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WATCHMAN NEE


PREFÁCIO

Este relato da vida e ministério de Watchman Nee é apresentado do ponto de vista do observador que se encon­tra distante e que em tempo algum esteve envolvido no cenário chinês. Quando, em 1938, jovem missionário pres­tes a deixar a Inglaterra com destino à índia, tive o pri­vilégio de passar algumas valiosas semanas na sua compa­nhia, descobri que todo o panorama que eu tinha da vida e do serviço cristãos estava grandemente enriquecido e re­cebera nova direcção e propósito; e agora que me coube a tarefa de dar forma escrita à sua notável história, uma vez mais ele influenciou minha maneira de pensar. Pois, como seria de esperar, sua mensagem e sua vida acham-se inextrincavelmente entretecidas. Colocando-se uma no con­texto da outra e fazendo pleno uso de suas próprias historietas, que são muitas, e atentando para a interpreta­ção que ele lhes dá, podemos acompanhar a mão de Deus no curso de sua peregrinação através de um cenário de acontecimentos que abalam o mundo.

No decorrer dos anos tive o privilégio de encontrar-me com muitos que conheceram Nee na intimidade e conversar com eles e é em grande parte a essas pessoas que devo o quadro vívido que possibilitou a sua reconstrução nestas páginas.

Alguns encontros anteriores foram breves demais e, para meu pesar, circunstâncias predominantes não me permitiram ir em busca de alguns deles. Desses relatos pessoais, muitos se encaixaram proveitosamente para re­forço mútuo, mas, para alguns detalhes tive de depender — e achei certo fazê-lo — da evidência de testemunhas que fizeram citações de memória. Além do mais, de quando em quando — onde a evidência era insuficiente — tive de fazer minhas próprias deduções piedosas quanto a ocasiões e sequências precisas e, por amor à brevidade, tomar alguns atalhos. Por quaisquer erros e inconsistências que houver nestas páginas, devo assumir responsabilidade pessoal, bem como pelas minhas avaliações de Nee e de seus colegas. Peço desculpas especialmente por qualquer pesar ou inconveniência que pudesse resultar de minha compreensão errónea dos signi­ficados, causas ou motivos que estão por trás dos acon­tecimentos.

Recebi muita assistência de muitas pessoas, e em pri­meiro lugar devo registrar a imensa dívida que tenho para com Watchman Nee em todo o meu trabalho, pelas versões e traduções talentosas feitas pela finada Srt.a Elizabeth Fischbacher do melhor que ele pregou e escreveu. Ela captou e preservou com muita habilidade o espírito do homem e parece que até aqui as contribuições que ela fez não foram reconhecidas, no que tange à série de livros de autoria de Nee que tive o privilégio de redigir. Valho-me deles de novo no presente volume. Na interpretação dos acontecimentos, a perspectiva que adotei deve muito, em diversos pontos críticos, à amadurecida sabedoria espiri­tual de outro servo de Deus. Refiro-me ao finado Sr. Faithful Luke, amigo de Watchman Nee desde os dias da infância.

Em períodos diferentes recebi grande ajuda na forma de reminiscências e impressões, documentos privados, tra­duções, etc, das seguintes pessoas: T. Austin-Sparks, Hubert L. Barlow, David Bentley-Taylor, Joy Betteridge, Dorothy Beugler, Lena Clarke, Elizabeth Fischbacher, Theodore Fischbacher, Sr.a Nancy Gaussen, Doris E. Hinckley, Herald Hsu, Hilda Holms, Victoria Holms, Mary Jones, Sophia Jorgensen,  Stephen Kaung, Witness Lee,

Gaylord Leung, Serene Loland, Faithful Luke, Leslie T. Lyall, James Ma, Shepherd Ma, George McHaffie, Kristeen Macnair, SimonMeek, JoyMeggach, D. VaughanRees, Sr." Carol T. Stearns, Newman Sze, A. G. Taylor, Mary Wang, K. H. Weigh, Mary Weller, Sr.a Betty Williams, Lucas Wu. Alan C. L. Yin. Nas Notas faço reconhecimento das fontoH impressas.

Devo também expressar minha gratidão à Srt." Jean Wood e à Srt." Rosemary Keen da Church Missionary Society e ao Dr. Jim Broomhall e à Srt.a Irene King da Overseas Missionary Fellowship pela ajuda espontânea; e a Hugh Fuller da Victoria Press pelo seu estímulo e grande paciência enquanto eu escrevia este livro. Desejo agrade­cer muito afetuosamente aos quatro que leram todo o manuscrito e ofereceram construtivos conselhos: Gaylord Leung, Janet Killeen, Leslie T. Lyall, e Jane, minha esposa, que executou todo o trabalho de datilografia.

Uma palavra sobre a transliteração dos nomes chine­ses. Exceto onde as soletrações mais antigas têm sido universalmente empregadas, tentei seguir o sistema Wade-Giles, mas, sem os "enfeites". Quer dizer que, como nos jornais e nos livros de consulta omiti os acentos e após­trofes por não terem sentido para a grande maioria dos leitores da língua inglesa (o que vale também para a tra­dução em português — N. do T.). As falhas que houver são devidas à minha própria ignorância da língua chinesa. Com o intuito de reduzir no texto o número de nomes pessoais difíceis, acrescentei um capítulo "Quem é Quem" da famí­lia Nee e de outros personagens importantes na história.

As Notas Sobre o Texto (no final do volume), além de reconhecer fontes valiosas e apresentar sugestões para leitura posterior, destinam-se a incorporar uma bibliogra­fia mais ou menos completa dos escritos e discursos pu­blicados de Watchman Nee disponíveis em inglês até à data da publicação deste livro, vinculados, onde possível, com sua data de origem e ambiente histórico.

A tarefa de preparar este livro foi recompensadora e nela pude sentir a constante ajuda de Deus. Às mãos de Deus e para seu uso, confio este trabalho.

ANGUS I. KINNEAR Londres, 1973

 

QUEM É QUEM

A FAMÍLIA NEE (NI) - (NO DIALETO DE FOOCHOW: NGA)

Avô de Watchman:

Rev. Nga U-cheng (U. C. Nga) de Foochow, nasceu em redor de 1840; pastor congregacional, ligado à American Mission Board, Foochow. Morreu em 1890.

Pais de Watchman:

Ni Weng-hsiu (W. H. Ni) ou Nga Ung-siu de Foochow, nasceu em 1877, o quarto de nove rapazes. Oficial no Serviço da Alfândega Imperial. Morreu em Hong Kong, em 1941.

Lin Huo-ping (Peace Lin, em português Lin da Paz) de Foochow, nasceu em 1880. Morreu em Swatow no ano de 1950.

Os nove filhos:

1.  Ni Kuei-chen, nascida em 1900 (Sr.a H. C. Chan).

2.  Ni Kuei-cheng, nascida em 1902 (Sr.8 P. C. Lin).

3.  Ni Shu-tsu ou Henry Nee (ou no dialeto de Foochow, Nga Shu-jeo) nascido em Swatow no dia 4 de Novembro de 1903; novos nomes (i) Ni Ching-fu, (ii) Ni To-sheng ou WATCHMAN NEE. Casou-se com Charity Chang. Mor­reu na Província de Anhwei dia 1." de junho de 1972. O casal não teve filhos.

4.  Ni Huai-tsu ou George Nee, químico pesquisador.

5.  Ni Sheng-tsu, que faleceu ainda nos tempos escolares.

6.  Ni Tek-ting (Sr.a L. H. Wong).

7.  Ni Teh-ching (Sr.a Chang).

8.  Ni Hong-tsu ou Paul Nee.

9.  Ni Hsing-tsu ou John Nee.

A FAMÍLIA CHANG

Pai de Charity:

Rev. Chang Chuen-kuan (C. K. Chang) de Foochow, pastor em Tientsin, ligado à Christian and Missionary Alliance.

Seus filhos:

1.  Chang Pin-tseng ou Beulah Chang (Sr.8 G. S. Ling).

2.  Chang-Pin-fang ou Faith Chang (Sr.8 K. L. Bao).

3.  Chang Pin-huei ou CHARITY CHANG (Sr.8 Watchman Nee). Morreu em Xangai, em outubro de 1971.

4.  Chang Yi-lun ou Samuel Chang.

ALGUNS LÍDERES E OBREIROS CRISTÃOS

* O asterisco indica os diretamente associados com a Church Assembly Hall (Movimento "Pequeno Rebanho").

* John Chang (Chang Kwang-yung), antigo obreiro de Xan­gai.

* James Chen (Chen Tseh-hsin) de Amoy, obreiro em Hong Kong.

* Stephen Kaung (Chiang Sheo-tao), obreiro em Chung-king.

* Srt.8 Ruth Lee (Li Yuen-ju) obreira encarregada da Livraria de Xangai.

* Witness Lee (Li Shang-chou)  de Chefoo;  mais tarde obreiro "Sénior" de Xangai e Taiwan.

* Philip Luan (Luan Fei-li) de Xantung, obreiro em Hang-chow.

Faithful Luke (Liok Tiong-sin) de Kutien, obreiro na Indo­nésia.

o Shepherd Ma (Ma Muh) comerciante cristão em Xangai.

* Simon Meek (Miao Shou-hsun) de Lieng Chieng, obreiro em Manilha.

Mary Stone,médica (Shih Ma-yu) primeira médica chinesa e fundadora do Hospital Bethel, em Xangai.

John Sung, Ph. D. (Sung Ju-un) pregador reavivalista as­sociado com Bethel Evangelical Band.

* Daniel Tan (Chen-Chu-yen) de Amoy, obreiro em Singa­pura.

* John Wang (Wang Lien-chun), presbítero em Foochow.

* Leland Wang (Wang Tsai) de Foochow, fundador da China Overseas Missionary Union.

Wang Ming-tao, pastor fundamentalista do Tabernáculo, Pequim.

* Srt.a Peace Wang (Wang Pei-chen), obreira em Xangai. Wilson Wang (Want Tse) de Foochow, irmão e colega de

Lelan Wang.

K. H. Weigh (Wei Kwang-hsi) de Kutien, obreiro em Hong

Kong. K.  S. Wong (Wong Kai-seng),  comerciante cristão em

Singapura.

* Lukas Wu (Wu Jen-chieh) de Tsinkiang,  obreiro em

Manilha.

* Dr. C. H. Yu (Yu Cheng-hua), oftalmologista, presbítero

em Xangai. Srt." Dora Yu (Yu Tsi-tu), evangelista e professora de Bíblia, instrumento na conversão de Watchman Nee. Faleceu em 1931.

* Alan C. L. Yin, gerente cristão de Sheng Hua Pharma-ceutical Company.

12

 

CAPÍTULO 1

 

O PRESENTE

A primavera já ia adiantada no Reino Médio e a estação de Brilho Puro dera lugar à estação de Chuva do Trigo. O ar da noite estava claro com nuvens lanosas que eram levadas pelo vento sob uma lua prateada. Foochow-fu havia fecha­do suas sete portas localizadas sob suas torres fantásticas de vários pavimentos. Dos muros em ruínas, com suas ameias, canhões obsoletos, viam-se os amplos campos de arroz e os subúrbios que se espalhavam. O tráfego de pedestres havia cessado na Ponte das Dez Mil Idades, já com oito séculos de existência, que ligava a cidade na margem norte com as ilhas de Chung-Chou e Nantai. Não havia névoa naquela noite para cobrir a barafunda de sampanas dos moradores de barcos do rio Min.

Entre as ruas e casas apinhadas, a zoeira do dia cessara há muito tempo. Cessaram também os ruídos rítmicos dos artífices de rua, as canções dos cules de bambu levando pesadas cargas, o ranger de enormes pilões des­cascando arroz, o interminável arrastar de sandálias de palha, o grunhido de bandos de porcos levados para o mercado, os gritos de vendedores ambulantes e os apelos lamentosos dos pedintes. Tudo isso havia caído no silêncio e, de igual modo, também, muito gradualmente, as últimas passadas em direção ao lar através da pista estreita: uma cadeirinha tipo liteira com carregadores fatigados trazendo para casa uma autoridade escolar que trabalhava até horas tardias da noite; um bando de tagarelas estivadores retor­navam de carregar uns trastes velhos para aproveitar a maré; um viciado cambaleante arrastava-se por sua inces­sante ânsia de conseguir o mortal "fumo estrangeiro". Agora, afinal, tudo estava calmo. No movimentado lar Nga a grande família dormia.

“Po-po! po-po!” Ao lado do marido que dormia, Lin Huo-ping mexia-se inquieta sobre sua esteira, consciente nessa noite de que secretamente havia o terceiro filho em seu ventre. Ela ouvia. De Kuein-chen e do pequeno havia apenas o respirar calmo. “Po-po! po-po!” De novo aquele som mais alto. Deve ser o vigia da noite fazendo seu circuito, alerta enquanto quase todos os homens dormiam, para dar o alarme de fogo, ou de ladrão, ou de qualquer outro perigo. “Po-po! po-po!” A pancada tranquilizadora (to-shengj de seu bambu ia diminuindo agora enquanto se ouvia a voz semelhante à de taquara rachada, chamando:

"Já passa de meia-noite, vizinhos. Tudo está bem!"

Uma lamparina de azeite com pavio flutuante banhava o pequeno quarto com seu fraco brilho. A chama tremeluzia enquanto Huo-ping, deitada de costas, tinha certeza de que tudo estava bem. Fechou os olhos uma vez mais, porém não conseguia dormir. De novo, talvez pela centésima vez, ela sussurrou: "Que seja um menino!" Ela recordava-se com ardente ressentimento do mexerico da família nesse dia, das palavras mordazes e zombeteiras que fizeram tão dolorosa esta visita à casa de seus parentes. A sociedade chinesa atribuía muito valor aos filhos varões e para seus amáveis Nga Ung-siu ela já havia tido duas meninas. Sua sogra cantonense ficara furiosa. A infeliz esposa de seu filho mais velho só gerava meninas — seis — e a mulher de Ung-siu, afirmava ela, ia pelo mesmo caminho. "Vinga-me, ô Deus", clamava Huo-ping agora em amargura, "e afasta para longe esta censura!" Então, de algum modo voltou-lhe à mente a promessa desanimada que ela havia feito e com tanta rapidez esquecida quando, um ano atrás, estava grávida pela segunda vez: "Deus", havia ela orado então, em palavras semelhantes às de Ana, "se me deres um filho varão, ao Senhor o darei por todos os dias da sua vi­da". Eram palavras bem conhecidas. Desde a infância ela conhecia a história de Samuel. Mas, agora, de repente elas lhe suscitaram ao coração um impulso que ela não sentira antes. Ela não somente as diria, mas, era essa a sua inten­ção. Não hesitou. "Cumprirei minha palavra, Senhor!" Exclamou. A calma voltou-lhe afinal. Sorrindo, ela cochilou e voltou a dormir.

Longas semanas deviam passar e ela faria uma viagem por mar à sua casa em Swatow. Mas, as suas dores vieram afinal, e oh! o indizível alívio quando ela ouviu o marido gritar: "É um menino!" A tensão aliviou-se em lágrimas quando se viu esmagada pela alegria. Portanto, desta vez, quando os ovos de pata avermelhados foram enviados aos vizinhos e aos amigos, deviam anunciar o tão esperado filho e herdeiro.

Assim, no dia 4 de novembro de 1903, Henry Nga veio ao mundo para ser o deleite de seu tranquilo pai e de sua obstinada mãe. Os nomes chineses são significativos, dando-se à criança um novo nome ou assumindo-o ela num momento decisivo de sua carreira. De início, segundo a tradição da família, ele chamava-se Nga Shu-jeo no dialeto de Foochow, ou em mandarim, Ni Shu-tsu, "aquele que anuncia os méritos de seus antepassados". Anos mais tarde, porém, consciente de uma nova missão na vida, ele buscou um novo nome que expressasse seu sentido de dever para com seu povo como vidente e porta-voz de Deus. Por algum tempo ele chamou-se Ching-fu, "aquele que adverte ou admoesta"; mas este conceito parecia severo e ele não estava de todo satisfeito. Foi sua mãe quem então propôs To-sheng, um som de gongo ou toque de alarma,2 lembran­do a ele a promessa que ela havia feito na noite insone enquanto o vigia ia batendo pelas ruas seu gongo ou chocalho [to] de bambu para emitir seu som (sheng) que se ouve de longe. Assim ele se tornou Ni To-sheng, ou em inglês, Watchman (Vigia) Nee, como geralmente o conhe­cemos. Através da vida, ele disciplinou-se para ser como Samuel, alerta enquanto outros dormiam, sineiro sacerdo­tal de Deus que adverteria o seu povo do perigo ou o despertaria para o raiar de um novo dia.3

CAPÍTULO 2

HONRA OS TEUS ANTEPASSADOS

Foochow é a capital provincial de Fukien e uma das portas da China para o sul do oceano. Durante gerações, tinha sido o lar da família Nga (ou Nee), cujos membros iam, por ocasião de cada primavera, a uma encosta para cuidar dos túmulos de seus antepassados. Em 1839, mais ou menos ao tempo em que nasceu Nga U-cheng, avô de Watchman, romperam-se hostilidades entre a China e a Inglaterra por causa das irritantes restrições imperiais sobre o comércio estrangeiro. A chamada Guerra do Ópio, que durou três anos, em consequência das hostilidades, terminou em hu­milhação da China e abertura obrigatória de relações di­plomáticas com o Ocidente. O Tratado de Nanquim, pelo qual Hong Kong foi cedida por completo à Inglaterra em 1842, também abriu Foochow e mais quatro portos marí­timos ao comércio estrangeiro, com todos os seus escânda­los e abusos. Embora prosseguisse o comércio costeiro nativo — madeira, papel, frutas e têxteis — surgiu pa­ralelamente um novo e indesejável empreendimento de fábricas e residências de estrangeiros na ilhota de Chung-Chou, situada no meio do rio e nas remotas ladeiras da ilha de Nantai.

Cinquenta anos antes, o sábio imperador Chien Lung, conhecendo talvez algo da usurpação britânica na índia sob Clive e Warren Hastings, havia pacientemente expli­cado numa carta a George III da Inglaterra que a economia auto-suficiente de seu Império não tinha espaço para os produtos esquisitos do povo que vivia distante nas profun­dezas do mar. "Conforme seu enviado pode ver por si próprio, possuímos de tudo. Não dou valor a objetos es­tranhos e engenhosos e não tenho uso para os artigos de seu país." Nos círculos oficiais, ainda predominava essa opinião. Mas a Europa demandava cada vez mais a porce­lana, a seda e a laca ou verniz chineses; e uma vez que por ordem imperial a permuta lhes era negada, os comercian­tes ingleses deviam pagar em prata. Este grave problema só foi resolvido quando eles descobriram que os chineses podiam ser induzidos a comprar ópio indiano. O princípio de troca pôde, pois, entrar em funcionamento para van­tagem dos estrangeiros e, em 1851, a resistência do Filho do Céu tinha sido erodida de tal maneira que o ópio foi legalizado.

O fator que acima de tudo mais levou o comércio às alturas foi a procura do chá por parte da Europa. Em 1853, quando Nga U-cheng contava mais ou menos quatorze anos, os primeiros carregamentos de chá de Foochow, transpor­tados por via fluvial desde as regiões montanhosas de Wu Yi Shan, já estavam sendo expedidos do porto do Rio Min para os mercados da Europa e da América. Logo, as grandes embarcações chinesas com nomes importantes como Taeping e TermopyJae, ArieJ e FJying Spur, fariam deste porto o segundo no próspero comércio do chá, per­dendo apenas para Xangai.

A entrada do cristianismo protestante na China, como consequência do comércio exterior, foi outro resultado da Guerra do Ópio e do Tratado de Nanquim. Dos aconteci­mentos de 1842, um escritor ocidental contemporâneo podia dizer com espantosa complacência: "Os caminhos dos tra­tos de Deus com este povo começaram a abrir-se e Ele entrou em juízo com eles para que pudesse demonstrar-lhes Sua misericórdia."1 O lápis vermelho do imperador havia decretado que a fé cristã fosse tolerada em todo o Reino Médio, mas, o decreto fora extraído sob pressão militar. Não obstante, tal decreto escancarou as portas para os missionários ocidentais com sua preocupação so­cial e zelo evangelístico para entrar e balizar novas rei­vindicações de justiça nos corações chineses.

E o fizeram sem delongas. Em Foochow, os primeiros missionários a chegar em 1847 foram os congregacionais da American Board, seguidos no mesmo ano pelos metodistas e episcopais norte-americanos e, em 1850, pelos anglicanos da English Church Missionary Society. Os missionários não demoraram a protestar contra o iníquo tráfico de ópio; não obstante, visto que os estrangeiros de cabelo vermelho reivindicavam os privilégios de extraterritorialidade, nas mentes nativas era difícil distingui-los dos comerciantes e seu comércio.

A primeira escola a oferecer instrução de estilo oci­dental foi aberta pela American Board num subúrbio da cidade velha em 1853 e foi aqui que, quando menino, Nga U-cheng, avô de Watchman Nee, ouviu falar do amor de Deus em Jesus Cristo e foi ganho para Ele. Quatro anos mais tarde, em 1857, ano em que veio a existir a primeira igreja cristã em Foochow, ele era um dos quatro alunos batizados no rio Min. Fez tanto progresso que os missionários o prepararam para ser evangelista; e, logo, com outros jo­vens, estava pregando o evangelho do Senhor Jesus nesta cidade de meio milhão de almas. Finalmente foi ordenado pastor, o primeiro chinês a ser assim honrado nas três missões de Fukien do norte. Tinha o dom especial para expor as Escrituras e, por muito tempo depois de sua morte ocorrida em 1890, ainda era lembrado em virtude desse dom.

Sua grande prova aconteceu quando, como jovem ama­durecido, chegou o tempo de casar-se, porque eram muito poucas as mulheres de Fukien que criam em Cristo e, para ele, não se encontrava uma moça cristã. A gente de Foochow daqueles tempos era extremamente conservadora e por nenhum motivo transgrediria o costume de casar-se com alguém de outra província; não obstante, devia ir procurar noutra freguesia distante ou comprometer seu testemunho. Para ele significava muito que sua fé prevalecesse sobre a tradição. De Cantão, a mais de 700 quilómetros de distância por navegação costeira, aceitou uma jovem que provou ser a escolhida de Deus para ele e fez dele um verdadeiro parceiro para a vida, embora um tanto mordaz de língua.

Eles foram abençoados (aos olhos chineses) com nove meninos. Desses, Nga Ung-siu, pai de Watchman Nee, foi o quarto, nascido em 1877. Como filho de pastor, recebeu instrução escolar primária cristã e, depois, prosseguiu com o estudo dos clássicos confucionistas para submeter-se a exames competitivos. Foochow era um centro literário onde duas vezes em cada três anos reuniam-se alguns milhares de estudantes do distrito administrativo para exames do primeiro grau e novamente duas vezes em cinco anos vinham alunos de toda a província para prestar os exames do segundo grau. Com antiquíssima cerimónia, no tempo aprazado, Ung-siu e uma multidão de outros entraram na vasta área de exame no nordeste da cidade por uma porta onde se liam as palavras: "Para o Império: Orai por Homens Bons." Confinado ali durante três dias em sua própria cela individual, adornou seu rolo de papel pautado com colunas de caracteres bonitos, derramando seu conhe­cimento clássico num poema e dois ensaios sobre o tema proposto. As provas eram julgadas com estrita imparcia­lidade e seu sucesso no segundo grau conquistou-lhe, pouco antes do casamento, o posto de oficial "júnior" na Alfândega.

Sua jovem esposa, Lin Huo-ping, nascera em 1880, de pais camponeses, a última de uma família numerosa. Muito pobres e obscurecidos pela superstição, viviam no temor de demónios, de dragões e de fadas-raposas. Era um ano de fome em Fukien; e com tantas bocas famintas para alimentar, a menina tinha poucas hipóteses de sobrevivência. Mesmo em situações normais, apenas porque ela era uma sobrecarga, o pai podia abandoná-la na rua, ou afogá-la, ou sepultá-la viva. Na verdade uma criança ainda viva, se estivesse enferma ou definhando de fome, podia ser lançada, jun­tamente com os mortos, na alta abertura da espaçosa torre de bebé de Foochow, um receptáculo de granito em forma de urna, nos arrabaldes da cidade, destinada a poupar a despesa de enterro de crianças. O orfanato católico roma­no, fora da porta sul da cidade, oferecia um lar para apenas umas poucas meninas. A inscrição sobre sua entra­da dizia: "Se teu pai e tua mãe te desampararem, o Senhor te acolherá."

Mas, o pai de Huo-ping não a desamparou totalmente. Vendeu-a pelos três ou quatro dólares que necessitava desesperadamente, por meio de um intermediário, a uma família endinheirada da cidade que pensava em criá-la como escrava. Ela, porém, era uma menina viva e logo esta família foi procurada, de novo por via de um emissário, por um negociante chamado Lin, de uma firma estrangeira em Nantai. A concubina deste homem era estéril e desejava adotá-la como filha; assim, Huo-ping mudou de mãos outra vez. Na providência divina, o negociante também gostava de crianças e, aqui, ela encontrou um lar. Embora já houvesse dois meninos e uma menina na família, recebeu de coração aberto a garota vivaz recém-chegada e criou-a como se fora sua própria filha.

Ao chegar aos seis anos, segundo o costume quase universal, a mãe adotiva começou a amarrar-lhe os pés. Por este processo os dedos dos pés eram dobrados sob a sola, e o calcanhar e o tarso ainda não ossificados eram forçados juntos, apertando-se as faixas diariamente para deter o crescimento e maneá-la pela vida toda. Como menina camponesa, Huo-ping teria escapado a este trata­mento, porque as mulheres do campo de Foochow de longa data resistiam ao costume. Elas andavam a passos largos por toda parte, vigorosamente adornadas com adagas no cabelo e trabalhavam lado a lado com meninos e homens no cultivo de arroz. Embora todas as manhãs ela chorasse copiosamente por causa da dor cruel, nem uma vez sequer pensou em resistir. Agora, era filha de um negociante, destinada a melhores coisas. Pés delicados eram parte do preço que ela devia pagar.

Naquele ano, o Sr. Lin caiu doente em uma misteriosa enfermidade que desafiava a perícia dos médicos. Aconte­ceu que um superior dos negócios de Lin, chamado Chang, tornou-se cristão metodista e, por sugestão deste homem, pediram ao pastor metodista que viesse e orasse pelo Sr. Lin. Dificilmente poderiam recusar e a oração foi respon­dida; tão impressionados ficaram os Lin com a dramática recuperação que buscaram instrução cristã. Crendo afinal no Senhor Jesus, jogaram fora de seu lugar de honra no lar os pequenos e feios ídolos e o Sr. Lin e a esposa foram batizados na Igreja Metodista próxima do lugar onde ele trabalhava. Contudo, pelo fato de a igreja estar mais próxima e mais à mão para elas, a concubina e a filha frequentavam a Igreja da Inglaterra. Para grande alegria de Huo-ping, o dolorido enfaixamento de pés agora cessou e ela podia correr de novo livremente. À medida que aprendia os hinos e histórias da Bíblia, sentia o coração aquecer-se para as coisas divinas. Sua felicidade logo se com­provou contagiante. Indagada pelo professor da escola primária por que estava sempre cantando, contou-lhe a história de sua família, resultando disso que ele, também, com a esposa e filhos uniram-se à igreja.

Um negociante estrangeiro havia aberto uma escola primária na vizinhança, com professores cristãos e a esta escola Huo-ping foi enviada para estudar, continuando em 1891, aos onze anos de idade, na escola da missão metodista para meninas, administrada por norte-americanos. Ela ia sempre bem nos estudos e, através de fracasso espiritual e arrependimento, provou, também, algo da misericórdia e do perdão de Deus. Entretanto, sua religião ainda perma­necia em grande parte de méritos alcançados através de boas obras.

Quando chegava ao fim dos estudos ali voltou a Foochow uma jovem médica chinesa, Hu King-en, depois de treinamento em Filadélfia. Naquele tempo, ela era a segunda mulher em toda a China formada em Medicina. Sua chegada em 1895 para trabalhar num hospital da missão suscitou ambições em algumas moças locais; e no ano seguinte, aos dezesseis anos; Huo-ping pediu ao seu profes­sor que começasse negociações para ela, também, entrar numa faculdade de medicina nos Estados Unidos. Seu progresso na escola secundária foi tal que, para sua alegria, a resposta provisória foi favorável.-Portanto, convenceu o pai a enviá-la, na companhia de uma colega, para a Escola Chinesa Ocidental Para Moças, em Xangai, a fim de melhorar seu inglês. Foi sua primeira aventura fora de Foochow e a viagem por mar foi divertida. A cidade, quando a mocinha lá chegou, tinha veículos de rodas e a polícia sikh usava turbantes no Povoamento Internacional; e ainda naquela data, nos portões do parque ao longo do Bund continha avisos: "Proibida a entrada de cães e de chineses."

Entre chineses de uma estranha fala, logo sentiu saudade de casa; mas, a ambição reteve-a ali. Come­çou a revelar-se excelente nos estudos e a deixar-se cati­var, também, pelos padrões de vida mais elevados desta cidade semi-estrangeira. Logo, estava desviando as taxas enviadas para suas lições de música e usando de outros inventos para obter os dólares com os quais vestir-se mais de acordo com a moda. "Aprendi lá", escreve, "muito do orgulho da vida e alguns dos pecados da carne."

Um encontro especial revelar-se-ia significativo no pla­no de Deus. Uma certa Srt.a Dora You (Yu Tzi-tu), moça não muitos anos mais velha do que ela própria, visitou a escola, um dia, para falar aos alunos. Dora provinha de um ambiente culto e, como muitos outros, havia encontrado a Cristo enquanto frequentava uma escola de estilo ocidental. Bem-sucedida em seus estudos, havia partido para a Ingla­terra a fim de estudar medicina. Atravessado o Canal de Suez, seu navio ancorou no Mediterrâneo. Ali Deus a encontrou, chamando-a a abandonar sua carreira e voltar à China para pregar Cristo ao seu povo. Dirigiu-se ao capitão do navio aos cuidados de quem fora confiada e contou-lhe o que havia transpirado. Pensando que ela havia perdido o juízo, ele ficou irado; porém ela apegou-se com tal firmeza ao seu pedido que afinal ele concordou em trans­feri-la para um navio que voltava de Marselha. De volta a Xangai, a recepção que ela teve de sua família não foi menos fria, mas, seu testemunho silencioso foi tão convin­cente que eles tiveram de reconhecer que a mão de Deus estava sobre ela. A partir desse dia, entregou-se com cons­tância a dar testemunho de seu Senhor pela pregação e pelo ensino da Bíblia e com muito maior eficiência porque não recebia salário algum do exterior mas confiava só em Deus para suprir-lhe as necessidades.

Ouvindo a história de Dora de seus próprios lábios, Huo-ping ficou muito comovida. Huo-ping foi vê-la em seu próprio quarto para oferecer-lhe um anel de ouro de esti­mação, presente de sua própria mãe; e a óbvia relutância de Dora em aceitar tal presente de uma jovem convenceu Huo-ping ainda mais da autenticidade de Dora. "Então", diz, "vi que ela amava a Deus e não ao dinheiro".

Mas, para a própria Huo-ping, aos dezoito anos, não foi o chamado de Deus que veio, mas, o golpe de uma verda­deira catástrofe. Sua mãe ansiava por encontrá-la e sem­pre se opusera à sua ida para a América; e quando em Foochow a viúva cantonense do pastor Nga U-cheng enviou um homem à procura de uma parceira para seu filho, ela não deixou passar a oportunidade. Sem que Huo-ping soubesse, foi combinado o seu casamento com Ung-siu, e agora uma carta apoiada com toda a autoridade paterna trazia-lhe a notícia. Isso punha fim aos seus sonhos de fazer medicina, pois, nenhuma moça de Fukien havia até agora violado o costume ao ponto de quebrar um acordo paterno. Huo-ping significa Paz, mas, Tormenta descrevia-a melhor agora. Durante alguns dias, ela esteve em agonia de quase desespero. A deliciosa viagem marítima de volta ao lar, com o navio ziguezagueando entre as rochosas ilhas costei­ras, transcorreu sob uma nuvem escura de depressão. Em seu coração, ela nutria um crescente ódio pela mãe a quem ela devia a vida, porque agora o que restava dessa vida parecia estar em ruínas.

Após sua chegada ao lar, foi chamada e foi-lhe formalmente entregue a fotografia de Nga Ung-siu e o dote de noivado que fechava o contrato. Por ele, ela estava irrevo­gavelmente vinculada a este homem que ela nunca vira. À medida que se arrastava o verão de 1899 e avançavam os arranjos do casamento, seu pesar não diminuía. Somente moças indesejadas eram dadas como noiva, dizia para si própria. Outras podiam ser independentes e alcançar fama profissional. A vida, para ela, chegara ao fim. "Casamento: como eu odiava essa palavra!"

Outubro chegou e com ele o orvalho frio. No décimo-nono dia celebraram, em Nantai, a união do filho do finado pastor congregacional, Nga Ung-siu (que como oficial do governo na Alfândega Marítima com uma nova nomeação para Swatow devia, doravante, ser, em língua mandarim, Ni Weng-hsiu) e Lin Huo-ping, a filha adotiva do convertido negociante, rico e generoso. Foi um dia de alegria e cheio de esperanças. O jovem casal foi residir durante duas semanas no lar de Nga onde a Sra. Nga governava sobre sete filhos e cinco noras. O breve tempo passado ali no incómodo papel de esposa mais jovem foi, descobriu, mais do que suficiente para restaurar sua afeição por sua própria amorosa mãe. Decidiu que se tivesse filhos, as meninas nunca sofreriam o quanto sofreu nas mãos das mulheres daquela casa! Foi, pois, um alívio quando chegou a hora de partir com armas e bagagem, para Swatow e para o novo posto.

Em meio das despedidas de ambas as famílias, Ni Weng-hsiu levou a jovem esposa pelos dezoito quilómetros rio abaixo por sampana até ao porto oceânico na Ilha Pagoda para embarcar no barco costeiro. Estava apinhado de passageiros no convés com suas roupas de cama e trouxas e pequenas malas de pele de porco e com animais de toda espécie; mas, o congestionamento e os desconfortos da viagem por mar foram compensados pela rude beleza costeira à medida que as águas do rio lamacento davam abruptamente passagem para um claro mar verde. Uma viagem de quatrocentos quilómetros levou-os afinal a Swatow, o pequeno porto livre à embocadura rodeada de rochas do rio Han. Embora pequenina comparada com Foochow, possuía um rico "hinterland" e seu ativo comér­cio envolveria totalmente o Sr. Nee em seu trabalho de tributação. Aqui, no setor oficial, o jovem casal estabeleceu agora o lar.

Aquele ano de 1900 foi um ano de relativa tranquilida­de. Lá nas províncias do norte, o I Huo Chuan ou Punhos de Harmonia Justa, que os estrangeiros conheciam como "Boxers", estavam assassinando cristãos chineses e es­palhando loucura xenófoba. A astuta e inescrupulosa im­peratriz Dowager tinha ido mais longe; e buscando atrelar o perigoso movimento aos seus próprios interesses, havia emitido uma ordem para destruir todos os estrangeiros na China. Felizmente os vice-reis do sul escolheram, com grande custo pessoal, apoiar os "tratados desiguais" e ignorar seu decreto. Na cidade de Foochow, no momento crítico, as inundações providencialmente romperam a pon­te dó rio Min, separando Os assassinos de suas:pretendidas vitimas. Em Swatow, também, reinava um silêncio precá­rio. Neste silêncio nasceu Kuei-chen, saudado com espon­tâneo regozijo como indiscutível dom de Deus. Quando; porém, um ano depois, chegou Kueí-cheng, a alegria deles foi mais moderada. Tal era a força da tradição que pesou sobre os pais um senso de culpa. Por que teria Deus de confiar-lhes uma segunda menina? Cristãos simples como eram, sua confiança em Deus foi severamente provada. Felizmente, sua angústia trouxe-os de volta aos seus joelhos para colocar o problema diante Dele.

Então, de volta uma vez mais a Swatow, a terceira gravidez chegou ao fim e, afinal, ouviu-se o grito do pai prazenteiro: "É um menino!" No jovem Shu-tsu Deus havia dado a Huo-ping o desejo de seu coração. Embora fosse cristã fraca, ela cumpriu o pacto. A semelhança de Ana, entregou seu tesouro de volta a Ele. "Por este menino orava eu; e o Senhor me concedeu a petição que eu lhe fizera. Pelo que também o trago como devolvido ao Senhor, por todos os dias que viver." Deus havia encontrado para Si um vigia (Watchman).

 

CAPÍTULO 3

REVOLUÇÃO

 

Durante os anos que se seguiram, as crianças Nee aumentaram até nove ao todo, cinco meninos e quatro meninas. Depois de Kuei-chen, Kuei-cheng e Henry (Shu-tsu, que é Watchman) veio George (Huai-tsu) e um terceiro filho, Sheng-tsu, que sobreviveria somente até aos dias escolares. Após um intervalo, seguiram-se mais duas meni­nas, Tek-ting e Teh-ching e, finalmente, dois meninos, Paul (Hong-tsu) e John (Hsing-tsu).

Como oficial júnior na Alfândega Marítima, o salário de 35 taéis por mês que Ni Weng-hsiu recebia não era grande. Além do mais, quase metade deste salário ia para sua mãe viúva. Assim, a crescente família devia, no princípio, contentar-se com as coisas necessárias da vida — alimen­to, vestuário e uma casa onde morar — embora com verduras frescas e frutos do mar à mão para completar o arroz, eles cresceram aptos e saudáveis. Os brinquedos da infância eram simples e feitos na localidade, de cerâmica, bambu e papel; e havia pandorgas para voar por ocasião do Natal quando os ventos da estação chuvosa sopravam mais fortemente.

Mas, Lin Huo-ping era cheia de energia. Para ajudar no orçamento da casa, recorreu às finanças de seu pai para abrir em Swatbw um negócio de exportação de produtos de fibra e tecido estampado, vendidos por peças. Logo se verificou que o negócio era lucrativo com um fluxo cons­tante de mercados na Malaia, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. O esposo, também, foi considerado por seus superiores como um homem cuidadoso e correto; e, pelo trabalho consciencioso no serviço, ele alcançou constante promoção. Passaram-se alguns anos de prosperidade e a transferência para Suchow, cidade situada noventa quiló­metros ao oeste de Xangai, pôs fim abrupto ao negócio de tecidos e lançou as finanças da família em desordem. Após doze meses de permanência ali e por insistência de sua mãe, candidatou-se a um novo posto em Foochow em bases compassivas e, para sua alegria, conseguiu-o.

Enquanto viveram em Swatow, os próprios pais cuidavam da educação dos filhos, exercitando-os em correção e boas maneiras e ensinando-lhes as primeiras letras escritas com pincel. Contudo, uma vez de volta a Foochow, Ni Weng-hsiu empregou como professor particular, um hsiu ísai, ou graduado do primeiro grau. Deste homem, no devido curso, eles aprenderam caligrafia e os princípios literários e morais contidos nos Quatro Livros e nos Cinco Clássicos que haviam formado a base da cultura moral chinesa por dois milénios. Muito embora, em 1905, o velho sistema de exame civil tivesse sido abolido e o caminho para o progresso oficial, daí em diante, fosse por via de novas escolas modeladas segundo as do Ocidente, ainda assim, nenhuma criança podia escapar a esses estudos confucionistas e dizer-se educada. O jovem Watchman revelou-se rápido para aprender e, geralmente, ultrapassava as irmãs mais velhas para ganhar o prémio em dólar que o professor particular às vezes oferecia pelo bom desempenho. Os Nee possuíam pendor musical e o professor instruía-os, tam­bém, no antigo sistema chinês chamado As Melodias, enquanto a própria Huo-ping ensinava-lhes hinos cristãos com as lições da Bíblia. Mais tarde, quando o marido teve condições, comprou-lhes um piano e ele próprio copiava músicas para os filhos tocarem.

Tradicionalmente, um pai chinês governava a casa com energia, mas, Ni Weng-hsiu não tinha natureza para isto. Circunspecto, como seu próprio pai, não era dado a repreensões. Embora sempre acessível, mantinha-se na reta­guarda, ocupando-se, como um chinês, com seus deveres oficiais e com os amigos. No lar era Huo-píng quem comandava a vara. Para ela, a disciplina era a glória da família e ela governava os filhos vivazes pelo medo. A família tinha por princípio que o asseio doméstico era dever igualmente partilhado por todos. Seu prazer era ver a casa limpa e ordeira, com cada coisa no seu devido lugar. Se alguma coisa estivesse fora do lugar, ninguém podia esqui-var-se à responsabilidade; quem estivesse mais próximo era responsável por colocá-la onde devia estar. Watchman não era nenhum anjo e a sua tendência era deixar para trás um rasto de lixo e coisas quebradas pelo que era regular­mente castigado. Suas irmãs mais velhas recordarn-se de quantas vezes este castigo foi exagerado e então cons­piravam para protegê-lo, confessando-se autoras de algu­mas práticas dele.

Tiveram a felicidade de contar com outra família de Foochow, os Chang, que morava perto deles, na praia de Nantai, dando a vista para a ponte. Chang Chuen-kuan era um querido amigo cristão e antigo cliente de seu pai. As idades dos filhos de Chang eram quase as mesmas dos Nee e as duas famílias davam-se sempre muito bem. As duas filhas mais velhas de Chang eram amigas especiais das meninas Nee, enquanto a pequena Charity andava sempre atrás de Watchman. Nas suas traquinagens de infância, era ele quem tinha as ideias e tomava a dianteira e, assim, tornou-se o "irmão mais velha" de todas elas.

Da casa onde moravam era um pulinho até ao movi­mentado mercado de peixe de onde uma antiga ponte de pilastras de granito com desgastadas lajes de pedra levava até à apinhada ilhota de Chung Chou; e desta, à Ponte dos Dez Mil Séculos, muito mais comprida, completava a tra­vessia para a praia do norte e a abarrotada estrada até à porta da cidade da velha Foochow. A distância era grande demais para as crianças se aventurarem sozinhas, mas, na ponte ali pertinho, elas podiam passar longas e fascinantes horas. Ali podiam encontrar quiosques de negociantes e cinemas; um geomante, predizendo dias auspiciosos para funerais; ou um dentista extraindo dentes diante de es­pectadores que se divertiam ou talvez até alguma vítima da justiça manchu, tendo ao redor do pescoço a pesada canga, com sua ofensa inscrita sobre o entabuamento. Acima da ilha, estão as sampanas dos ribeirinhos, quase ligadas umas às outras, ribeirinhos que vivem sempre ocupados com a vida, enquanto na corrente embaixo dos arcos não muito altos, os pescadores gananciosos em seus barquinhos pu­nham a trabalhar suas pacientes aves {corvos) recom­pensando cada uma com uma dose de mistura tirada de uma garrafa pelo peixe que ela apanhava, mas, devido ao anel apertado que tinha em redor do pescoço, nunca podia engoli-la.

Do cais próximo do escritório onde o pai trabalhava na margem sul, as crianças observavam os bancos costeiros que subiam a corrente impetuosa do rio até ao porto de Nantai, nas proas brilhantes pintadas com grandes olhos que buscam direção, suas velas enfunadas de cor marrom contra o azul das colinas de Kushan. Eram de desenhos tão variados segundo seus portos de origem e as cargas que as crianças viam descarregar eram mais variadas ainda. Havia, também, ativo comércio de exportação de produtos agrícolas, de chá e de madeira das montanhas; mas as indústrias de exportação eram menores, limitando-se à seda, laca e artigos domésticos tais como guarda-chuvas feitos de papel oleado e "travesseiros" de madeira ver­melha. Nisto, Foochow estava defasada, pois noutros luga­res a China havia experimentado grandes mudanças indus­triais, com fábricas de tecidos brotando nas cidades cos­teiras, estradas de ferro penetrando o interior e engenhei­ros estrangeiros explorando com diligência seus recursos minerais.

Watchman estava, talvez, com seis anos quando a família voltou para Foochow e ele teria nove anos quando a revolução estourou no país para acabar com a dinastia. Devemos fazer uma pequena pausa para considerar o mundo em que Nee cresceu. No presente, o vice-rei de Chekiang e Fukien em sua residência oficial na velha cidade era apenas um súdito dos senhores manchus representados pelo general tártaro e seus indolentes partidários que ocuparam, com suas mulheres exageradamente pintadas, uma zona especial dentro das muralhas. Mas, o regime havia sobrevivido ao seu valor e, desde o episódio dos fanáticos chineses [boxer), estava totalmente desacredita­do, de sorte que entre os chineses educados, estes eram anos de crescente desassossego dirigido tanto contra o governo estrangeiro como contra a exploração gananciosa ocidental. Era cada vez maior o número de estudantes que tinham ido para o exterior a fim de beneficiar de novo aprendizado e voltavam com as mentes num turbilhão de ideias revolucionárias.

O herói deles era um homem que durante vinte anos havia trabalhado para a renovação da China. O Dr. Sun Yat-sen, de humilde origem cantonense e de fé cristã protestante, era o principal ideologista da revolução chine­sa. Embora a sua falta de pendor administrativo viesse a ser a causa de sua queda, os seus Três Princípios de nacio­nalismo, democracia e socialismo (san-min-chu-i) estavam destinados a conquistar e manter a imaginação popular. Desde muito tempo antes, ele havia sido obrigado a traba­lhar a partir do exílio, pois, o regime manchu estava ainda sendo mantido pelas potências estrangeiras para seus próprios fins. Então, em Novembro de 1908 morreu o imperador Kuang Hsu. Inteligente, mas, fraco, havia sido totalmente dominado pela velha e supersticiosa imperatriz que demonstrara ser o génio do mal na China — egocên­trica e reacionária até ao fim — e cuja morte ocorreu no dia seguinte. Poucos lamentaram a sua partida, mas, o herdeiro do trono foi o sobrinho de Kuang Hsu, que contava então três anos de idade, agora proclamado imperador sob o nome de Hsuan Tung.

Seguiram-se três anos de incerteza marcados por uma crescente convicção de que a dinastia havia perdido o mandato do Céu. Então, no dia 10 de outubro de 1911 ("o Duplo Décimo", isto é, 10/10) a explosão acidental da bomba de um conspirador foi o estopim de uma revolta em Wuchang, capital da província de Hupei e começou a sequência dos eventos que devia resultar na abdicação imperial, na ascensão e queda da República, da ditadura nacionalista e no final triunfo do Partido Comunista.

Em Dezembro, Sun Yat-sen voltou do exterior e na "capital sulista" de Nanking foi eleito primeiro Presidente Provisório da República da China. Ali declarou um governo baseado na vontade do povo. Para simbolizar que rejeitavam o governo Manchu, seus adeptos começaram a cortar as suas tranças, a forma de usar o cabelo imposta aos homens de Han como sinal de sua sujeição. Agora, os esco­lares de Foochow não mais ficariam em fila na varanda do albergue, cada um trançando o rabicho do outro. Não estava o general tártaro implorando misericórdia enquanto seus soldados corriam em terror pelas montanhas? Após dois milénios, o pivô da civilização chinesa, o próprio Trono do Dragão, havia sido arrancado de seu lugar vital na estrutura do governo para ser esperançosamente substituído por uma república democrática.

Mas, Sun e os sulistas preeminentes na revolução que estavam do seu lado, eram, na maior parte, exilados fora de contato com o modo de viver de seu país, alimentando vagos sonhos de uma China reconstruída segundo padrão ociden­tal, mas, inconsciente de que para uma democracia efetiva faltavam-lhe os fundamentos essenciais. Inevitavelmente, surgiu um nortista para desafiá-lo. Yuan Shih-kai, general do Império, com aspirações pessoais em relação ao trono, conseguiu rapidamente removê-lo da presidência. Antes de ser obrigado a voltar para o exílio em agosto de 1913, o Dr. Sun foi constrangido, portanto, a organizar a "Segunda Revolução" nas cidades portuárias do sul.

Numa escala local, a família Nee envolveu-se intimamen­te nesses assuntos. O movimento denominado "Ame o Seu País", do Dr. Sun, conquistou-lhes o coração; e conquanto Ni Weng-hsiu fosse um homem retraído, incapaz de proferir uma palavra em público, sua esposa era o contrário: eloquente, enérgica e pronta para afirmar sua recente liberação da subserviência feminina. Sem importar-se com a luta e com o derramamento de sangue ao redor, saiu de viagem para fazer preleções, havendo primeiro doado pu­blicamente para a causa seus próprios adornos de ouro e jóias, num gesto que muitos homens e mulheres foram levados a seguir. Por meio de uma vigorosa correspondên­cia, formou a Sociedade Patriótica das Mulheres, apoiada por preeminentes líderes locais, servindo ela própria como Secretária-Geral. Quando, em Julho de 1913, Sun Yat-sen chegou em pessoa a Foochow,Huo-ping desempenhou papel oficial na recepção presidencial. Aconteceu que a secretária particular do Dr. Sun, Srt.a Song, foi sua colega em Xangai e com ela compareceu a todas as festas e funções no decorrer da viagem de quatro dias.

Watchman estava agora com dez anos, capaz de ouvir a conversa política com ouvidos inquiridores de um menino. A Revolução havia, certamente, trazido nova esperança ao seu país. A princípio, também, um surto de sentimento pró-estrangeiro havia prometido a rápida expansão da atividade missionária cristã, por isso, quem poderia dizer que portas se abririam a ele, um dia, para ir estudar no exterior? Mas, um ano depois, irrompeu a guerra na Europa, o que criou desilusão com o Ocidente. Internamente, tam­bém, a Revolução parecia ter morrido no nascedouro, com a terra desmembrada por líderes guerreiros rivais e pelas usurpações japonesas sob o disfarce de ajuda na prepa­ração de guerra. No dia 18 de Janeiro de 1915, o Japão apresentou suas Vinte e Uma Exigências, que, começando com as reivindicações sobre a Província de Xantung, conti­nuariam até que toda a China se tornasse um estado fantoche. Nesse ano, o Presidente Yuan anunciou a sua própria encantada reversão de todas as esperanças deles, proclamando a sua ascensão ao Trono do Dragão, mas, ele estava destinado apenas a terminar seus dias em vergonha. Em 1916, aos treze anos, impressionável e cheio de esperanças, Watchman entrou para a Middle School vernacular de C. M. S. em Foochow para dar começo à sua educação segundo o estilo Ocidental. No devido tempo, ele continuaria os estudos na escola secundária inglesa, de grau médio, de S. Marcos. Esta escola fazia parte de um complexo anglicano em Nantai, que compreendia escolas de nível primário, médio, normal, superior e teologia, que tinha quase quatrocentos alunos no seu rol e eram conhe­cidas, no conjunto, como Trinity College, de Foochow. O pessoal missionário era principalmente de nacionalidade irlandesa, procedente do Trinity College, de Dublin.

Enquanto vencia seu currículo escolar, Watchman ia bem nos trabalhos de classe, superando reveses ocasionais em virtude de enfermidade, pelos quais os amigos culpavam a mãe de Huo-ping que constantemente o prejudicava. Na verdade, muitas vezes aparecia como o primeiro da classe. Conta-nos como, à semelhança de qualquer aluno, gostava, quando jovem, de carimbar "Ni Shu-tsu" em tinta vermelha opaca sobre livros e papéis e em tudo o que lhe viesse às mãos, usando uma versão de fabricação doméstica do selo ou estampa pessoal que um dia assumiria maior signifi­cado. Era, por assim dizer, geralmente franco, talvez um pouco presunçoso, com um agudo senso de justiça; pois, certa vez, quando um transeunte que visitava a escola queixou-se de que estava faltando um de seus objetos, Watchman provocou ressentimento geral ao indicar o meni­no que o havia furtado. Demonstrava pouco entusiasmo pelos esportes de equipa — basquete, vôlei, futebol — nos quais os outros meninos participavam, parecendo faltar-lhe força para esses jogos; mas, estava agora transformando-se rapidamente num rapaz de constituição esbelta, uns vinte centímetros mais alto do que a maioria dos seus colegas.

Logo, adquiriu facilidade no dialeto nortista pouco usa­do, conhecido dos ocidentais como "mandarim", o qual estava agora tomando a dianteira como a língua nacional ou pai-hua — a "língua simples" do povo. Toda a sua leitura anterior fora feita em livros no estilo clássico preferido pelos homens cultos e ainda exigida pelo fossili­zado sistema escolar do Estado, mas, agora, a China estava passando por um gigantesco renascimento cultural. Como reação à exigência popular, os escritores e poetas pioneiros estavam-se voltando para um meio de expressão vernacular que até agora havia sido deixada para os romancistas de imprensa de baixa categoria; e, como consequência, Watchman e seus colegas liam romances baratos sub-repticiamente sob os tampos de suas carteiras. Em 1922, o próprio Ministério da Educação sancionaria este desenvol­vimento, ordenando que todos os livros destinados às escolas fossem reescritos na língua nacional. Era uma mudança destinada a causar tremendo efeito sobre a disseminação de ideias através da literatura nos anos vindouros e não menos na divulgação mais livre do pensa­mento cristão nos círculos populares.

Mas, a religião estava, no momento, em situação desfa­vorável entre os estudantes. Na verdade, em 1918, um movimento anti-religioso fora promovido através da revista Nova Juventude, por Chen Tu-hsiu, Deão da Escola de Letras de Peking e líder muitíssimo influente do pensamento culto. Seu movimento deveria florescer na Grande Federação de Anti-Religiosos de 1922 e nos levantes emocionais contra o Cristianismo que se seguiram e o próprio Chen se tornaria, mais tarde, Secretário-Geral do Partido Comunis­ta Chinês. E um movimento de maior influência que deve chamar nossa atenção aqui, é o Movimento Quatro de Maio. Com a vitória da Primeira Guerra Mundial e com o Tratado de Versalhes de 1919, a China esperava a volta das concessões alemãs em Xantung, mas, em vez disso, a Grã-Bretanha e a França as deram como recompensa a seu outro aliado, o Japão. A indignação entre os jovens chineses ao descobrirem o que para eles era uma traição do seu governo incompetente, levou, no dia 4 de maio de 1919 a um maciço e espontâneo protesto da parte dos estudantes de Peking, dentre os quais se destacava um jovem de vinte e três anos, por nome Chou En-lai. Seguiram-se greves lide­radas por estudantes em Xangai e em Foochow e uma proliferação de novas ideias marxistas, levadas avante pela oferta do governo soviético, em 1920, de renunciar aos direitos extra-territoriais russos. O Movimento Quatro de Maio comprovar-se-ia altamente significativo em pavimen­tar o caminho para o comunismo chinês.

Watchman estava, agora, com dezesseis anos e bastante vulnerá­vel à explosão de sentimento estudantil suscitada por esses acontecimentos. Mas, também havia acabado de completar a escola média e o estímulo de sua breve mudança para S. Marcos pode ter feito algo para contra­balançar nele a desilusão geral que afetava os que viviam ao seu redor. Havia muitos motivos para isto. Luta esporá­dica arrastava-se na Província entre os líderes guerreiros e um dividido e enfraquecido Kuomintang, seus exércitos prontamente deixando as atividades de soldados e passan­do a viver como bandidos (caso a distinção importe) sempre que o pagamento era insuficiente. Alguns de seus colegas, voltando de regiões rurais, contavam histórias trágicas do caos civil e da crescente aflição dos camponeses.

Em seu lar, também, havia muita coisa para desencan­tar um menino em fase de crescimento. O envolvimento de sua mãe com o Partido começara a perder o fascínio que todos sentiam. Anteriormente, em reconhecimento de seu zelo político, o governador de Fukien, Suen Tao-ren, indicara-a para receber um prémio; e Peking havia respondido promovendo-a à Ordem da Segunda Classe por Patriotismo. Uma vez, porém, obtida esta honra, seu zelo esfriou. O amor à pátria cedeu, diz, ao desfrute do louvor e posição pelo que isto representava. O entretenimento social e cultu­ral tomou o lugar de sua antiga prática de ir à igreja, e "do contato com revolucionários incrédulos eu mesma quase me tornei uma incrédula". Diariamente, as damas da sociedade vinham à sua casa em Nantai para jogar cartas e mah-jong; e quando o pastor metodista a visita para solicitar um donativo, dizia em tom de zombaria: "Sente-se aqui e vejamos a quanto montam os meus ganhos. Se ganhei uma boa quantia, dar-lhe-ei um pouco!" E ele, pobre homem, aquiescia... Até mesmo a máscara exterior de uma cristã, confessa ela, se fora.

Além do mais, a disciplina de Huo-ping para com os filhos, geralmente justa e imparcial, parecia agora marca­da por impaciência e injustiça. Certo dia, em janeiro de 1920, no fim dos feriados de inverno, um valioso ornamento na casa foi encontrado partido. Resolvendo em sua mente onde jazia a falta, Huo-ping decidiu que Watchman, como o verdadeiro réu, deveria confessar. Quando declinou fazê-lo, ela o submeteu uma vez mais à indignidade de uma surra. Ela não deixou de sentir remorso, mais tarde, ao descobrir que afinal de contas ele era inocente, mas, deixou, não obstante, que ele curtisse sua tristeza. Ele voltou para o segundo período escolar no ginásio triste e amargurado.

Naquele mesmo mês, ela recebeu algumas notícias ines­peradas. Dora Yu, a mulher que anos antes a impressio­nara tanto em Xangai, viria a Foochow no Ano-Novo chinês para dirigir duas semanas de reuniões de avivamento na capela metodista de Tien An. A Srt.a Yu tornara-se conhe­cida como evangelista dotada e havia viajado muito entre as missões na China do norte e na Coreia, bem como estabe­lecendo seu próprio seminário bíblico em Xangai. Huo-ping não a tinha visto desde aquele dia, em 1898, quando fora movida a fazer-lhe um donativo. Agora, no começo das reuniões de Foochow, ela convidara a amiga para uma refeição vespertina com um grupo de suas amigas jogado­ras. Falou calorosamente da visitante às suas amigas e, no fim, anunciou: "Amanhã a Srt.B Yu pregará no Salão da Paz Celestial. Estejam todas lá, por favor." Alguém perguntou: "E você?" "Claro que irei", respondeu.

Chegou o dia 15 de Fevereiro e com ele a primeira reunião. Huo-ping foi pontual com as outras e sentou-se bem na frente enquanto a pregadora, com os pés envoltos em pequeninos sapatos brocados, levantou-se ereta para anunciar com o seu texto as palavras de Deus a Eva: "Nem tocareis nele, para que não morrais." Servindo-se dessas palavras, pregou naquele dia e no seguinte com grande poder sobre a morte espiritual como separação de Deus. Mas, o assunto aborreceu Huo-ping. Sabia disto desde os tempos de criança e resolveu que duas reuniões eram suficientes. Suas amigas estavam amofinadas com a perda de tempo de jogo.

Assim, no terceiro dia e de novo no quarto, sobre a mesa de tampo duro retiniam os blocos brancos de mah-jong, entre gritos de alegria, mas, não sem uma pontada de consciência no coração de Huo-ping. "Eu estava ali senta­da", lembra-se, "como alguém já morto. Sabia que o Espírito Santo de Deus estava lidando comigo." E após dois dias de inquietação já não aguentava mais. "Sou cristã", exclamou subitamente para as outras. "A Srta Yu veio de longe para pregar aqui. Não comparecer, é falta de educa­ção. Digam o que quiserem, mas, amanhã não virei jogar." No dia seguinte, Dora Yu viu-a chegar e veio de imediato cumprimentá-la. "Onde esteve você?" Perguntou com ino­cência. "Não me sentia bem", mentiu Huo-ping. A Srt.a Yu olhou-a bondosamente. "Que Deus mesmo brilhe sobre você e a cure", respondeu. As palavras atingiram o alvo. Como foi removida para longe a doença oriunda de mah-jong! Em inflexível realidade, viu todo o engano de sua atitude. Durante toda a palestra mexia-se em sua cadeira sentindo-se culpada enquanto as frases penetrantes da pregado­ra a encontravam. Com quarenta anos de idade e sendo uma figura pública, não podia conceber que alguém a expusesse daquela maneira. Esta, certamente, seria sua última reunião. Porém, quando a Srt.a Yu lhe perguntou "Você estará aqui amanhã?", como poderia desculpar-se? E quando o amanhã chegou, embora Deus ainda a acusas­se, sua serva agora relatava de novo os sofrimentos de Cristo na cruz pelos pecadores. "Cada palavra que proferia era exatamente para mim", diz. "Graças a Deus, cada dia uma força além da minha trazia-me de volta para receber mais." O clímax aconteceu quando confessou a Deus sua necessidade e deu-Lhe graças por Sua misericórdia. A graça divina conquistara-a.

Seu marido, que havia comparecido a algumas das reuniões, estava confuso. "Você não come nem dorme", protestou. "Você não faz outra coisa senão derramar lágrimas. Outros sentem-se felizes quando se convertem! Se este é o efeito sobre você, desista e fique longe!" "Mas, você não sabe como me sinto por dentro", exclamou. "Tenho mentido para você; tenho desviado tanto dinheiro de nossa família para jogos de azar"; e continuou relatando os modos pelos quais o havia defraudado. Então foi a vez de ele confessar-lhe suas faltas e logo estavam ambos em lágrimas. A "Paz", que era o significado do nome dela, veio-lhe ao coração afinal. Ela nunca mais tocou nas cartas de baralho nem as peças de mah-jong.

Os alunos da escola secundária tiveram permissão para frequentar as reuniões da Srt.a Yu e muitos o estavam fazendo. Com sua alegria recentemente encontrada, Huo-ping havia assumido o papel de intérprete e estava tradu­zindo a palestra da Srt." Yu feita em pai-hua para o dialeto de Foochow, por amor a esses estudantes. Watchman, até agora, havia estado ausente. Vulnerável como já se encon­trava ao comportamento de seus amigos, mais do que nunca ficara desiludido pelo fracasso do cristianismo como força vital em seu próprio lar. Embora sua mãe o tivesse convida­do para ir às reuniões, mostrava-se tão obstinado quanto ela e havia declinado o convite. Como poderia ela esperar que fosse de outro modo? Assim, agora vinha o remorso. Ela sabia que devia confessar a injustiça praticada contra o seu filho mais velho, mas, seu orgulho rebelava-se contra tal humilhação. Seria uma atitude sem precedente. Não havia o próprio Confúcio ensinado que os pais nunca erram?

Algo mais, porém, ela poderia endireitar e resolveu fazê-lo. Com três dólares na mão, saiu para comprar uma Bíblia e um hinário com os quais recomeçar a adoração na família. No dia seguinte, começou a tocar e a cantar o primeiro hino — mas o Espírito de Deus a impediu. Se pretendia adorar a Deus publicamente, era seu dever, sabia, confessar-Lhe suas faltas. "Mas", protestou, "como posso eu, uma mãe, confessar a meu filho?" Muito claramente, Deus disse: "Você deve fazer precisamente isso. Esse é o único caminho."

Enquanto o marido e os filhos assistiam a tudo aquilo, confusos, voltou-se repentinamente para Watchman e ati­rou os braços ao redor dele. "Por amor do Senhor Jesus", disse chorando, "confesso ter surrado você injustamente e com raiva." "A senhora o fez, honrada mãe", foi sua resposta lógica, "e eu a odiava por isso." "Por favor, perdoe-me!" Rogou, olhando-o nos olhos; mas, ele desviou-se sem responder ao apelo materno. As orações da família prosseguiram.

Naquela noite, Deus lançou mão de Watchman. Ficara profundamente comovido pela confissão de Huo-ping. Nun­ca tinha ouvido falar de um pai ou mãe chinês aceitar tal humilhação. Se a sua própria mãe podia ser assim trans­formada, então por certo devia haver algo poderoso na pregação desta visitante. O cristianismo deve ser mais do que mero credo. Iria verificar isso por si mesmo. Na manhã seguinte, levantou-se cedo. "Estou preparado agora", disse à mãe, "para vir e ouvir Yu Tzi-tu." Foi, e antes que as reuniões terminassem, a pregação dela o havia conduzido, também, ao arrependimento de seus pecados e havia encontrado em Jesus Cristo um Salvador e um Amigo vivo. Num ato de entrega da juventude, comprometeu-se a servir a Deus total e completamente e nunca deixou de cumprir a sua palavra. Deus, por sua vez, respondeu com um novo nascimento em seu espírito que lhe revolucionaria intei­ramente a vida. Tinha ouvido a oração da mãe à noite, naqueles anos passados e estava cumprindo a sua parte do acordo.

Podemos reconhecer a mão de Deus, também, na deter­minação do tempo desses acontecimentos. Como já vimos, ideologias poderosas estavam competindo pela lealdade de todos os chineses pensantes e havia no ar conversões radicais. Nesses mesmos meses, um homem dez anos mais velho do que Watchman estava devorando os escritos marxistas que só agora se tornavam disponíveis na língua chinesa e, através deles, chegando a convicções íntimas profundas. Nascido em 1893 numa família camponesa de Hunan, Mao Tse-tung, por algum tempo bibliotecário assis­tente da Universidade de Peking e ultimamente agitador político em Changsha, havia chegado a Xangai na prima­vera de 1920 para uma visita a Chen Tu-hsiu. Discutiram, juntos, as obras de Marx e foi através da confissão de fé política de Chen, que Mao se tornou agora um comunista convicto e por toda a vida.

De um fraco gotejar como este deveria irromper um dilúvio quase esmagador. Não obstante e de certo modo, o curso de Watchman Nee já estava decididamente assenta­do contra esta maré.

 

CAPÍTULO 4

DEDICAÇÃO

Quando, aos dezoito anos, Watchman Nee se converteu a Jesus Cristo, o compromisso que assumiu foi sincero. Con­tou, mais tarde, a um amigo íntimo que durante aqueles poucos dias das reuniões de Dora Yu pesou a questão cuidadosamente, sabendo que devia ser tudo ou nada. Não se disse dos discípulos de Jesus que "deixando tudo, o seguiram"? Viu que, para ser salvo, devia prestar obediência duradoura Aquele que faz exigências totais.

E por que não? Em uma das lojas da rua do verniz da velha cidade, um artífice anónimo já havia gasto seis anos trabalhando em três folhas de madeira dura de um biombo de quatro folhas, esculpindo relevo de flores na madeira natural, branca contra uma superfície envernizada preta. Para isso recebia oitenta centavos por dia, com "chuva, sol, feriados ou revolução", como disse o dono da loja, mais arroz e verduras e uma tábua para dormir. Havendo adquirido perícia para este trabalho, pôde fabricar apenas dois desses biombos antes que seus olhos e nervos falhas­sem e fosse jogado para viver com os mendigos. Se o dom criativo humano podia ser desperdiçado assim por um empregador avarento, havia alguma coisa boa demais para dar de volta a um Deus que não havia recusado dar-nos seu próprio Filho?

Logo Watchman concordou com as palavras de Paulo: "Mas oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça." "Deus exigia de mim, portanto", disse depois, "que agora eu considerasse todas as minhas faculdades como perten­centes a Outrem. Não me atrevia a esbanjar uns poucos centavos de meu dinheiro, ou uma hora de meu tempo ou qualquer de meus poderes mentais ou físicos, porque não eram meus, mas Dele. Foi uma coisa importante quando fiz essa descoberta. Para mim, a verdadeira vida cristã come­çou naquele dia."

De imediato, havia um erro a ser corrigido. Em uma matéria escolar, o conhecimento bíblico laboriosamente ensinado, Watchman tinha até agora mantido uma apatia que lhe assegurava de maneira invariável notas baixas. Não havia sido afetado nem um pouquinho pelo espírito anti-religioso de seus maiores. Não obstante, como membro de uma família cristã, desagradava-lhe a humilhação que isto representava numa escola secundária da Missão. Resolvera, portanto, ajudar-se a si próprio nos exames es­crevendo fatos selecionados nas palmas de suas mãos e escondendo-as dentro de suas amplas mangas. Isto bastava para que obtivesse notas correspondentes a 70%, as quais, uma vez que quase se aproximavam do padrão em outras disciplinas, não levantavam suspeitas em seus professores. Nascido de novo, porém, imediatamente abandonou essa prática e, agora, por mais que tentasse, não conseguia alcançar as mesmas notas. Deus, percebeu, não podia ajudá-lo enquanto seu pecado permanecesse inconfessado. Mas tinha motivo para hesitar. O diretor da escola tinha avisado que qualquer aluno apanhado colando seria sumariamente expulso e a expulsão destruiria qualquer espe­rança de uma bolsa de estudos na Universidade e, finalmen­te, de estudar no exterior. [Os dois últimos anos na Trinity eram, naquele tempo, equivalentes ao primeiro ano da Universidade na Faculdade C. M. S. de São João, em Xangai.) Assim, foi uma verdadeira luta para decidir que Jesus Cristo era-lhe mais precioso do que uma carreira. Ele procurou o diretor e contou-lhe com franqueza o que havia feito e por que devia confessá-lo — e para seu alívio, não foi demitido.

Três meses após a conversão de Watchman, Dora Yu voltou a visitar Foochow, fazendo uma paragem em sua viagem em dirèção ao norte, procedente de Amoy, para falar às alunas da escola secundária da C. M. S. ; e, de novo, "muitas vidas foram transformadas". Nesta ocasião, o distrito estava militarmente perturbado, com luta esporá­dica no campo e na cidade, como um pêndulo oscilante entre as esferas de influência do Norte e do Sul. Por volta de 9 de Maio, os alunos do ginásio estavam envolvidos em demonstrações anti-japonesas, porque nesse Dia Nacional da Vergonha, a China recordava anualmente as Vinte e Uma Exigências do Japão, de 1915. O desassossego continuava e, pelo segundo ano consecutivo, o currículo escolar estava muito desorganizado.

Vendo isto e sentindo a necessidade de adaptar-se a uma direção na vida inteiramente nova, Watchman desa­pareceu sem dar sinal de si. Seus colegas não tinham ideia que rumo tomara e sua família guardou segredo até sua volta muitos meses depois. Na verdade, ele havia tomado um navio para Xangai, uma cidade onde o movimento Nova Tendência no campo da educação, fomentado pelas recen­tes visitas de John Dewey, Bettrand Russell, e Tagore, estava causando forte impressão nas mentes estudantis. Não mais, porém, sobre a de Watchman. Tinha ido para lá a fim de matricular-se na Escola Bíblica da Srt.a Yu, para um ano de treinamento nas Escrituras que até agora ele tinha achado tão difíceis. Colocou o coração no trabalho e não podia ter encontrado melhor professora. Com ela, aprendeu, acima de tudo, o segredo de confiar somente em Deus para suprir suas necessidades, conforme ela havia feito no decorrer da vida. Ensinou-lhe, também, a deixar que a Palavra de Deus lhe falasse ao coração e não meramente — embora isso fosse essencial — encher a mente com seu texto.

Quando ele voltou, a mãe disse-lhe com firmeza: "Agora, volte ao Trinity e termine o curso da faculdade." Ele o fez e visto que todo o currículo escolar estava atrasado, teve pouca dificuldade em acompanhar a classe. Mas, era um aluno transformado e, agora, não desperdiçava tempo. Aplicou-se aos estudos com dedicação e, também, fez uma lista dos colegas e começou a orar sistematicamente a favor de cada um deles e não perdia oportunidade de dar-lhes o seu testemunho. A princípio, pelo fato de levar consigo uma Bíblia aonde quer que fosse, riam-se dele e com zombaria o apelidaram de "Depósito de Bíblias". Mas, ele a lia a todo instante e sabia o que ela continha. Havia-se decidido, dizem-nos, a ler dezenove capítulos consecutivos do Novo Testamento todos os dias e estava pronto para conversar ardentemente com qualquer pessoa acerca da mensagem bíblica. Aos poucos, a sua vida mudada e sua evidente sinceridade conquistaram-lhes a atenção.

Wilson Wang, jovem estudante de Foochow da escola naval de Canton, transferira-se da preparação náutica para matricular-se na classe de Watchman no sexto ano da Trinity e foi um dos primeiros a juntar-se a ele em reuniões de oração informais estudantis na capela da faculdade. Demorou mais de um ano até que começassem a ser vistos os frutos; mas, aos poucos, como resultado de conver­sas no quarto de Watchman, diversos rapazes foram-se convencendo e, um por um, descobriram em Cristo a nova alegria que estiveram buscando. Entre eles destacavam-se Simon Meek, do distrito de Lieng Chieng, perto da costa e Faithful Luke e K. H. Weigh, ambos de Kutien, que ficava mais distante, rio acima.

Não contente em testemunhar na escola, um punhado desses ginasianos começou a espalhar o evangelho pela cidade, fazendo uso dos domingos e dos dias de festa e das frequentes greves estudantis como oportunidade para esse trabalho. Conseguiram um gongo de som alto e ressonante e com ele iam cantando pelas ruas, proclamando a todos os que paravam e ouviam as boas-novas de um Salvador vivo. Havia incessante barulho, de qualquer forma, na cidade — barulho de tambores e de queima de fogos e de porcos a grunhir, gritos dos vendedores e os coolies vociferantes e as bandas desafinadas que acompanhavam os funerais. Ninguém ligava a nada. Distribuíam folhetos e carrega­vam cartazes e escreviam pósteres com letras grandes declarando com clareza o caminho da salvação. Estes eram colados nos muros públicos para competir com os pomposos frangotes vermelhos que anunciavam cigarros, com os pósteres que retratavam os méritos das lamparinas de querosene e com os pálidos murais do tigre azul comedor de homens, terror dos moradores das colinas nas selvas de Fu-tsing ao sul. Sendo a língua chinesa escrita em sentido vertical, prestava-se para publicidade feita em tábuas e logo uma nova ideia os inspirou. Faziam camisetas de algodão branco que enfeitavam com letras vermelhas apli­cadas; essas camisetas traziam mensagem com estes dize­res: "Deus amou o mundo dos pecadores", "Jesus Cristo é um Salvador vivo". Os bairros de ambos os lados do rio ficaram sabendo de um despertamento espiritual entre os cristãos.

Em Ma Wei (Ancoradouro de Pagode) Watchman cedo descobriu um espírito afim que devia tornar-se um valioso amigo. Ao desembarcar, de sua volta de Xangai, havia, por sugestão da Srt.a Yu, visitado a Srt.a M. E. Barber, ex-missionária anglicana, agora trabalhando por conta pró­pria. Nascida em Peasenhall, em Suffolk, Margaret Barber fora para Foochow a fim de trabalhar com a C. M. S. em 1899 e, durante sete anos, ensinou na escola média para meninas (correspondente à escola de 1.° grau no Brasil). Os registros da Missão revelam-na obreira zelosa e devota e "uma personalidade muito brilhante". Quando, po­rém, se encontrava em férias na Inglaterra, em 1909, sentira o desafio de Deus como crente, sobre a questão do batismo e procurou D. M. Panton, pastor de Surrey Chapei, Norwich, para discutir este ponto. Compreensi­velmente, seu bispo escreveu aconselhando-a a não voltar para Fukien, mas, apesar disso voltou, tendo agora quaren­ta e dois anos de idade, confiando em Deus para suprir-lhe as necessidades e apoiada pelas orações da congregação de Surrey Chapei.

Filiou-se a ela um pastor chinês independente, Li Ai-ming e para evitar embaraços às suas ex-colegas em Nantai, encontrou uma residência de aluguel módico, de um missionário da American Board em White Teeth Rock (Pei Ya Tam), do outro lado do porto do pagode de Lo-hsing, em Ma Wei. Aqui, com a colaboração da Srt.a M. L. S. Ballord, vinte anos mais moça, estabeleceu a base de suas futuras operações.

Durante dez anos, as duas trabalharam pacientemente entre as mulheres locais e, onde possível, entre os homens. De quando em quando, faziam visitas a Foochow para distribuir folhetos nos mercados da cidade, sentindo, como o sentem as missionárias solteiras, as limitações impostas pelo sexo e pela anomalia de sua situação de estar na mera entrada de uma província vasta e espiritualmente escura. De volta em seu primeiro ano em Foochow, Margaret Barber havia testemunhado o batismo, como cristão, do segundo sacerdote do templo da colina de Boiling Spring, ali na vizinhança, templo outrora famoso por seu dente de Buda. Tais fatos não aconteciam agora. A conquista da China rural para Cristo parecia um sonho distante — a menos que, diziam para si mesmas, Deus escolhesse e chamasse para o trabalho moços e moças de toda a terra. Não obstante, por que não o faria Ele assim? Começaram a fazer disto motivo de suas orações constantes.

Um dia, nos começos de 1921, um navio de guerra da República ancorou fora de White Teeth Rock e um jovem oficial da marinha desembarcou. Ao passar pela Alfânde­ga, sentiu-se atraído pelo som do cântico do hino que vinha de um prédio da missão; entrou e apresentou-se. Era Want Tsai (Leland Wang), natural de Foochow e irmão mais velho de Wilson Wang, colega de classe de Watchman. Depois de diplomar-se pela Faculdade Naval de Chefoo, foi nomeado para um navio estacionado em Nanking e, en­quanto servia ali, foi maravilhosamente convertido a Jesus Cristo. Estava, agora, com vinte e três anos e já tinha resolvido desistir do posto que ocupava e tornar-se prega­dor do evangelho a tempo integral. Aqui estava um sinal de que Deus estava respondendo às orações das duas missionárias.

O lar dos Wang ficava no subúrbio no lado de Nantai do rio, sobre a colina um pouco acima da casa dos Nee; assim, Wang Tsai logo foi posto em contato com Watchman e seus amigos. Uma vez completado seu desligamento do serviço naval, voltou ali para estabelecer a sede de seu trabalho como evangelista, ministério para o qual provou possuir um verdadeiro dom. Sendo ligeiramente mais velho e mais experiente do que todos, foi calorosamente recebido e procurado pelo grupo de estudantes.

O lar de Nee, também, com a transformação que Deus havia operado na vida de Huo-ping, tornou-se agora um centro de ação e movimento de um novo tipo. Demorou um pouquinho para que as pessoas se ajustassem à ideia da oradora política mundana transformada em testemunha cristã; mas logo, com seu testemunho franco e uso sensível das Escrituras, a Sr.a Nee começou a ser requisitada como pregadora metodista nas reuniões para mulheres e moças por todo o norte de Fukien. Visto que, com a ajuda de uma amiga, adquiriu maior facilidade no pai-hua, esses com­promissos a levariam a lugares mais distantes ainda. Andava bem perto de Deus e em tudo buscava a Sua vontade, fazendo pequenas anotações e corrigindo imedia­tamente seus erros; e parece que Deus honrava de maneira notável o seu testemunho.

Conquanto de novo amiúde estivesse fora de casa, era sensível às necessidades de sua grande família. Numa época de muito calor, depois de falar durante duas sema­nas em reuniões para a Associação Cristã de Moças de Foochow, não aceitou o convite para continuar ali para um merecido e necessário descanso, sentindo que Deus a avi­sava de algo iminente em sua casa. De volta para lá naquela noite, enquanto perambulava com o marido à beira da água em frente da casa e observava o incessante vaivém dos barcos no rio, foi levada a observar: "Está tão seco hoje à noite. Temo que haja um incêndio." Nas primeiras horas, gritos despertaram-nos para o feroz estrépito de chamas do bambu e dos tetos da casa feitos de folhas de colmo ao longo da rua. Oraram, quando recebeu de Deus uma forte certeza de que a sua casa não seria tocada e de que nem precisava acordar os filhos menores. Na verdade, o vento mudou de direção e soprava do sul; e o fogo que destruiu uma dúzia de casas deteve-se exatamente três portas antes da sua casa.

Ni Weng-hsiu ficou muito comovido por esta prova do cuidado de Deus; mas, não ficou contente quando, apenas sete dias mais tarde, enquanto de novo caminhavam de um lado para outro na noite quente, sua esposa falou apreen­sivamente de outro incêndio. O alvoroço que desta vez acordou-os às quatro horas da madrugada foi até mais terrível do que o anterior. Um forte vento carregado de chuva ajudava as chamas, que saltavam para o norte procedentes da área do mercado junto à ponte. "Acha você", perguntou-lhe o marido, "que desta vez nossa casa será queimada?" Ela ergueu o coração ao Senhor e só pôde responder: "Talvez." Assim, primeiro despertaram os filhos mais velhos, depois começou a azáfama de empacotar e retirar as coisas essenciais. No meio de tudo isto, de súbito, veio-lhe à mente Génesis 18 (conforme ela achava) e a prematura conclusão de Abraão em sua oração a favor de Sodoma. Parecia que Deus a repreendia com a pergunta: "Por que você não ora?"

Assim, ela abandonou suas atividades e ajoelhou-se uma vez mais. "O Deus", orou, "nesta parte de Foochow minha família é a única que crê em ti. Dá-me alguma resposta a esses incrédulos, de sorte que não possam dizer: 'Onde está o teu Deus?'" Imediatamente veio a certeza: "Caiam mil ao teu lado e dez mil à tua direita, tu não serás atingido." "Aceito isto como vindo de Deus", disse ao marido. Mas, as chamas aproximavam-se depressa diante de um vento forte e ele a repreendeu severamente por sua inação. Então, aconteceu o inacreditável. O Corpo de Bombeiros da cidade, impedidos pelo fogo que fazia vítimas em torno da entrada da ponte, resolveu chegar por água à porta de sua casa e instalar aí a sede do comando de combate aos incêndios. Seus habilitados esforços combinados com uma mudança de vento e alguma chuva detiveram o grande incêndio duas portas antes. Os dois incêndios em uma semana haviam deixado uma ilha de cinco casas ribeirinhas miraculosamente intocadas em meio à devas­tação. Como poderia tal misericórdia deixar de fortalecer a fé que a família depositava em Deus?

Poucos dias mais tarde, ao voltar de um trabalho de pregação, Huo-ping ficou sabendo que as duas senhoras de White Teeth Rock haviam estado à sua procura. Até aqui ela não se havia encontrado com Margaret Barber e sua colega, embora soubesse que Watchman e seus colegas de escola, às vezes, iam a Pagoda para receber instrução bíbli­ca. Na verdade, havia evitado contato desde que ouvira que Dora Yu havia feito uma curta paragem ali quando se dirigia para Xangai e fora por elas batizada no rio. Isto, achava Huo-ping, havia prejudicado muito o bom resultado obtido por suas reuniões de reavivamento e não hesitara em pronunciar-se abertamente contra o fato.

Mas, agora, poucos dias antes da Páscoa, Watchman procurou a mãe. "Honrada mãe", disse, "a partir de amanhã tenho três dias de feriados escolares. Quero ir à casa de Ho Sheo-ngen (o nome que davam à Srt.a Barber) para estudo biblico. Gostaria a senhora de ir comigo?" "Espere até que eu tenha perguntado ao Senhor", respondeu-lhe e subiu as escadas. Ajoelhando-se, orou; de­pois sentou-se e penteou os cabelos. Enquanto se penteava, sentiu que Deus lhe dizia: "Vá e seja batizada!" Em crian­ça, fora batizada como cristã juntamente com a mãe. Agora, Deus pedia-lhe que fizesse publicamente aquilo que comba­tera com tanto vigor: fazer uma nova afirmação adulta de sua fé. Estava claro que era Ele e nenhum outro que a pressionava a realizar este ato de obediência. Lembrava-se das palavras de Deus a Jesus no Seu batismo: "Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo." Depois de pensar um pouco, desceu e chamou Watchman. "Resolvi ir com você à casa da Srt.a Ho", disse, "e além do mais, desejo ser batizada." "Eu também", respondeu ele de imediato, "vou indo para esse fim."

Para ele, não menos, tinha sido uma questão de obe­diência dar a Deus "a resposta de uma boa consciência". Tinha lido no Novo Testamento as palavras de Paulo vin­culando o batismo com a morte de Cristo e as de Pedro vinculando-o com o seu reinado; e vislumbrara o fato de dois mundos mutuamente hostis e a impossibilidade de servir aos seus dois senhores, o príncipe deste mundo e o Príncipe da vida. Sabia, agora, que devia expressar nesta forma pública sua completa ruptura com um e sua entrega ao outro. "Vou", sair do sistema governa­do por Satanás”, disse. “Já não pertenço a este padrão de coisas. Pelo contrário, pus meu coração naquilo em que está posto o coração de Deus. Tomo como meu alvo seu eterno propósito em Cristo, e entro nele e me liberto daque­le."

Ouvindo falar do plano de ambos, George, irmão de Watchman, expressou também o desejo de receber o batis­mo; e, assim, aconteceu que na manhã seguinte, os três foram de barco para Ma Wei. A Srt.a Barber cumprimentou pra­zerosamente Huo-ping: "Já comeu seu arroz? Quais são as boas-novas que nos traz?" Ela ficou maravilhada ao ouvir dos próprios lábios de Huo-ping como, sem intermediário humano, Deus lhe falara do batismo. Desde que soubera por intermédio de Dora Yu dos tratos de Deus com ela, não cessaram de orar a seu favor. Então, todos se ajoelharam e juntos deram graças a Deus.

Chegou o domingo de Páscoa e saíram para a margem do rio em White Teeth Rapid. A maré estava parada e calmo o movimento de navios no porto, mas, o dia estava sombrio e o céu nublado com uma chuvinha fina caindo para umede-cer-lhes o espírito. Nessa manhã Huo-ping sofrera um dos seus ataques ocasionais de taquicardia e a Srt.a Barber prontificou-se a adiar o acontecimento. Mas, ela foi insis­tente. "Prefiro morrer na vontade de Deus", disse, "a viver mais tempo na minha própria vontade." Ela conta como, enquanto o idoso evangelista, Li Ai-ming, com dificuldade vadeava ao seu lado no rio Min, pediu a Deus um sinal de sua aprovação. Li imergiu-a e tão logo seus olhos se abriram ao sair da água, o sol da Páscoa irrompeu através das nuvens. Quanto Watchman e George seguiram, ele banhou-os em sua luz dourada.

Por este ato, Watchman havia declarado qual era a sua posição. "Senhor, deixo meu mundo para trás. Tua Cruz separa-me dele para sempre e entrei num outro. Estou onde me colocaste em Cristo!" Voltaram para a sala da reunião com um cântico em seus corações.

 

CAPÍTULO 5

SEGUINDO O SENTIDO DA FIBRA

Wang Tsai e Watchman Nee viviam, agora, sempre jun­tos, partilhando um zelo comum pela propagação do evan­gelho entre os moços e as moças da cidade e das escolas e faculdades locais. A pregação de rua continuava e foi levada também às aldeias da vizinhança. O prolongado feriado do Ano-Novo chinês foi devotado, em parte, a este trabalho e em parte a uma Convenção destinada aos crentes que viviam espalhados, a fim de guiá-los em seu crescimento espiritual. Neste último trabalho, o diligente estudo de Watchman na Palavra começou a dar frutos, pois, de imediato exibiu dom e clareza de exposição que se comprovariam utilíssimos aos seus ouvintes.

No lar de Wang Tsai havia uma sala de tamanho suficiente para realizar reuniões e uns poucos se reuniam aí para oração e estudo bíblico. Um domingo de tarde, em 1922, um pequeno grupo composto por apenas três pessoas — Wang Tsai, sua esposa e Watchman Nee — juntos se lembravam do Senhor no partir do pão. Encontraram tal alegria e liberdade em assim adorar o Senhor, sem sacer­dote ou ministro, que começaram a fazer isto com frequên­cia; e depois de algumas semanas, outros se uniram a eles, incluindo Simon Meek, Wilson Wang, Faithful Lucas, a mãe de Watchman e um segundo ex-oficial da Marinha, João Wang, que nada tinha de parentesco com os outros Wang.

Perto do fim de 1922, outra mulher respeitável, que ocupa lugar principal nesta história, visitou Foochow para dirigir uma missão evangelística. Ruth Lee (Li Yuen-ju) era pequena, mas inflamada; era natural de Tientsin e estava empregada, agora, como professora numa faculdade em Nanking. Fora, outrora, convicta ateísta e ávida leitora da Nova Juventude, da autoria de Chen Tu-hsiu. Havia ido para Nanking pela primeira vez como diretora de uma escola normal do governo, ali chegando cheia de arrogân­cia: "Ainda que o mundo inteiro se converta ao cristianis­mo, eu jamais crerei!" Sabedora de que já havia algum interesse religioso entre as moças, ela buscou e publica­mente queimou os novos testamentos que diversas delas estavam lendo. Duas alunas, às quais se juntou uma professora de tempo parcial na escola, chamada Christiana Tsai, puseram-se a orar pela conversão da diretora. Então, durante um período escolar, houve uma epidemia de peste bubônica e a escola fechou; Ruth teve de acompanhar algumas alunas de volta pelo canal para suas aldeias. De certo modo, aquela viagem silenciosa através dos campos de trigo da primavera colocou-a face a face com Deus como Criador. Em seu coração, nasceu uma nova fome que a leitura secreta da Bíblia começava a satisfazer e, afinal, encontrou em Jesus Cristo o seu Salvador. Então, renunciou ao posto que tinha no governo e encontrou emprego na missão como obreira cristã de tempo integral.

Visto que Wang Tsai a conhecera no tempo de sua própria conversão em Nanking, convidou Ruth Lee para ficar mais algum tempo e dirigir mais quatro dias de reuniões abertas em seu lar. Foram reuniões notáveis, apinhadas de homens e mulheres, de pessoas idosas e de jovens; foi um momento de grande bênção. Pelo menos para um estudante, Faithful Lucas, elas foram um marco espiri­tual. Havia frequentado as reuniões de Dora Yu com o coração faminto de Deus e ardentemente havia participa­do nos dois anos de atividades que se seguiram; mas, a plena certeza da salvação só veio por intermédio da pre­gação inflamada de Ruth Lee. Outros, também, encontra­ram o Salvador nesta ocasião, e tornou-se necessário prolongar as reuniões mesmo depois que a pregadora especial se havia retirado. Assim, enquanto os jovens saíam e reuniam o povo nas ruas da redondeza, Wang Tsai, Watchman Nee e João Wang, por sua vez, pregavam a Cristo noite após noite a audiências cada vez maiores.

Aquele inverno foi excepcionalmente frio com os topos dos montes cobertos de neve, cena rara na costa de Fukien. As pessoas andavam de um lado para outro, estreitamente apegadas a seus cestinhos de brasas como se esses cestinhos contivessem a própria centelha de vida. Simon Meek havia percorrido quarenta e oito quilómetros rio abaixo até aos estreitos e através da cadeia costeira para passar um breve feriado em sua cidade natal de Lieng Chiang. Mal fazia uma semana que se encontrava ali quando chegou um cartão postal de Watchman. "Urgentíssimo", lia-se nele. "Deus está realizando uma grande obra entre nós e preci­samos da sua ajuda. Por favor, volte imediatamente." Embora o tempo estivesse apavorante e os exércitos rivais estivessem ativos ali por perto da cidade, Simon Meek fez, desde logo, a arriscada viagem de volta sobre as montanhas até Foochow.

O que encontrou deixou-o espantado. O Espírito de Deus estava operando e os meninos e meninas estudantes que se haviam arrependido dos seus pecados e crido no Senhor Jesus estavam completamente transformados. Movido pelo espírito de alegria e de humilde ação de graças entre eles, também se dedicou de novo a seguir ao Senhor em singeleza de coração. "Assim na terra como no céu", são as palavras que usa para descrever os dias nos quais haviam entrado.

As reuniões continuaram em vigor todas as noites e durante os fins-de-semana e quando recomeçou o período escolar, simplesmente prosseguiram após as aulas. Bandos de jovens com camisetas e bandeiras nas quais se lia "Jesus Vem" e "Crê no Senhor Jesus Cristo" saíam cantando e convocando o povo para os serviços religiosos que rapida­mente se enchiam de ouvintes atentos. Com o passar dos dias e com o crescente entusiasmo, desde logo ficou claro que necessitavam de mais espaço. Assim sendo, os jovens juntaram seus recursos e alugaram uma casa em Chien Shan e fizeram bancos rústicos de planchas para o povo sentar-se. Simon e Watchman fixaram residência ali, para estarem disponíveis quando não estivessem em aula para poderem atender às necessidades dos indagadores. Todas as noites, um bando de rapazes vinha da escola, lavava suas roupas, comia alguma coisa e saía para pregar.

Saídas mais ambiciosas para testemunhar nas aldeias eram realizadas em feriados, tais como o Festival do Barco do Dragão. Uma vez liberados dos estudos, o grupo de jovens, sessenta ou oitenta rapazes fortes, saía por uma ou por outra das estradas pavimentadas de granito através dos campos de arroz e cana-de-açúcar, onde os campone­ses vestidos do mesmo tecido de algodão azul pisavam sem cessar os elevadores de água fabri­cados de madeira ou vadeavam fundo na lama atrás dos arados puxados por búfalos. Qualquer pessoa alfabetizada que eles encontravam na estrada ou nas casas de repouso, recebia um folheto evangélico. Homens de todas as classes sociais, desde autoridades escolares até "coolies" e solda­dos, eram prontamente envolvidos em conversação, pois esses rapazes eram "educados" e em qualquer parte podiam dominar uma audiência. Chegados à aldeia escolhi­da, acampavam fora num edifício de igreja tomado por empréstimo, separando uma sala para "orar sem cessar" onde se revezavam para manter uma vigília de vinte e quatro horas. A noitinha quando os trabalhadores volta­vam dos campos para casa, formavam grupos ordeiros através das ruas, convidando os aldeões para ouvir a pregação do evangelho.

Simon Meek afirma que Watchman era o planejador e líder dessas aventuras. Enquanto caminhava a passos largos, sorridente e animado com os grupos a cantar, ou orientava os menos experientes em seus contatos pessoais e testemunho, estava sempre com os olhos voltados para a frente, sempre preocupado com o futuro dessas consagra­das vidas e estimulado pelo potencial que ofereciam a Deus. Por este motivo, insistia em que o tempo não aplicado à evangelização fosse empregado na instrução bíblica desti­nada a revelar-lhes o propósito de Deus e os altos padrões de discipulado que o próprio Jesus estabelecera.

Para a sua própria renovação espiritual, tomava a lancha para Pagoda, onde, muitas vezes, até duas dúzias de homens e mulheres compareciam às aulas de Bíblia dirigidas pelas damas inglesas na White Teeth Rock (Rocha dos Dentes Brancos). Margaret Barber dirigiu a maior parte do ensino que de agora em diante se comprovaria cada vez mais frutífero. Watchman viu-se valorizando mais e mais o conselho e a amizade dessa mulher. Convidado, certo dia, para unir-se a ela em oração, descobriu que ela própria estava enfrentando uma controvérsia com Deus.  Deus desejava algo dela e ela sabia-o e em seu coração ela também o desejava. Não obstante, era custoso e não con­seguia convencer-se de que devia ceder. Ele ouvia en­quanto ela pleiteava com Deus, entretanto a luta não era para que Deus reduzisse suas exigências. "Senhor, isto não me agrada mas, por favor, não ceda à minha vontade." Tudo o que ela pedia era tempo. "Simplesmente espere, Senhor e me renderei a ti!" Ela era tão evidentemente sincera que ele começou a ver nela uma pessoa a quem ele podia, com segurança, trazer seus problemas, que eram muitos.

Quanto às relações entre os irmãos, nem sempre es­tiveram isentas de tensão. Com todo o seu zelo e devoção a Deus, Watchman, conforme vimos, não tolerava a injustiça. "Em meus primeiros tempos", lembra-se, "propus-me evi­tar tudo o que era mau e fazer o que era bom e pareceu-me que realizava esplêndido progresso. Naquele tempo, tinha um colega de trabalho dois anos mais velho do que eu e vivíamos sempre em desacordo. Além do mais, nossas discordâncias eram sobre assuntos públicos, de modo que nossas disputas eram públicas também. Dizia comigo mes­mo: Se ele insiste em fazer as coisas do seu modo, devo protestar, pois isso não é certo. Mas, a despeito dos meus protestos, ele nunca entregava os pontos. Para mim, só havia uma linha de argumento: certo e errado. Ele também tinha lá a sua linha de argumento: sua condição de mais velho. Ele justificava suas ações raciocinando que era dois anos mais velho, fato que não podia refutar. Por isso, ele sempre levava vantagem. Ressentia-me de sua irrazoabilidade e no íntimo nunca cedia, mas, na prática, ele sempre contava pontos a seu favor."

Um dia, Watchman levou sua aflição para a Srt.a Barber e apelou a ela que arbitrasse a questão. Quem estava certo: ele ou o outro irmão? Ela, porém, conhecendo a Deus e detestando em si própria o orgulho e o ciúme, ignorou os certos e os errados da situação e tranquilamente respondeu: "Seria melhor você fazer conforme ele diz." Watchman ficou totalmente desgostoso: "Se estou certo", protestou, "por que não reconhecê-lo? Ou se estou errado, diga-o com franqueza! Por que dizer-me que faça o que ele diz?" "Porque", respondeu ela, "no Senhor, o mais moço deve submeter-se ao mais velho." Watchman ainda estava fazendo o curso secundário e conhecendo pouca coisa de autodisciplina, desabafou sua contrariedade. "No Se­nhor", retorquiu, "se o mais jovem está certo e o outro errado, deve o mais jovem ainda assim submeter-se?" Ela, porém, simplesmente sorriu e disse de novo: "Seria melhor você fazer conforme ele diz."

O problema era que isto lançava uma sombra sobre os dias ensolarados que viveram. Naquela primavera de 1923, o primeiro grupo dos que haviam nascido de novo recentemente haviam pedido o batismo. Para os irmãos, este era um tempo muitíssimo significativo. "Quem quer que tenha visto os homens converter-se a Cristo numa terra pagã", ressalta Watchman, "sabe que tremendos problemas o batismo suscita." Mas, a solene expectativa com a qual enfrentavam a ocasião era um tanto desfigurada para ele por causa desta tensão em pano de fundo. Três deles deviam, juntos, arcar com a responsabilidade: Watchman, o irmão dois anos mais velho e um sete anos mais velho do que ele. Que aconteceria, ponderava, quando discutissem os argumentos? Iria ele, que sempre controlou aqueles dois anos mais jovem submeter-se, por sua vez, àquele que era sete anos mais velho? Reuniram-se, e o irmão obstinado permaneceu irredutível, descartando toda sugestão apre­sentada pelo que era mais velho. Por fim, mandou embora os dois, com esta observação: "Vocês dois podem deixar as coisas comigo; encarrego-me delas muito bem." Que espé­cie de lógica é esta? Pensou Watchman desgostoso.

O próprio dia era, com efeito, um ponto luminoso na história deles, com dezoito jovens, principalmente estudan­tes, dando jubiloso testemunho público, no rio, de sua união com Cristo na morte e ressurreição. Para a multidão que assistia, o evangelho era claramente pregado. Depois disso, uma vez mais, procurou a Srt.a Barber para resolver um problema. "O que me aborrece", protestou, "é que aquele irmão não dá lugar para certo ou errado." Ela, porém, sempre rígida consigo própria, podia, portanto, ser muito franca com os outros. Pondo-se em pé, olhou-o bem nos olhos. "Você nunca considerou, até hoje, o que é a vida de Cristo? Você não conhece o significado da Cruz? Nestes últimos meses você só vem afirmando que está certo e seu irmão está errado. Mas pensa você", prosseguiu, "que é certo falar como vem falando? Pensa você que é certo vir e relatar-me essas questões? Seu juízo do que é certo ou errado pode ser perfeitamente correto, mas, que dizer do seu sentido interior? A vida dentro de você não protesta contra seu próprio comportamento melindrado?"

Enfrentando-o assim em seu próprio terreno, havia tocado no ponto nevrálgico da questão quando ele, confuso como estava, teve de admitir lá no íntimo que mesmo quando, segundo a lógica humana, estava certo, o Espírito Santo em seu interior dizia que sua atitude era errada.

Margaret Barber, muitas vezes, repreendeu a Watchman desta maneira, mas, para Faithful Lucas certo dia observou: "Ele se tornará um grande pregador." E ele, anos mais tarde, repetidamente confessava a influência que ela exer­cera em sua vida. "Sempre pensei nela", diz, "como uma cristã 'iluminada'. Bastava-me entrar em sua sala, de imediato eu era trazido a um senso da presença de Deus. Naqueles dias era muito jovem e vivia cheio de planos, de esquemas e mais esquemas para o Senhor sancionar, mil e uma coisas que julgava maravilhosas se pudesse concreti­zá-las. Com todas essas coisas em mente, procurava-a para experimentar e persuadi-la; dizer-lhe que isto ou aquilo era o que se devia fazer. Mas, antes que pudesse abrir a boca, ela dizia algumas palavras muito comuns — e a luz raiava. Isso simplesmente me deixava envergonhado. Toda a minha esquematização era tão natural, tão cheia do homem, ao passo que aqui estava alguém que vivia só para Deus. Tinha de clamar: 'Senhor, ensina-me a andar dessa manei­ra'."

Por esse tempo, ela deu-lhe para ler a biografia de Jeanne de la Motte Guyon (1648-1717), a mística francesa que Luís XIV aprisionou na Bastilha por causa de sua fé.

Nos escritos de Mme. Guyon, a nota de consentimento na vontade de Deus comoveu-o sobremaneira e exerceria grande influência sobre sua futura maneira de pensar. De certa forma, esse livro aprofundou-lhe a consciência das coisas invisíveis, mas, eternas. Outro fruto de seu acesso às estantes de livros da Srt.a Barber, e aos escritos de G. H. Pember, Robert Govett e D. M. Panton foi um avivado senso escatológico. A próxima volta do Senhor Jesus tornou-se, para ele, uma perspectiva real, que devia aguardar com ansiedade e preparar-se para ela com um sentimento de urgência. Faithful Lucas recorda-se de como neste tempo ele expunha os livros de Daniel e do Apocalipse com entusiasmo e grande efeito, incendiando seus ouvintes com uma disposição de pagar qualquer preço que preparasse o caminho para a vinda do Filho do homem.

Mas, nem tudo lhe corria bem. Mais ou menos nessa ocasião, conta-nos, Deus mostrou-lhe que devia ir, durante as férias escolares, pregar o evangelho numa ilha conhecida por viver infestada de piratas. Foi, diz, uma verdadeira luta para que se dispusesse a ir; mas, levou a sério o chamado. Que é que Deus não podia fazer se obedecesse? Após muita oração, fez uma visita à ilha que ficava longe, no Estuário do Min. Para sua alegria, encon­trou as pessoas dispostas a recebê-lo; com alguma difi­culdade, alugou uma casa, fez os consertos necessários e tudo estava pronto. O projeto havia atraído a imaginação dos irmãos e cem deles estavam orando a favor de Watch­man e haviam contribuído para as despesas. Em todo este tempo, seus pais não levantaram nenhuma objeção. Cinco dias antes de sua partida e quando tudo já estava prepa­rado e empacotado, entraram e proibiram-no de ir! A casa estava preparada, o dinheiro gasto, a vontade de Deus ardia-lhe no coração; que devia fazer? Seus pais disseram não e Deus havia dito: "Honra a teu pai e a tua mãe". Em profunda angústia buscou a luz de Deus. "Sim", disse-lhe Deus, "minha vontade é que você vá. Por outro lado, não tenho alegria alguma quando você força essa vontade para que ela se cumpra. O que desejo é que você se sujeite aos seus pais; assim, você simplesmente terá de esperar e permitir que minha vontade opere de outro modo." O problema, agora, era que Watchman não se sentia com liberdade de explicar aos outros o motivo da sua mudança de planos, a saber, eram seus pais que o detinham. "Por conseguinte, todos me compreenderam mal", diz, "e a pessoa cuja opinião tinha em alta estima, disse: 'Será difícil confiar em você no futuro.'"

Ponderou longa e amargamente sobre este problema, até que um dia deu com as palavras de Jesus no Evangelho de Mateus acerca do imposto do templo: "Logo, estão isentos os filhos. Mas, para que não os escandalizemos... Toma-o e entrega-lhes por mim e por ti." De repente sentiu o peso do "logo" — e compreendeu. Até mesmo Jesus podia acomodar-se àqueles que se escandalizariam por Sua liberdade, por Sua isenção de cumprir preceitos da lei. Anos mais tarde, Watchman pôde interpretar a experiência objetivamente à luz da crucificação. A vontade de Deus pode ser clara e inconfundível, mas, para nós, o caminho divino para chegar a ela pode, às vezes, ser indireto. "Nossa auto-estima é alimentada e acalentada porque dizemos: Eu estou fazendo a vontade de Deus!" O que nos leva a pensar que nada sobre a terra deve impedir a passagem. Então, um dia Deus permite que aceitemos algo em nosso caminho a fim de contrariar essa atitude. A semelhança da cruz de Cristo, ela cruza — não nossa vontade egoísta mas, de todas as coisas, nosso zelo e amor pelo Senhor! Isso é-nos dificílimo de aceitar." Com efeito, na ocasião não podia aceitá-la. Tudo o que podia sentir era ressentimento pela atitude dos pais e sobre a mãe jogava a maior parte da culpa. Levaria algum tempo para vencer este sentimento.

Perguntou à Srt.a Barber se poderia emprestar-lhe algo para ler a respeito do assunto da cruz na experiência cristã. Ela confirmou que possuía dois livros, mas, não poderia dar-lhos no momento; preferia esperar até que estivesse amadurecido para lê-los. "Eu não podia entender a razão disto", diz, "e desejava muito ler esses livros; de modo que os consegui por astúcia. Indaguei dela os títulos e o nome do autor sem que ela desconfiasse e escrevi à Sr." Penn-Lewis que mos enviou como presente e escreveu-me também uma excelente carta! Um era The Word of the Cross (A Palavra da Cruz) e o outro era The Cross of Calvary and Its Message (A Cruz do Calvário e Sua Mensagem). Bem, li-os com o máximo cuidado e embora rece­besse ajuda de um tipo, para meu desapontamento não solucionaram meu maior problema. Assim, entendo, não é do feitio de Deus dar-nos respostas rápidas."

Durante o último mês do verão de 1923 a escola ficou fechada em virtude de uma greve e Faithful Lucas, com outros quatro colegas, aproveitaram a oportunidade para testificar por meio do batismo sua ruptura com o mundo e a união com seu Senhor. A experiência de Lucas era típica. Um tio influente, no furor da ira, fê-lo sair às pressas de Kutien, porque sendo criado como membro da Igreja Angli­cana, seu sobrinho podia, por sua ação, ter prejudicado suas perspectivas de uma concessão para entrar na Uni­versidade de São João. O tio insistiu para que se arrepen­desse do passo dado; mas, Lucas respondeu: "Meu arrependimento é para com Deus e por meus pecados. Estou em paz." Até o seu diretor pensou que tivesse perdido o juízo quando deu a conhecer sua intenção. O Trinity College era uma porta de entrada para emprego no Estado ou na Missão e os rapazes partiam dali para posições amiúde de grande influência. "Você quer dizer, então, que não vai prosseguir nos estudos? Perguntou. "Não", foi a resposta impetuosa, "vou pregar o evangelho." O missionário ficou sinceramente perturbado. Nee, temia ele, estava-se tor­nando uma influência perniciosa na comunidade estudantil. "Vá e ore", disse, "e volte a procurar-me passadas três noites." Mas, ao voltar, a mente de Lucas não havia mudado. "Decidi servir somente ao Senhor Jesus", disse; e nunca na vida retratou-se de sua decisão.

Os dois rapazes que completaram o ano com Faithful Lucas entraram para o Departamento da Alfândega, mas, ele próprio foi para Pagoda. As senhoras inglesas estavam compreensivelmente cheias de louvor pelo dilúvio de res­postas em meses recentes às suas prolongadas orações; e a Srt.a Barber convidou-o agora para atuar como anfitrião dos jovens que vinham em busca de informação, enquanto sua colega cuidava das mulheres. Ele devia ficar ali seis anos.

Agora, eram Watchman e Wilson que estavam em seu último ano em Trinity numa classe um tanto maior. Na faculdade, durante o inverno, o fervor evangélico não cessava de arder e havia três reuniões diárias de oração entre os rapazes, uma bem cedinho e duas à noite. Na cidade, também, o testemunho do evangelho florescia en­quanto Wang Tsai e João Wang pregavam noite após noite no pequeno salão alugado. O culto dominical ali com o partir do pão era agora um ato regular. Entrementes, Watchman dava o que podia do seu tempo ao crescimento espiritual dos convertidos e dos jovens obreiros e até publicou para eles algumas edições de um boletim mi-meografado, Revival (Reavivamento), que incorporavam alguns de seus estudos bíblicos. A conferência de Ano Novo realizou-se novamente em Fevereiro e com as férias da primavera os grupos de evangelização saíram uma vez mais para as aldeias. O trimestre do verão foi perturbado por severas inundações que impunham pesada tensão sobre os arcos baixos da antiga ponte e trouxeram a cólera e a peste aos lares ribeirinhos, mas, os rapazes tiveram condições de concluir o ano na escola. Nos exames finais, Wilson Wang obteve o primeiro lugar com Watchman Nee bem próximo em segundo; na realidade, era praticamente um empate.

Watchman estava agora com vinte e um anos de idade. Para a formatura, ele usou uma nova toga de dez dólares adquirida por sua avó paterna, a dama cantonense de língua ferina, agora toda feliz e reconciliada com a nora. Mas, para ele, de longe a coisa mais gratificante de todas era o fato pelo qual os estudantes agora se reuniam ao final do período escolar para dar graças juntos, porque nos doze meses passados, Deus havia conquistado para si muitos novos convertidos nas faculdades de Foochow, na cidade e nas regiões circunvizinhas.

6

A PROVA DA FÉ

De tempos em tempos, durante esses anos, a família Chang voltava de Tientsin para Foochow onde Chang Chuen-kuan estava agora empregado como pastor da Alian­ça Cristã e Missionária. Eles e os Nee permaneceram amigos firmes e o relaxamento geral dos estritos costumes sociais significava que as crianças crescidas podiam ainda encontrar-se livremente no lar. Não é de surpreender que esses encontros tenham despertado em Watchman um interesse em sua ex-colega, Charity, que era ao mesmo tempo inteligente e bonita ao extremo.

Mas, então, Watchman havia encontrado o Salvador e tinha passado, como vimos, por uma total revolução de perspectiva. Além do mais, com sua formatura havia feito, à semelhança de Faithful Lucas antes dele, outra escolha radical. Não prosseguiria os estudos no St. John's College, conforme esperavam seus pais que o fizesse, nem buscaria aumentar sua educação formal, mas, de agora em diante, dirigiria a vida à tarefa de pregar a Jesus Cristo. A decisão era de longo alcance e parece ter sido tomada tão-somente por convicção pessoal.

Só agora reconheceu o quanto Charity Chang havia ocupado seus pensamentos. Não tinha havido, é claro, nenhum indício de casamento, mas, em alguma fase a ideia certamente havia encontrado guarida em sua mente. O próximo encontro deles, porém, deixou-o preocupado. O que já temia era por demais evidente como resultado da breve conversa que mantiveram. Seus gostos mundanos e sua paixão por andar vestida segundo a moda pareciam-lhe a marca de algo mais profundo. De maneira alguma participaria do amor que ele dedicava ao Senhor, com sua nova escala de prioridades, pois tinha seus próprios obje-tivos, ambições por sucesso aos olhos do mundo que ele já não podia aceitar. Estava claro que se encaminhavam para direções diferentes.

Por algum tempo, ele deixou de lado o problema, até que um dia estava lendo o Salmo 73 e deu com estas palavras do versículo 25: "Não há outro em quem eu me compraza na terra", e o Espírito de Deus prendeu-o. "Você tem um desejo consumidor na terra. Você deveria abrir mão de seu afeto pela Srt.a Chang. Quais as possíveis qualificações que ela tem para ser esposa de pastor?" Sua resposta foi uma tentativa de barganhar. "Senhor, farei tudo por ti. Se quiseres que leve as boas-novas às tribos que ainda não foram alcançadas, estou pronto para ir; mas, esta é a única coisa que não posso fazer." Como poderia ele, que acabara de completar vinte e um anos, tirar de sua mente aquela pessoa que tão prazeirosamente a ocupava?

Atirou-se, portanto, à obra do evangelho. Havia muitas portas abertas e após participar de maneira aceitável da Conferência de Ano Novo em Foochow, entregou-se ao trabalho de aldeia e especialmente à instrução de novos crentes. Não demorou para que aqui aprendesse novas lições. "Durante um ano após minha conversão", conta-nos, "tinha um ardente desejo de pregar. Era-me impossível ficar em silêncio. Era como se houvesse algo movendo-se dentro de mim que me empurrava para a frente e tinha de continuar andando. A pregação tornara-se minha própria vida." Recebera uma boa educação e era bem versado nas Escrituras, de modo que era muito natural que se conside­rasse perfeitamente capaz de instruir o povo da aldeia, onde especialmente as mulheres eram quase todas analfa­betas. Mas, depois de algumas visitas a um grupo com o intuito de ajudá-los a confirmar a fé, sua auto-estima foi severamente esvaziada. Conforme descobriu, essas mulhe­res, a despeito de seu analfabetismo, haviam chegado a um conhecimento íntimo do Senhor. Nas suas palavras, "co­nhecia o Livro que liam hesitantemente; elas conheciam Aquele de quem o Livro falava". Ele estava começando a aprender a humildade. Não havia arrefecimento do seu zelo, mas, estava tendo seu primeiro encontro com um princípio divino de produzir frutos — que "sem mim nada podeis fazer".

Nesta ocasião, também, com o término de sua bolsa de estudos e sem nenhuma perspectiva de emprego remune­rado, começou a enfrentar o que significava confiar em Deus para suprir as necessidades. Dentre os livros que havia retirado das estantes das damas inglesas, foi grande­mente influenciado pelos relatos da fé de George Múller, de Bristol, e de Hudson Taylor, da Missão da China Conti­nental. Esses homens haviam demonstrado sua confiança no Invisível ao porem à prova a suficiência de Deus para as necessidades visíveis e tangíveis de sua obra. Mais perto ainda, a própria Margaret Barber era um exemplo vivo de fé. Ela havia partido da Grã-Bretanha sem nenhum apoio garantido além da certeza de um fiel cristão hebreu: "Se Deus envia você, Ele deve ser responsável." Muitas vezes, Watchman sabia, ela ficara reduzida ao seu último dólar, mas, Deus nunca falhou com ela. Em 1923, ela havia falado aos irmãos acerca de sua oração pedindo uma hospedaria de dez cómodos para expansão de seu trabalho em Customs Point, sem a mínima ideia de como conseguiria isto. Watch­man ficou maravilhado quando, um pouco mais tarde, uma escola industrial da vizinhança parou de funcionar e Deus fez com que suas vinte salas se tornassem disponíveis a ela mediante o pagamento de um aluguel praticamente simbólico.

Tal fé era contagiosa. Ele estava lá num fim-de-semana quando um seu amigo com dois dólares no bolso tinha necessidade urgente de conseguir $150 segunda-feira de manhã e o barco postal não funcionava nos sábados e nos domingos. Após entregar o assunto nas mãos de Deus, este irmão saiu a pregar e encontrou-se com um homem a quem ele devia um dólar, e o homem lembrou-o da dívida e esta foi paga. A moeda que lhe restava no bolso assumia agora um novo valor e quando ele se encontrou com um mendigo, pensou em trocá-la em miúdos antes de dar-lhe uma es­mola; mas, Deus obstou-lhe o plano e ele deu ao mendigo a moeda. Quando aquele dólar saiu, Deus entrou. Ele voltou para casa e dormiu em perfeita paz; na manhã de segunda-feira recebeu por telegrama um donativo imprevisto de 150 dólares!

Para Watchman Nee, este princípio divino de "dai e dar-se-vos-á", devia tornar-se uma nova norma de vida. Se nos preocupássemos exclusivamente com as necessidades alheias, então Deus, acreditava, faria Suas todas as nossas preocupações. Mas ele ia além. Jamais devemos, susten­tava, divulgar aos outros nossas próprias necessidades financeiras, mesmo quando tal segredo pudesse induzir nossos amigos a interpretar erroneamente nossa pobreza como riqueza. Além do mais, exceto a breve hospitalidade, nada devemos "receber dos gentios" para a obra de Deus e assim evitar colocá-Lo sob obrigação aos pecadores.

Logo mais devia pôr esses princípios à prova. Um seu colega de classe, K. Ff. Weigh, anteriormente havia deixado o Trinity a fim de ir para a Universidade de Nanking e exatamente agora estava em casa em Kienning, onde seu pai era médico do Hospital da Missão. Kienning (ou Chien-O) está situada cerca de 240 km rio acima de Foochow, bem nas montanhas, na confluência de diversos rios; é centro da indústria de papel e empório do comércio interior. Watch­man recebeu da Missão ali um convite para dirigir uma série de reuniões evangelísticas. Estava seguro de que suas despesas seriam cobertas; depois de orar, telegrafou res­pondendo que partiria na sexta-feira.

O problema era chegar lá. Tinha apenas 30 dólares em mãos e a passagem por barco motorizado custaria, no nínimo, 80 dólares. O pior da história é que soube que aqui em Foochow havia outro irmão em Cristo que se encontra­va, pelo menos, na mesma situação financeira que ele. Quando, na quinta-feira, Deus lhe trouxe este fato à lem­brança, sentiu que devia agir e com muita apreensão, portanto, enviou-lhe um donativo de 20 dólares pelas mãos de Wang Tsai.

Na manhã seguinte ninguém deu a Watchman coisa alguma antes de partir e enquanto efetuava a travessia por barco até ao porto com meros 10 dólares no bolso, orou em desespero: "Senhor, não te peço dinheiro; somente que me leves a Chien-O!" Chegado ao cais, foi abordado pelo dono de uma pequena lancha a vapor, que lhe perguntou: "Para onde vai, vai para Yen-ping ou para Chien-O?" "Para Chien-O", respondeu. "Então, venha comigo. Eu o levarei." "Por quanto?" "Apenas sete dólares." Espanta­do, perguntava qual o motivo enquanto transportava a bagagem para bordo. O barco, ficou sabendo, estava fretado para o condado, mas, o proprietário estava livre para ganhar alguma coisa extra deixando vago o assento para um passageiro se tal assento não fosse exigido pelos afretadores. Dessa maneira, Watchman fez a longa viagem sem ser molestado por salteadores e livre das infindas demoras provenientes dos Jiirin cobradores de impostos em Shui-kow e Yen-ping e outros pontos na rota.

Quanto ao cenário, a viagem foi bela; a primeira parte através de uma região semimontanhosa, fértil, onde aqui e acolá os declives eram revestidos de bosques de longiens, lichias, toronjas e das laranjas verdes e douradas de que Watchman tanto gostara desde a infância. Expres­sava uma opinião generalizada quando costumava dizer com orgulho: "Acho que não há no mundo laranjas iguais às de Fukien." Mais além, rio acima, as montanhas recober­tas de pinheiros se adensavam e havia pedras pontiagudas e madeira flutuando nas águas turbulentas enquanto o barco sulcava estrepitoso seu lento curso sob os penhascos carrancudos para conduzi-los ao seu destino.

Em Chien-O, Watchman pregou durante duas semanas, tendo muita liberdade no uso da Palavra e com o saldo de um dólar e vinte centavos no bolso. Suas mensagens eram bem recebidas e seu amigo K. H. Weigh entrou num novo estado de bênção e consagrou-se de novo a Deus. Por fim, houve um almoço de despedida no qual o arquidiácono Hugh Phillips levou o jovem pregador para um lado. Hugh era homem de vasta experiência e sobrevivente de incríveis provações por amor ao evangelho. "Recebemos muita ajuda de suas pregações", disse. "Por favor, posso partilhar de suas despesas?" Watchman respondeu com ímpeto: "Não há necessidade alguma. Tudo está plenamente provido." Para ser franco, não se sentia à vontade quanto a aceitar ajuda missionária. Tinha certeza de que Deus agiria a Seu modo. Mas, no dia seguinte, caminhando com muitos novos amigos pela estrada que leva ao rio, amigos que foram ao seu bota-fora, se viu orando: "Senhor, tu não podes trazer-me aqui e não me levar de volta ao lar!" A meio caminho do barco, um mensageiro aproximou-se dele com um bilhete do missionário: "Embora alguém tenha pago sua passagem, queira aceitar a quantia inclusa, permitindo que este idoso irmão tenha uma pequena parte." Reconhecendo nisto a mão de Deus, aceitou o sinal de comunhão. A quantia dava para pagar muito além de suas despesas, pois o mesmo barco fretado ali estava pronto para voltar, com a mesma vaga ao mesmo preço reduzido. Na divertida descida pelas corredeiras do Min, o seu coração estava em paz. Uma vez mais, de volta a Foochow, descobriu, também, que o donati­vo que fizera antes de sair havia satisfeito a uma neces­sidade verdadeiramente aflitiva. Foi uma experiência da qual jamais se esqueceria. Conforme disse mais tarde, o caminho de Deus não é "Poupe e você ficará rico", mas "dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante".

Contudo, em Nantai tinha ocorrido uma mudança no relacionamento de Watchman com os obreiros que opera­vam a partir da casa alugada. De maneira alguma se conhecem os detalhes que levaram à decisão dos irmãos mais idosos, Wang Tsai e João Wang, apoiados por mais uns poucos, de pô-lo fora de sua comunhão. Na verdade, havia-os desapontado por causa da aventura na ilha de piratas. Entretanto, não foi isto, mas, um simples problema de princípio que é citado pelos envolvidos naquele tempo, e parece surpreendente que tal problema tenha surgido num grupo ainda tão jovem.

Em sua busca de uma nova investida no trabalho do evangelho, Watchman procurava voltar aos pontos funda­mentais. A seu ver, Deus mesmo é o Organizador de qualquer trabalho que seja chamado verdadeiramente Seu; e Deus deve ser, também, o alvo desse trabalho. Mas, o que dizer da tarefa intermediária? Não era Ele, em certo sentido, o seu Agente — Aquele que deve dotar a todos de poder? Aqui havia, no seu entender, algo que os cristãos geralment