,
pois ainda não havia acertado qualquer passo com uma ínfima parte da
verdade - não via como! Sabia que a verdade existia, mas não acertava os
meus passos com ela. A nível de conhecimento sim, posso dizer que me
empreguei no estudo da Bíblia com fervor de estudante mesmo, daqueles
que vão a exame no dia a seguir. Só não queria era ser influenciado na
sua interpretação, pois Cristo disse "naquele dia sabereis tudo, pois
sereis ensinados por Deus". Mas, quanto mais lia, mais insatisfeito me
sentia, porque as promessas eram concretas demais para serem enganosas.
A Bíblia fala em ver Deus, em descobrir Deus como se fosse um facto
assumido acima de qualquer engano, pois era concreto demais. Decidi
então que religião e religiosidade para mim acabariam de vez mesmo:
teria de encontrar Deus cara a cara nem que para isso corresse o risco
de vir a ser fulminado. Ou as coisas eram ou então deixavam de ser de
vez! Se houvesse uma lixeira do tamanho do mundo para poder conter toda
e qualquer hipocrisia dos pretensiosos e religiosos, era para lá que
indicava quem me viesse bater à porta para me converter a uma qualquer
doutrina! Ou Deus em pessoa ou nada!
Havia muitos acampamentos de jovens universitários promovidos pelas
igrejas que frequentávamos. Eu aproveitava então para tentar conversar
com os pastores das mesmas, ali e agora informais e sem poderem recorrer
ao formalismo dos seus púlpitos que eu passara inconscientemente a
desprezar abertamente. Gostava que fosse possível que mesmo através da
sua hipocrisia me esclarecessem todos os pormenores, para mim ainda
obscuros, da sua fé que ainda não era a minha e os quais a minha mente
estaria na disposição de aceitar só em forma de verdade viva e real,
tentando excluir-me assim daquela que já possuía durante algum tempo,
tempo demais até! Era-me um sufoco viver na e da mentira! Mas sentia que
pedia a um cego para guiar outro mais cego ainda e não fosse não haver
buracos fundos por ali, teríamos certamente caído juntos em algum - e
alguém em cima de mim!
Por isso, tentando não deixar-me enganar, ia sobrevivendo. Enquanto
conseguia culpar os religiosos, tinha ânimo, pois pensava que Deus
haveria de ser real e verdadeiro. Os líderes das igrejas locais davam-me
sempre inúmeras sugestões, mas cheguei sempre à terrível e triste
conclusão que eles não possuíam O que eu buscava - coisa que também e
por muito pouco não me fez voltar as costas a tudo o que se dizia de
Cristo e da Sua verdadeira, incomparável e gloriosa salvação. Diziam-me
para 'aceitar Cristo como meu salvador' como se tal fosse a solução
magica, que deveras deveria ser. Nada resultava e então era acusado de
falta de fé ou de ser obstinado e irreverente contra aquilo que, agora
sei, eram simples explicações sobre a verdade e não a verdade em Pessoa.
Tinha um colega de quarto nessa faculdade que era estudante de teologia
mas que vivia uma vida mundana tal que, achei que haveria de haver Deus
nem que fosse só para castigá-lo. Opunha-me a ele frequentemente e
dizia-lhe sem meias palavras que ele estudava o que se dizia de Deus
enquanto ia abastecer-se ao diabo mais que de vez em quando, sem
qualquer reserva ou vergonha sequer, o que agravava em muito as coisas e
o meu sentir contra as igrejas. Deus permitiu que eu pudesse ver através
dele e de outros que mais, concluindo aquilo que não gostaria de
concluir - seria muito mais fácil angariar fundos e esforços para
descobrir a verdade do que permanecer na mentira vestida com vestimentas
de imperfeição. Os palhaços é que se vestem de roupas rotas. Agora sei
porque é que as madres se vestem de branco: é apenas para se enganarem
melhor a elas próprias. Nesta fase comecei a amargurar-me de tudo o que
me rodeava e pensava que muito dificilmente alguém me poderia mostrar o
Caminho, a Verdade e a Vida, a menos que fosse eu a encontrar
pessoalmente. Não se podia extrair leite duma burra seca.
No meio disto tudo fui cumprindo inconscientemente todas as condições
necessárias para me salvar da vida que tinha e possuía. Sabia
instintivamente que tudo teria de resumir-se a um encontro pessoal com
Quem me criou, sem qualquer intervenção religiosa, sem qualquer
fingimento, sem a ajuda de uma qualquer crença. Isto é uma coisa difícil
de conceber, humanamente falando está claro, mas no fundo, é
precisamente o que Deus exige de todos nós. Ele é real demais para
desejar algo diferente, mais fingido! Ninguém pode dar-se ao luxo de
fugir a esta responsabilidade, ignorando abertamente Quem existe e é
Sumo Criador de tudo. Tudo aquilo que não for real, é idólatra e
pecaminoso! Agora entendo porque é que o apóstolo João escreveu,
"filhinhos, abstei-vos dos ídolos"! Existe muita idolatria invisível!
Continuei a estudar e comecei a pensar infelicidade, a comer angustia e a
mastigar o pesar que me assolava incessantemente e que sentia que seria
por estar a estudar o que não devia, pois já não podia resvalar na ideia
de não existir Quem me criou, não sei por que razão. Fiz testes e mais
testes psicológicos e psicotécnicos, os quais dariam muitas mais
hipóteses de estudo do que todas as que eu via nos meus horizontes já
pálidos e sem espírito. Os psicólogos que me consultavam abismavam-se
com a minha franqueza na vivência das coisas que me rodeavam. Cheguei a
ser levado às suas consultas para lhes poder dar o alento que eles
próprios não tinha. Parecia um doente a ter de ir ao consultório do
médico para curá-lo de males piores que os meus. Havia uma psicóloga,
recém-formada da própria faculdade, que marcava-me testes psicotécnicos
só para poder conversar e estar comigo. Eu mostrava na prática aquilo
que eles gostavam de poder entender pelos livros, os quais nada demais
lhes davam senão emprego e um salário seguro no fim do mês! Está claro
que queriam fazer de mim um rato de laboratório, mas logo desistiam
porque eu nunca conseguiria corresponder aos seus muitos anseios.
A frieza e destreza com a qual eu encarava a vida fazia as pessoas
gostarem de mim, principalmente os mais adultos, tratando-me como seus
iguais mesmo estando eu em cadeira de rodas. Eu nada tinha, mas estes
inertes seres feitos de ajudantes doutorados pensavam que eu possuiria
muito mais do que eles, razão pela qual quereriam desvendar o misterioso
ser que diante deles parecia conseguir vencer qualquer obstáculo
inultrapassável - isto na sua mera perspectiva e por certo na que eu
dava a entender por não querer ser visto como alguém que fazia caso do
facto de ser deficiente, isto é, depois daquela primeira fase de
adaptação a uma nova realidade aos dez anos de tenra idade. Crescera
muito rapidamente e transformara-me num adulto precoce e nada na vida me
surpreendia já - nem o engano nem a verdade, nem o bem nem o mal. Bem, a
Verdade veio surpreender-me estrondosamente mais tarde, diga-se desde
já, porque não é aquilo que eu esperava que fosse. Por essa razão,
provocava uma admiração tal em quem me viesse a conhecer que a mim
próprio me surpreendia. Também não entendia lá muito bem o que é que as
pessoas viam em mim que tanto as incitava a viver. Eu era um lutador
nato e talvez isso inspirasse muitos, mas o meu interior nada obtinha
com essas ondas de admiradores e admiradoras que me questionavam sempre
como conseguia ser tão lesto e clarividente no meio duma vida que
consideravam muito difícil e implacável. Parecia ser um o tal rato mesmo
especial para os seus laboratórios de curiosidade, que andava cá fora e
que queriam a qualquer custo interrogar sobre qual seria o alimento que
o sustinha. Nem eu sabia que era esperança!
Foi assim também que descobri que os pastores de igreja, que conheciam a
Bíblia de ponta a ponta, tentavam inquirir-me sobre a força de vida que
eu evidenciava mesmo quando os confrontava. Se eu me sentia seco e
morto, imagine-se em que estado estaria aquela burra que queria o que eu
tinha! Como possuía uma esperança que eles só conheciam através da
leitura da Bíblia, inquiriam-me muito sobre muita coisa. O formidável
disso tudo foi que eu me sentia muito diferente daquilo que diziam ver
em mim - e de facto assim era, pois esperança de vida nunca será vida.
Foi principalmente por esta razão que logo vi que se houvesse alguém que
me pudesse ajudar teria de ser Deus em pessoa, porque os que me cercavam
estavam em piores condições do que eu, pois mendigavam a um mendigo que
lhes desse de comer! Admiravam-me pela luta que dava à vida e à morte,
mas não viam que lutar só por lutar é um ofício deveras infrutífero!
Sapateiro que bate em pedra não arranja calçado! Se eu estava tão mal e
aflito e se estas pessoas que deveriam ser os seres que deveriam poder
dar as tais respostas à tristeza e angustia de espírito de quem busca,
porque razão estariam a enroscar-se a mim para comerem do pão que me
deixava inerte e a passar fome? Achei então que a única solução seria
mesmo olhar para cima porque, cá em baixo, estava tudo pior do que eu
esperava que estivesse! As trevas cobriam a face da terra! Embora fosse
um sobrevivente num deserto muito mais árido do que aquilo que desejaria
que fosse, de nada me servia tal destreza em lutar contra uma maré de
poeira cegadora de bons horizontes e dos belos pastos que só existiam em
forma de promessas Bíblicas. Nunca se habitue a viver em qualquer
deserto, caro leitor, mais sabendo que nos prometeram "pastos
verdejantes"! Por essa razão será sempre crime rastejar na vida
existindo um Deus tão perto do seu coração para poder elevá-lo ao sétimo
céu!
Porém, a lisonja que sentia da parte dos homens em quererem-me fazer
sentir um seu herói à força, manifestou vir a ser uma pedra de tropeço
de enormes dimensões para mim. Eram uma anestesia para uma dor que eu
queria curar e não adormecer! Não vamos começar a pensar também que os
elogios dos outros, como as mulheres dos outros, são aquela tal terra
prometida, porque decerto nunca o poderão vir a ser. Por essa razão diz
a Bíblia, uma vez mais, "o homem que lisonjeia a seu próximo arma uma
rede aos seus passos". E porque será assim? Porque a língua que
lisonjeia tem plenos poderes para nos fazer sentir satisfeitos em plena
fome, alimentando-nos daquilo que nunca foi comida para uma alma
esfomeada mesmo! É por essa razão que muitos pensam que aparecer na
televisão é vida em pleno progresso!
Um dos médicos que me tratou durante quase todas as cirurgias, tornou-se
para mim um pai que eu já há muito não tinha. A minha calma no
sofrimento e no encarar as muitas penosas cirurgias para além das outras
coisas que todos sabiam, provocaram um tal espanto neste homem que ele
se resolveu levar-me para sua casa de vez em quando e ajudar-me a pagar
a fortuna que eram os meus estudos na faculdade. Era seu convidado a
viver durante longos períodos em sua casa como se fosse minha, até lhe
ter dito que buscava Deus. Aí as coisas complicaram-se para o meu lado,
mesmo sendo este prodigioso homem da ciência um assíduo assistente
domingueiro da igreja protestante local. Vá-se lá entender uma coisa
destas: alguém ir à igreja, ouvir e ler da Bíblia e não aceitar Deus! Ao
que o mundo chegou! Estaria em melhor posição que muitos para averiguar
verdades, sendo inteligente e intransigente. Mas não, era contra a
possibilidade de poder haver vida para além do visível e 'aceitável'.
Comecei a ouvir falar dos movimentos carismáticos que entretanto se
começaram a propagar pelo mundo fora. Outra peste, porque se a ausência
de vida real não me convencia, muito menos me convenceria uma 'vida'
ilícita e cheia de lacunas pela sua leviandade para com a Palavra de
Deus. Uns, onde andava, diziam-me muito formalmente para crer só, mas
estes diziam-me para fazer o mesmo, só que com mais algazarra possível!
Se a falta de vida não me movia nunca, muito menos o conseguiria uma
imitação da mesma por muito ficcionada que se revele esta alucinante e
alegórica e muito grande mentira! Sei que tentar imitar Vida sem
conseguir tê-La de facto e na abundância prometida e carimbada na cruz
do Calvário, é nada mais que prevaricar contra a verdade de Deus! Foi
então que comecei a perceber que o que uns não tinham de uma maneira, os
outros também não teriam de outra, se uns estavam deste lado do caminho,
os outros estariam do outro - mas no caminho mesmo, nem uns nem outros
porque era estreito demais para ser desejado. Mas saber isso também não
dava qualquer resposta ao vazio constante e vivente que em mim começava
a tomar proporções inconscientes de desespero. Criticá-los e
persegui-los acabou por não ser a tal solução também! Recebê-los também
não!
Esgotado que estava no estado de busca e sede insaciável em que me
encontrava, toda a seiva ainda existente em mim dava sinais agudos de
estar rapidamente a esgotar-se. Já não restava muito óleo na fútil
lamparina com a qual me tentava iluminar para tudo o que era questão.
Foi então que misericordiosamente e intuitivamente senti uma voz de
chamamento para uma vida que levasse Deus às pessoas que não o
conheciam. Mas não sei explicar o que ocorreu, ou como tal sucedeu,
estando eu em trevas absolutas se comparar a vida de então com aquela
que tenho hoje. O meu primeiro impulso de obediência foi deixar o meu
curso a meio e seguir outro de teologia na Igreja Reformada
Sul-Africana. Estudei durante algum tempo numa outra universidade, em
Pretória, e cheguei a aprender um pouco de Hebraico e Grego antigos, as
línguas originais nas quais a Bíblia foi escrita. Frequentei com algum
desinteresse as muitas outras cadeiras de arqueologia Bíblica,
psicologia e muitas mais que pretendiam tomar o lugar do profundo
conhecimento que buscava de Deus. Como nunca aceitei que tudo aquilo
seria a formação ideal para quem só queria viver com e perto daquele
Deus Omnipotente que criou o mundo inteiro e Quem eu ainda não tivera
ainda sequer o privilégio de começar a conhecer pessoalmente em tanto
tempo de vida já, tempo esse que comecei a pensar estar a desperdiçar
definitivamente, perguntei a Deus qual seria a Sua vontade para a minha
vida. Não obtive resposta categórica, mas instintivamente afastei-me
daquele berço dourado da teologia que não reconhece Deus nas suas
vivências, porque quem fala de Deus muito dificilmente fala com Ele a
não ser de forma muito dissimulada e unilateral. Descobri que qualquer
pessoa pode falar ao telefone sem ninguém a responder do outro lado. E
daí a pensar que crer é precisamente pensar que se é ouvido mesmo sem o
auscultador na outra ponta chegar a ser levantado, vai-se tornando
possível porque as pessoas desejam tanto manifestar ter 'razão' nas suas
crenças, principalmente se estas agora se podem basear na Bíblia!
Torna-se mais atractivo ter-se mais algum fundamento que não apenas
mentiras descaradas, para assim nos gloriarmos ainda mais e melhor sobre
os outros que passam a ser para sempre os inimigos da fé! É o caso das
testemunhas de Jeová, Católicos, Protestantes e mais haja, pois uns
serão sempre mais concisos em verdade que outros, o que também seria de
esperar! Há burros que falam menos e mais que outros para se fazerem
ouvir à sua maneira - uns falando menos, outros gritando mais.
É um facto assumido que Deus até pode falar pela pequena boca de
criancinhas (e por burros!) e essa conclusão começou a agoniar-me
incessantemente, levando-me ao ponto do inconformidade e da
desconsolação dum desespero total. Sentia-me como um peixe fora de água,
daqueles que respiram fora do seu ambiente natural e também não entendia
muito bem porquê. Por vezes sentia-me como uma ave envolta em maciço
crude e que por essa razão não poderia voar nunca. Ouvia falar do pecado
original como sendo a única causa daquela angústia de não poder ver Deus
mesmo de forma invisível. Eu por outro lado sentia que nascera tal ave
num mundo cheio de denso crude ao qual todas as outras aves se haviam
adaptado, pensando e acreditando mesmo não ser possível nem aconselhável
sequer tentar voar. Sentia que algo estaria errado se não pudesse vir a
voar ali e agora, mesmo antes de morrer. Uma ave tem de poder voar, se
não for anormal! Não fomos nós todos criados à imagem de Deus?
Via muitos dos que comigo estudavam teologia a viverem vidas profanas -
alguns chegavam mesmo a fazer vida conjugal com suas namoradas sem
estarem casados - e eu perguntava-me se era aquilo que Deus alguma vez
abençoaria! Se já não aceitava que o mundo o fizesse, imagine-se aceitar
tal coisa em quem fala de moralidade para poder fazer tudo aquilo que
lhe apetece! São os do mundo que matam e violam - mas os crimes mais
horrendos são salvaguardados pela religião! Deixei de estudar e comecei
a trabalhar a tempo inteiro até que Deus me desse mais clareza sobre o
que de mim pretendia - se Ele me respondesse ou existisse. Entretanto,
esta guerra paralela que sempre tive com as igrejas em busca de Deus
interiormente por não aceitar que verdade fosse apenas e tão só certas
verdades apenas faladas, era incessante e não se apaziguava com qualquer
explicação por mais verdadeira que fosse e que cada dia se
intensificava, tornando-se pior a cada momento que passava. Não
conseguia aceitar que Deus não fosse realmente vivo, porque se Deus
condena a hipocrisia, por certo o fará por uma razão verdadeiramente
válida. Aprendera e confirmara no entanto que encontrar Deus e
satisfazer a enorme sede que quase me sufocava, teria de ser
pessoalmente, pois não sabia como encontrar quem me pudesse ajudar,
porque tentar nadar naquelas águas já de si gélidas, estando estas
profanadas de espesso e negro crude também, seria impossível quanto mais
aconselhável! Eu sentia que havia sido criado para voar bem alto e as
palavras "se Eu vos libertar sereis verdadeiramente livres", confirmavam
esta ainda jovem presunção. Por isso logo e cedo pensei que
ninguém me poderia ajudar. Bendita revelação esta! Hoje sei ser esta a
única via de facto para se poder ver e experimentar o milagre que muitos
hão tentado explicar e assim desvirtuar, mas em vão. Nunca poderemos
buscar Deus numa instituição, mesmo verdadeira ou apenas falsa,
porque Deus é nem mais nem menos que uma pessoa real que nos quererá
para sempre!
Tinha na altura cerca de vinte e dois anos de idade, embora me dessem
mais de trinta pela maturidade que evidenciava e já nada me convencia
que Deus não existia, nem que fosse pelo pecado que havia! Como não era
solução criticar quem estava menos errado que eu, comecei então a
depender duma luta pessoal e su generis mais virada para Quem me criou e
que não me escutava sem eu saber muito bem porquê, do que para quem não
me conseguia dar qualquer conforto à angústia que sentia dentro de mim.
O único problema que aderira à minha pele, seria o flutuar bastante
tempo sem qualquer Verdade interior, isto é, Cristo em pessoa. Através
dessa maneira de ser, aprendi a desconfiar assiduamente de tudo o que me
batesse à porta, permitindo-me ouvir apenas e tão só quem eu tal coisa
permitisse - e eu punha-me a mim próprio no topo da lista dos possíveis
falsos! Por outro lado, assumia que provavelmente nunca conseguiria
descobrir Verdade por ver tantos enganados à minha volta, alguns dos
quais amigos meus! Fui viver perto de uma igreja reformada portuguesa em
Pretória, onde fiz alguns outros amigos que tinham as mesmas lutas
interiores que eu e com quem podia conversar abertamente de tudo o que
estava mal e bem nas igrejas que falam de Deus. Mas nunca chegávamos a
qualquer conclusão. Um desses amigos era cego devido a alguém lhe ter
atirado soda caustica para os olhos e cara, desfigurando-lhe o rosto por
completo, sendo a partir daí que começou a procurar Deus para que fosse
curado por Ele. Por vezes é preciso ser-se cego para se começar a querer
ver - os mistérios que a vida contém!
Nesta altura, eu tive um acidente grave num triciclo motorizado que me
havia sido oferecido por maçónicos, embora eu não soubesse que o eram.
Entrei em contacto com esta seita satânica que passei a conhecer também
involuntariamente. Essa ocorrência que quase me custou a vida antes de
saber onde morava o único Mestre que me podia responder, não só com
palavras mas com vida infinita dentro e fora, às muitas questões e
angústias de espírito que teria para Lhe colocar muito urgentemente. Se
morresse na altura estaria perdido para sempre. Escapei ileso enquanto
que a moto foi para a sucata sem arranjo possível. Comprei então um
carro usado o qual adaptei e do qual me servia para me deslocar de um
lado para o outro. E foi neste carro que os grandes milagres da minha
vida começaram a suceder-se uns atrás dos outros - não que eu os achasse
assim tão extraordinários, porque a maturidade também dá calma a quem vê
o impossível. Estes foram dos momentos mais belos por que passei na
altura, porque vim a conhecer um pouco melhor Quem me criou.
Mais adulto do que já era, comecei a ler a Bíblia com mais calma e com
mais intensidade, sabendo que quem me chamava e batia à porta, me daria
as únicas ocasiões necessárias para conhecer o que de verdade podia
existir nesta vida - e não seria tão pouco como isso. "Aquele que crê,
não se apresse", diz a Bíblia, a menos que tenha uma razão valida para o
fazer. Só existe uma razão para as oportunidades que Deus nos dá serem
únicas e infalíveis - é estas poderem ser seguramente factuais à
primeira, as quais à segunda poderão lá já não estar. Ia e vinha duma
cidade para outra ao sabor do vento que Deus mandava contra a minha
pequena e podre caravela, que gemia com o movimento, sem estar ainda
muito seguro daquilo que pretendia. Mesmo assim, já era levado a ensinar
a muitos o que entendia de Deus. Isto fazia com a dedicação possível de
quem começou a pensar que o que viesse no futuro, por certo viria. Mas a
angustia não desaparecera, apenas se transfigurara - vivia numa calma
aparente e igualmente deplorável. Não será bom os ímpios terem paz. Por
isso diz a Bíblia: "os ímpios, diz o meu Deus, não terão paz; são como o
mar bravo que se não pode aquietar". Esta falsidade acompanhou-me
assiduamente durante algum tempo, até que me apercebi que ainda
continuava a estar sem o Algo que procurava. Nada mais razoável que
encontrá-Lo sem mais perdas de tempo. "Aquele que busca, encontra",
disse Cristo, "se Me buscar de todo o seu coração".
CAPÍTULO 4
Havia deixado de frequentar o dito curso de teologia e, à parte da vida
normal de trabalho onde ganhava apenas o suficiente para me suster e
alimentar devidamente, comecei também a pedir a Deus que me levasse a
qualquer lugar do mundo onde pudesse encontrar qualquer trilho, recente
ou antigo, que me levasse a Ele sem mais demoras. Nunca me apercebi
porém que estaria para breve esse mais que esperado encontro, porque
"aquele que pede, recebe". No entanto, tive de esperar até não mais
poder continuar sem ver a vida que me havia sido prometida, sem nunca a
ter encontrado e sem sequer ter qualquer explicação para tal 'fenómeno'.
Por aquilo que lia, da Bíblia, seria impossível não encontrar Deus.
Vendia aspiradores de casa em casa (difícil eram as casas com escadas
por causa da cadeira de rodas!), e por esse método vim a bater à porta
de pessoas com quem ainda hoje mantenho fervorosos contactos. Uma dessas
senhoras era crente não só convicta, mas real, tendo precisamente Quem
eu ainda buscava. Ela não era simplesmente convicta, mas sim convencida
e dominada para uma vida sem igual de dentro para fora - e eu que
buscava mais do que nela via, angustiei-me ainda mais, pois via que
buscava bem!
No entanto, sabia que nada disto me servia, fosse de que modo olhasse
para o problema. Nada fora de mim poderia ser-me real e salvador, mas de
qualquer modo, deu-me uma grande esperança na busca do que eu sabia
existir cada vez mais sem qualquer sombra de dúvida. O facto desta
senhora ter parte do que eu, enfim, procurava, trouxe-me algum alento,
pois concluí que não estava errado no que pensava e esperava de um Deus
que se quer vivo - mas mesmo assim não resolvia nada em mim. Apenas me
dava alento e esperança o saber que afinal Deus existindo em nós,
haveria de ser realmente real. Não arredaria pé desta plena busca sem
encontrar Quem buscava. Nestes momentos não me apercebia dos versículos
Bíblicos que diziam "se Me buscardes de todo coração, ali me achareis",
"aquele que vem a mim, de maneira nenhuma o lançarei fora", mas mesmo
sem estar ciente deles e embora os conhecesse muito bem, fazia por minha
própria e espontânea iniciativa o que ali se descreve e pede. Como os
que pregavam sobre estes versículos me pareciam inócuos, então fazia por
não confiar na própria experiência por temer tornar-me inócuo também,
isto é, não olhava com muito bons olhos para aquilo que em mim se
passava por estar a assossiá-lo às instituições religiosas por onde
passara. Uma coisa leva à outra e normalmente associamos tudo o que em
nós se passa com o que à nossa frente se desenrola, por exemplo, alguém
que busque Deus em pessoa, se viver entre idolatria, associará sempre
Deus a imagens inertes e daí poderá sobressair uma fé tão fictícia e tão
inerte em plena arrogância, que muito fará por se auto estabelecer e
preestabelecer através de tais meios ilícitos de arrogância e afronta a
Deus, isto é, biblicamente falando. Lemos na Bíblia que "o Senhor
resiste aos soberbos", daí existir muita arrogância em quem não O
conhece e estabelece que conhece Deus através de meras formas normativas
de vida no fundo ilícita, sendo até bastante visível por quem também
arrogantemente se desfaz de Deus chegando até a rejeitar Deus por
'culpa' destes líderes inócuos e sem vida. Sublinho no entanto que aqui
sempre existirão dois culpados e nunca um apenas, porque a culpa suprema
será sempre de quem não conhece Deus e não da causa que a tal ignorante
resistência leva por parte de quem gostaria que Deus no fundo não
existisse, isto é, bastando para isso acreditar que Deus de facto não é
por causa do que vemos em líderes mais que profanos e não por causa do
nosso próprio pecado. Esta verdade em mim, de que eu era o único culpado
ao não saber do paradeiro de Deus, misturava-se muito na altura com o
apontar do dedo a outros culpados também, o que também é ilícito.
"Qualquer um que venha a Mim..." tem plenos poderes de desfazer qualquer
dúvida a esse respeito e mais não será preciso dizer.
Sem querer-me alongar muito sobre este período bastante confuso de
momentos hilariantes de busca consciente de Quem vive para sempre, o
facto de estar cada vez mais perto d'Ele não me satisfazia em nada,
apenas me dava um certo alento que também não passava de ser uma outra
forma de fome e sede de Justiça. Tinha de encontrar Quem me criou e
chamou, nem que para isso tivesse que passar por alguma experiência
desagradavelmente inesperada de morrer devido à presença do Ser que até
ali desconhecia por completo e de Quem havia já ouvido e ensinado
bastante em variadíssimas circunstâncias. Eu temia que algo me pudesse
ocorrer de facto tal era a certeza que possuía naquilo que haveria de
ser verdade, mas como havia um vazio em mim que não mentia e o qual eu
não tinha como explicar, pensei que talvez tal coisa nunca fosse
ocorrer. Mas também já estava preparado para tudo, pois pensava que
qualquer coisa que me pudesse vir a suceder por estar a buscar o meu
criador, nunca teria desfecho pior do que aquele da vida que levara até
ali. Buscaria eu o meu Criador e morreria quando a Bíblia diz "buscai-Me
e vivei"? Seria tal coisa possível? Nesta maré do tudo ou nada,
aproximei-me do auge do desespero, buscando e não encontrando. Porém,
não desistiria nunca acontecesse o que acontecesse, pois é fácil
desistir a meio gás nesta difícil busca que exige a todos por de lado
qualquer preconceito ou mesmo preceito sobre verdades e mentiras. Muitos
não conhecem verdade nenhuma - mas conhecê-la não é nunca o mesmo que
tê-la e experimentá-la. Já O havia "aceite" como meu Salvador não sei
quantas vezes, (coisas que se pregam por aí baseando-se em verdades sim
mas que nunca funcionam!) sem que nada de especial se tivesse passado,
pois o que mais desejava seria encontrá-Lo cara a cara e por mais
sabendo que agora seguramente contemplava a verdade. Fiz-me então à
aventura de clamar a Ele duma vez por todas. Mas só acabei por
encontrá-Lo quando já nada mais podia fazer a não ser deixar-me sucumbir
em lágrimas num espírito de 'agora já não posso mais!'
Estava numa pensão, vivendo e comendo lá, com uma renda mensal. Era dali
que saia todos dias para ir vender aspiradores ou para ir para a
faculdade. Um belo dia apertou-se-me o coração de tal modo que não
conseguia descrever o que comigo se passava. O aperto era tão grande que
nem dava para pensar no sufoco que me trespassava profundamente, mas
dava tão só para pensar para aonde esta ânsia de espírito muito estranha
e anormal desejava que fosse - ao que ela levava era-me bastante lúcido
e claro. O que era, eu não entendia. Estive na casa da senhora que
mencionei acima e ao fim dessa tarde, já anoitecendo, apertou-se-me o
cerco ao coração ainda mais. Já não poderia continuar mais assim,
pensava - estava de rastos, no fim da busca. Seria agora ou nunca mais,
pensei. Não sabia o que esperar, nem como foi. Deu-me um medo estranho.
Como podia eu estar a falar assim com Deus como que 'exigindo' ali e
agora que me resgatasse da perdição em que me encontrava há já bastante
tempo? Seria Ele surdo? Foi uma coisa estranha que passou por mim, pois
não me lembro sequer de alguma vez pensar em orar a Deus daquela maneira
- hoje sei que essas são as orações que são ouvidas. Uma tristeza
palpável apoderou-se de todo o meu ser, de tal mod