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WATCHMAN NEE


PREFÁCIO

Este relato da vida e ministério de Watchman Nee é apresentado do ponto de vista do observador que se encon­tra distante e que em tempo algum esteve envolvido no cenário chinês. Quando, em 1938, jovem missionário pres­tes a deixar a Inglaterra com destino à índia, tive o pri­vilégio de passar algumas valiosas semanas na sua compa­nhia, descobri que todo o panorama que eu tinha da vida e do serviço cristãos estava grandemente enriquecido e re­cebera nova direcção e propósito; e agora que me coube a tarefa de dar forma escrita à sua notável história, uma vez mais ele influenciou minha maneira de pensar. Pois, como seria de esperar, sua mensagem e sua vida acham-se inextrincavelmente entretecidas. Colocando-se uma no con­texto da outra e fazendo pleno uso de suas próprias historietas, que são muitas, e atentando para a interpreta­ção que ele lhes dá, podemos acompanhar a mão de Deus no curso de sua peregrinação através de um cenário de acontecimentos que abalam o mundo.

No decorrer dos anos tive o privilégio de encontrar-me com muitos que conheceram Nee na intimidade e conversar com eles e é em grande parte a essas pessoas que devo o quadro vívido que possibilitou a sua reconstrução nestas páginas.

Alguns encontros anteriores foram breves demais e, para meu pesar, circunstâncias predominantes não me permitiram ir em busca de alguns deles. Desses relatos pessoais, muitos se encaixaram proveitosamente para re­forço mútuo, mas, para alguns detalhes tive de depender — e achei certo fazê-lo — da evidência de testemunhas que fizeram citações de memória. Além do mais, de quando em quando — onde a evidência era insuficiente — tive de fazer minhas próprias deduções piedosas quanto a ocasiões e sequências precisas e, por amor à brevidade, tomar alguns atalhos. Por quaisquer erros e inconsistências que houver nestas páginas, devo assumir responsabilidade pessoal, bem como pelas minhas avaliações de Nee e de seus colegas. Peço desculpas especialmente por qualquer pesar ou inconveniência que pudesse resultar de minha compreensão errónea dos signi­ficados, causas ou motivos que estão por trás dos acon­tecimentos.

Recebi muita assistência de muitas pessoas, e em pri­meiro lugar devo registrar a imensa dívida que tenho para com Watchman Nee em todo o meu trabalho, pelas versões e traduções talentosas feitas pela finada Srt.a Elizabeth Fischbacher do melhor que ele pregou e escreveu. Ela captou e preservou com muita habilidade o espírito do homem e parece que até aqui as contribuições que ela fez não foram reconhecidas, no que tange à série de livros de autoria de Nee que tive o privilégio de redigir. Valho-me deles de novo no presente volume. Na interpretação dos acontecimentos, a perspectiva que adotei deve muito, em diversos pontos críticos, à amadurecida sabedoria espiri­tual de outro servo de Deus. Refiro-me ao finado Sr. Faithful Luke, amigo de Watchman Nee desde os dias da infância.

Em períodos diferentes recebi grande ajuda na forma de reminiscências e impressões, documentos privados, tra­duções, etc, das seguintes pessoas: T. Austin-Sparks, Hubert L. Barlow, David Bentley-Taylor, Joy Betteridge, Dorothy Beugler, Lena Clarke, Elizabeth Fischbacher, Theodore Fischbacher, Sr.a Nancy Gaussen, Doris E. Hinckley, Herald Hsu, Hilda Holms, Victoria Holms, Mary Jones, Sophia Jorgensen,  Stephen Kaung, Witness Lee,

Gaylord Leung, Serene Loland, Faithful Luke, Leslie T. Lyall, James Ma, Shepherd Ma, George McHaffie, Kristeen Macnair, SimonMeek, JoyMeggach, D. VaughanRees, Sr." Carol T. Stearns, Newman Sze, A. G. Taylor, Mary Wang, K. H. Weigh, Mary Weller, Sr.a Betty Williams, Lucas Wu. Alan C. L. Yin. Nas Notas faço reconhecimento das fontoH impressas.

Devo também expressar minha gratidão à Srt." Jean Wood e à Srt." Rosemary Keen da Church Missionary Society e ao Dr. Jim Broomhall e à Srt.a Irene King da Overseas Missionary Fellowship pela ajuda espontânea; e a Hugh Fuller da Victoria Press pelo seu estímulo e grande paciência enquanto eu escrevia este livro. Desejo agrade­cer muito afetuosamente aos quatro que leram todo o manuscrito e ofereceram construtivos conselhos: Gaylord Leung, Janet Killeen, Leslie T. Lyall, e Jane, minha esposa, que executou todo o trabalho de datilografia.

Uma palavra sobre a transliteração dos nomes chine­ses. Exceto onde as soletrações mais antigas têm sido universalmente empregadas, tentei seguir o sistema Wade-Giles, mas, sem os "enfeites". Quer dizer que, como nos jornais e nos livros de consulta omiti os acentos e após­trofes por não terem sentido para a grande maioria dos leitores da língua inglesa (o que vale também para a tra­dução em português — N. do T.). As falhas que houver são devidas à minha própria ignorância da língua chinesa. Com o intuito de reduzir no texto o número de nomes pessoais difíceis, acrescentei um capítulo "Quem é Quem" da famí­lia Nee e de outros personagens importantes na história.

As Notas Sobre o Texto (no final do volume), além de reconhecer fontes valiosas e apresentar sugestões para leitura posterior, destinam-se a incorporar uma bibliogra­fia mais ou menos completa dos escritos e discursos pu­blicados de Watchman Nee disponíveis em inglês até à data da publicação deste livro, vinculados, onde possível, com sua data de origem e ambiente histórico.

A tarefa de preparar este livro foi recompensadora e nela pude sentir a constante ajuda de Deus. Às mãos de Deus e para seu uso, confio este trabalho.

ANGUS I. KINNEAR Londres, 1973

 

QUEM É QUEM

A FAMÍLIA NEE (NI) - (NO DIALETO DE FOOCHOW: NGA)

Avô de Watchman:

Rev. Nga U-cheng (U. C. Nga) de Foochow, nasceu em redor de 1840; pastor congregacional, ligado à American Mission Board, Foochow. Morreu em 1890.

Pais de Watchman:

Ni Weng-hsiu (W. H. Ni) ou Nga Ung-siu de Foochow, nasceu em 1877, o quarto de nove rapazes. Oficial no Serviço da Alfândega Imperial. Morreu em Hong Kong, em 1941.

Lin Huo-ping (Peace Lin, em português Lin da Paz) de Foochow, nasceu em 1880. Morreu em Swatow no ano de 1950.

Os nove filhos:

1.  Ni Kuei-chen, nascida em 1900 (Sr.a H. C. Chan).

2.  Ni Kuei-cheng, nascida em 1902 (Sr.8 P. C. Lin).

3.  Ni Shu-tsu ou Henry Nee (ou no dialeto de Foochow, Nga Shu-jeo) nascido em Swatow no dia 4 de Novembro de 1903; novos nomes (i) Ni Ching-fu, (ii) Ni To-sheng ou WATCHMAN NEE. Casou-se com Charity Chang. Mor­reu na Província de Anhwei dia 1." de junho de 1972. O casal não teve filhos.

4.  Ni Huai-tsu ou George Nee, químico pesquisador.

5.  Ni Sheng-tsu, que faleceu ainda nos tempos escolares.

6.  Ni Tek-ting (Sr.a L. H. Wong).

7.  Ni Teh-ching (Sr.a Chang).

8.  Ni Hong-tsu ou Paul Nee.

9.  Ni Hsing-tsu ou John Nee.

A FAMÍLIA CHANG

Pai de Charity:

Rev. Chang Chuen-kuan (C. K. Chang) de Foochow, pastor em Tientsin, ligado à Christian and Missionary Alliance.

Seus filhos:

1.  Chang Pin-tseng ou Beulah Chang (Sr.8 G. S. Ling).

2.  Chang-Pin-fang ou Faith Chang (Sr.8 K. L. Bao).

3.  Chang Pin-huei ou CHARITY CHANG (Sr.8 Watchman Nee). Morreu em Xangai, em outubro de 1971.

4.  Chang Yi-lun ou Samuel Chang.

ALGUNS LÍDERES E OBREIROS CRISTÃOS

* O asterisco indica os diretamente associados com a Church Assembly Hall (Movimento "Pequeno Rebanho").

* John Chang (Chang Kwang-yung), antigo obreiro de Xan­gai.

* James Chen (Chen Tseh-hsin) de Amoy, obreiro em Hong Kong.

* Stephen Kaung (Chiang Sheo-tao), obreiro em Chung-king.

* Srt.8 Ruth Lee (Li Yuen-ju) obreira encarregada da Livraria de Xangai.

* Witness Lee (Li Shang-chou)  de Chefoo;  mais tarde obreiro "Sénior" de Xangai e Taiwan.

* Philip Luan (Luan Fei-li) de Xantung, obreiro em Hang-chow.

Faithful Luke (Liok Tiong-sin) de Kutien, obreiro na Indo­nésia.

o Shepherd Ma (Ma Muh) comerciante cristão em Xangai.

* Simon Meek (Miao Shou-hsun) de Lieng Chieng, obreiro em Manilha.

Mary Stone,médica (Shih Ma-yu) primeira médica chinesa e fundadora do Hospital Bethel, em Xangai.

John Sung, Ph. D. (Sung Ju-un) pregador reavivalista as­sociado com Bethel Evangelical Band.

* Daniel Tan (Chen-Chu-yen) de Amoy, obreiro em Singa­pura.

* John Wang (Wang Lien-chun), presbítero em Foochow.

* Leland Wang (Wang Tsai) de Foochow, fundador da China Overseas Missionary Union.

Wang Ming-tao, pastor fundamentalista do Tabernáculo, Pequim.

* Srt.a Peace Wang (Wang Pei-chen), obreira em Xangai. Wilson Wang (Want Tse) de Foochow, irmão e colega de

Lelan Wang.

K. H. Weigh (Wei Kwang-hsi) de Kutien, obreiro em Hong

Kong. K.  S. Wong (Wong Kai-seng),  comerciante cristão em

Singapura.

* Lukas Wu (Wu Jen-chieh) de Tsinkiang,  obreiro em

Manilha.

* Dr. C. H. Yu (Yu Cheng-hua), oftalmologista, presbítero

em Xangai. Srt." Dora Yu (Yu Tsi-tu), evangelista e professora de Bíblia, instrumento na conversão de Watchman Nee. Faleceu em 1931.

* Alan C. L. Yin, gerente cristão de Sheng Hua Pharma-ceutical Company.

12

 

CAPÍTULO 1

 

O PRESENTE

A primavera já ia adiantada no Reino Médio e a estação de Brilho Puro dera lugar à estação de Chuva do Trigo. O ar da noite estava claro com nuvens lanosas que eram levadas pelo vento sob uma lua prateada. Foochow-fu havia fecha­do suas sete portas localizadas sob suas torres fantásticas de vários pavimentos. Dos muros em ruínas, com suas ameias, canhões obsoletos, viam-se os amplos campos de arroz e os subúrbios que se espalhavam. O tráfego de pedestres havia cessado na Ponte das Dez Mil Idades, já com oito séculos de existência, que ligava a cidade na margem norte com as ilhas de Chung-Chou e Nantai. Não havia névoa naquela noite para cobrir a barafunda de sampanas dos moradores de barcos do rio Min.

Entre as ruas e casas apinhadas, a zoeira do dia cessara há muito tempo. Cessaram também os ruídos rítmicos dos artífices de rua, as canções dos cules de bambu levando pesadas cargas, o ranger de enormes pilões des­cascando arroz, o interminável arrastar de sandálias de palha, o grunhido de bandos de porcos levados para o mercado, os gritos de vendedores ambulantes e os apelos lamentosos dos pedintes. Tudo isso havia caído no silêncio e, de igual modo, também, muito gradualmente, as últimas passadas em direção ao lar através da pista estreita: uma cadeirinha tipo liteira com carregadores fatigados trazendo para casa uma autoridade escolar que trabalhava até horas tardias da noite; um bando de tagarelas estivadores retor­navam de carregar uns trastes velhos para aproveitar a maré; um viciado cambaleante arrastava-se por sua inces­sante ânsia de conseguir o mortal "fumo estrangeiro". Agora, afinal, tudo estava calmo. No movimentado lar Nga a grande família dormia.

“Po-po! po-po!” Ao lado do marido que dormia, Lin Huo-ping mexia-se inquieta sobre sua esteira, consciente nessa noite de que secretamente havia o terceiro filho em seu ventre. Ela ouvia. De Kuein-chen e do pequeno havia apenas o respirar calmo. “Po-po! po-po!” De novo aquele som mais alto. Deve ser o vigia da noite fazendo seu circuito, alerta enquanto quase todos os homens dormiam, para dar o alarme de fogo, ou de ladrão, ou de qualquer outro perigo. “Po-po! po-po!” A pancada tranquilizadora (to-shengj de seu bambu ia diminuindo agora enquanto se ouvia a voz semelhante à de taquara rachada, chamando:

"Já passa de meia-noite, vizinhos. Tudo está bem!"

Uma lamparina de azeite com pavio flutuante banhava o pequeno quarto com seu fraco brilho. A chama tremeluzia enquanto Huo-ping, deitada de costas, tinha certeza de que tudo estava bem. Fechou os olhos uma vez mais, porém não conseguia dormir. De novo, talvez pela centésima vez, ela sussurrou: "Que seja um menino!" Ela recordava-se com ardente ressentimento do mexerico da família nesse dia, das palavras mordazes e zombeteiras que fizeram tão dolorosa esta visita à casa de seus parentes. A sociedade chinesa atribuía muito valor aos filhos varões e para seus amáveis Nga Ung-siu ela já havia tido duas meninas. Sua sogra cantonense ficara furiosa. A infeliz esposa de seu filho mais velho só gerava meninas — seis — e a mulher de Ung-siu, afirmava ela, ia pelo mesmo caminho. "Vinga-me, ô Deus", clamava Huo-ping agora em amargura, "e afasta para longe esta censura!" Então, de algum modo voltou-lhe à mente a promessa desanimada que ela havia feito e com tanta rapidez esquecida quando, um ano atrás, estava grávida pela segunda vez: "Deus", havia ela orado então, em palavras semelhantes às de Ana, "se me deres um filho varão, ao Senhor o darei por todos os dias da sua vi­da". Eram palavras bem conhecidas. Desde a infância ela conhecia a história de Samuel. Mas, agora, de repente elas lhe suscitaram ao coração um impulso que ela não sentira antes. Ela não somente as diria, mas, era essa a sua inten­ção. Não hesitou. "Cumprirei minha palavra, Senhor!" Exclamou. A calma voltou-lhe afinal. Sorrindo, ela cochilou e voltou a dormir.

Longas semanas deviam passar e ela faria uma viagem por mar à sua casa em Swatow. Mas, as suas dores vieram afinal, e oh! o indizível alívio quando ela ouviu o marido gritar: "É um menino!" A tensão aliviou-se em lágrimas quando se viu esmagada pela alegria. Portanto, desta vez, quando os ovos de pata avermelhados foram enviados aos vizinhos e aos amigos, deviam anunciar o tão esperado filho e herdeiro.

Assim, no dia 4 de novembro de 1903, Henry Nga veio ao mundo para ser o deleite de seu tranquilo pai e de sua obstinada mãe. Os nomes chineses são significativos, dando-se à criança um novo nome ou assumindo-o ela num momento decisivo de sua carreira. De início, segundo a tradição da família, ele chamava-se Nga Shu-jeo no dialeto de Foochow, ou em mandarim, Ni Shu-tsu, "aquele que anuncia os méritos de seus antepassados". Anos mais tarde, porém, consciente de uma nova missão na vida, ele buscou um novo nome que expressasse seu sentido de dever para com seu povo como vidente e porta-voz de Deus. Por algum tempo ele chamou-se Ching-fu, "aquele que adverte ou admoesta"; mas este conceito parecia severo e ele não estava de todo satisfeito. Foi sua mãe quem então propôs To-sheng, um som de gongo ou toque de alarma,2 lembran­do a ele a promessa que ela havia feito na noite insone enquanto o vigia ia batendo pelas ruas seu gongo ou chocalho [to] de bambu para emitir seu som (sheng) que se ouve de longe. Assim ele se tornou Ni To-sheng, ou em inglês, Watchman (Vigia) Nee, como geralmente o conhe­cemos. Através da vida, ele disciplinou-se para ser como Samuel, alerta enquanto outros dormiam, sineiro sacerdo­tal de Deus que adverteria o seu povo do perigo ou o despertaria para o raiar de um novo dia.3

CAPÍTULO 2

HONRA OS TEUS ANTEPASSADOS

Foochow é a capital provincial de Fukien e uma das portas da China para o sul do oceano. Durante gerações, tinha sido o lar da família Nga (ou Nee), cujos membros iam, por ocasião de cada primavera, a uma encosta para cuidar dos túmulos de seus antepassados. Em 1839, mais ou menos ao tempo em que nasceu Nga U-cheng, avô de Watchman, romperam-se hostilidades entre a China e a Inglaterra por causa das irritantes restrições imperiais sobre o comércio estrangeiro. A chamada Guerra do Ópio, que durou três anos, em consequência das hostilidades, terminou em hu­milhação da China e abertura obrigatória de relações di­plomáticas com o Ocidente. O Tratado de Nanquim, pelo qual Hong Kong foi cedida por completo à Inglaterra em 1842, também abriu Foochow e mais quatro portos marí­timos ao comércio estrangeiro, com todos os seus escânda­los e abusos. Embora prosseguisse o comércio costeiro nativo — madeira, papel, frutas e têxteis — surgiu pa­ralelamente um novo e indesejável empreendimento de fábricas e residências de estrangeiros na ilhota de Chung-Chou, situada no meio do rio e nas remotas ladeiras da ilha de Nantai.

Cinquenta anos antes, o sábio imperador Chien Lung, conhecendo talvez algo da usurpação britânica na índia sob Clive e Warren Hastings, havia pacientemente expli­cado numa carta a George III da Inglaterra que a economia auto-suficiente de seu Império não tinha espaço para os produtos esquisitos do povo que vivia distante nas profun­dezas do mar. "Conforme seu enviado pode ver por si próprio, possuímos de tudo. Não dou valor a objetos es­tranhos e engenhosos e não tenho uso para os artigos de seu país." Nos círculos oficiais, ainda predominava essa opinião. Mas a Europa demandava cada vez mais a porce­lana, a seda e a laca ou verniz chineses; e uma vez que por ordem imperial a permuta lhes era negada, os comercian­tes ingleses deviam pagar em prata. Este grave problema só foi resolvido quando eles descobriram que os chineses podiam ser induzidos a comprar ópio indiano. O princípio de troca pôde, pois, entrar em funcionamento para van­tagem dos estrangeiros e, em 1851, a resistência do Filho do Céu tinha sido erodida de tal maneira que o ópio foi legalizado.

O fator que acima de tudo mais levou o comércio às alturas foi a procura do chá por parte da Europa. Em 1853, quando Nga U-cheng contava mais ou menos quatorze anos, os primeiros carregamentos de chá de Foochow, transpor­tados por via fluvial desde as regiões montanhosas de Wu Yi Shan, já estavam sendo expedidos do porto do Rio Min para os mercados da Europa e da América. Logo, as grandes embarcações chinesas com nomes importantes como Taeping e TermopyJae, ArieJ e FJying Spur, fariam deste porto o segundo no próspero comércio do chá, per­dendo apenas para Xangai.

A entrada do cristianismo protestante na China, como consequência do comércio exterior, foi outro resultado da Guerra do Ópio e do Tratado de Nanquim. Dos aconteci­mentos de 1842, um escritor ocidental contemporâneo podia dizer com espantosa complacência: "Os caminhos dos tra­tos de Deus com este povo começaram a abrir-se e Ele entrou em juízo com eles para que pudesse demonstrar-lhes Sua misericórdia."1 O lápis vermelho do imperador havia decretado que a fé cristã fosse tolerada em todo o Reino Médio, mas, o decreto fora extraído sob pressão militar. Não obstante, tal decreto escancarou as portas para os missionários ocidentais com sua preocupação so­cial e zelo evangelístico para entrar e balizar novas rei­vindicações de justiça nos corações chineses.

E o fizeram sem delongas. Em Foochow, os primeiros missionários a chegar em 1847 foram os congregacionais da American Board, seguidos no mesmo ano pelos metodistas e episcopais norte-americanos e, em 1850, pelos anglicanos da English Church Missionary Society. Os missionários não demoraram a protestar contra o iníquo tráfico de ópio; não obstante, visto que os estrangeiros de cabelo vermelho reivindicavam os privilégios de extraterritorialidade, nas mentes nativas era difícil distingui-los dos comerciantes e seu comércio.

A primeira escola a oferecer instrução de estilo oci­dental foi aberta pela American Board num subúrbio da cidade velha em 1853 e foi aqui que, quando menino, Nga U-cheng, avô de Watchman Nee, ouviu falar do amor de Deus em Jesus Cristo e foi ganho para Ele. Quatro anos mais tarde, em 1857, ano em que veio a existir a primeira igreja cristã em Foochow, ele era um dos quatro alunos batizados no rio Min. Fez tanto progresso que os missionários o prepararam para ser evangelista; e, logo, com outros jo­vens, estava pregando o evangelho do Senhor Jesus nesta cidade de meio milhão de almas. Finalmente foi ordenado pastor, o primeiro chinês a ser assim honrado nas três missões de Fukien do norte. Tinha o dom especial para expor as Escrituras e, por muito tempo depois de sua morte ocorrida em 1890, ainda era lembrado em virtude desse dom.

Sua grande prova aconteceu quando, como jovem ama­durecido, chegou o tempo de casar-se, porque eram muito poucas as mulheres de Fukien que criam em Cristo e, para ele, não se encontrava uma moça cristã. A gente de Foochow daqueles tempos era extremamente conservadora e por nenhum motivo transgrediria o costume de casar-se com alguém de outra província; não obstante, devia ir procurar noutra freguesia distante ou comprometer seu testemunho. Para ele significava muito que sua fé prevalecesse sobre a tradição. De Cantão, a mais de 700 quilómetros de distância por navegação costeira, aceitou uma jovem que provou ser a escolhida de Deus para ele e fez dele um verdadeiro parceiro para a vida, embora um tanto mordaz de língua.

Eles foram abençoados (aos olhos chineses) com nove meninos. Desses, Nga Ung-siu, pai de Watchman Nee, foi o quarto, nascido em 1877. Como filho de pastor, recebeu instrução escolar primária cristã e, depois, prosseguiu com o estudo dos clássicos confucionistas para submeter-se a exames competitivos. Foochow era um centro literário onde duas vezes em cada três anos reuniam-se alguns milhares de estudantes do distrito administrativo para exames do primeiro grau e novamente duas vezes em cinco anos vinham alunos de toda a província para prestar os exames do segundo grau. Com antiquíssima cerimónia, no tempo aprazado, Ung-siu e uma multidão de outros entraram na vasta área de exame no nordeste da cidade por uma porta onde se liam as palavras: "Para o Império: Orai por Homens Bons." Confinado ali durante três dias em sua própria cela individual, adornou seu rolo de papel pautado com colunas de caracteres bonitos, derramando seu conhe­cimento clássico num poema e dois ensaios sobre o tema proposto. As provas eram julgadas com estrita imparcia­lidade e seu sucesso no segundo grau conquistou-lhe, pouco antes do casamento, o posto de oficial "júnior" na Alfândega.

Sua jovem esposa, Lin Huo-ping, nascera em 1880, de pais camponeses, a última de uma família numerosa. Muito pobres e obscurecidos pela superstição, viviam no temor de demónios, de dragões e de fadas-raposas. Era um ano de fome em Fukien; e com tantas bocas famintas para alimentar, a menina tinha poucas hipóteses de sobrevivência. Mesmo em situações normais, apenas porque ela era uma sobrecarga, o pai podia abandoná-la na rua, ou afogá-la, ou sepultá-la viva. Na verdade uma criança ainda viva, se estivesse enferma ou definhando de fome, podia ser lançada, jun­tamente com os mortos, na alta abertura da espaçosa torre de bebé de Foochow, um receptáculo de granito em forma de urna, nos arrabaldes da cidade, destinada a poupar a despesa de enterro de crianças. O orfanato católico roma­no, fora da porta sul da cidade, oferecia um lar para apenas umas poucas meninas. A inscrição sobre sua entra­da dizia: "Se teu pai e tua mãe te desampararem, o Senhor te acolherá."

Mas, o pai de Huo-ping não a desamparou totalmente. Vendeu-a pelos três ou quatro dólares que necessitava desesperadamente, por meio de um intermediário, a uma família endinheirada da cidade que pensava em criá-la como escrava. Ela, porém, era uma menina viva e logo esta família foi procurada, de novo por via de um emissário, por um negociante chamado Lin, de uma firma estrangeira em Nantai. A concubina deste homem era estéril e desejava adotá-la como filha; assim, Huo-ping mudou de mãos outra vez. Na providência divina, o negociante também gostava de crianças e, aqui, ela encontrou um lar. Embora já houvesse dois meninos e uma menina na família, recebeu de coração aberto a garota vivaz recém-chegada e criou-a como se fora sua própria filha.

Ao chegar aos seis anos, segundo o costume quase universal, a mãe adotiva começou a amarrar-lhe os pés. Por este processo os dedos dos pés eram dobrados sob a sola, e o calcanhar e o tarso ainda não ossificados eram forçados juntos, apertando-se as faixas diariamente para deter o crescimento e maneá-la pela vida toda. Como menina camponesa, Huo-ping teria escapado a este trata­mento, porque as mulheres do campo de Foochow de longa data resistiam ao costume. Elas andavam a passos largos por toda parte, vigorosamente adornadas com adagas no cabelo e trabalhavam lado a lado com meninos e homens no cultivo de arroz. Embora todas as manhãs ela chorasse copiosamente por causa da dor cruel, nem uma vez sequer pensou em resistir. Agora, era filha de um negociante, destinada a melhores coisas. Pés delicados eram parte do preço que ela devia pagar.

Naquele ano, o Sr. Lin caiu doente em uma misteriosa enfermidade que desafiava a perícia dos médicos. Aconte­ceu que um superior dos negócios de Lin, chamado Chang, tornou-se cristão metodista e, por sugestão deste homem, pediram ao pastor metodista que viesse e orasse pelo Sr. Lin. Dificilmente poderiam recusar e a oração foi respon­dida; tão impressionados ficaram os Lin com a dramática recuperação que buscaram instrução cristã. Crendo afinal no Senhor Jesus, jogaram fora de seu lugar de honra no lar os pequenos e feios ídolos e o Sr. Lin e a esposa foram batizados na Igreja Metodista próxima do lugar onde ele trabalhava. Contudo, pelo fato de a igreja estar mais próxima e mais à mão para elas, a concubina e a filha frequentavam a Igreja da Inglaterra. Para grande alegria de Huo-ping, o dolorido enfaixamento de pés agora cessou e ela podia correr de novo livremente. À medida que aprendia os hinos e histórias da Bíblia, sentia o coração aquecer-se para as coisas divinas. Sua felicidade logo se com­provou contagiante. Indagada pelo professor da escola primária por que estava sempre cantando, contou-lhe a história de sua família, resultando disso que ele, também, com a esposa e filhos uniram-se à igreja.

Um negociante estrangeiro havia aberto uma escola primária na vizinhança, com professores cristãos e a esta escola Huo-ping foi enviada para estudar, continuando em 1891, aos onze anos de idade, na escola da missão metodista para meninas, administrada por norte-americanos. Ela ia sempre bem nos estudos e, através de fracasso espiritual e arrependimento, provou, também, algo da misericórdia e do perdão de Deus. Entretanto, sua religião ainda perma­necia em grande parte de méritos alcançados através de boas obras.

Quando chegava ao fim dos estudos ali voltou a Foochow uma jovem médica chinesa, Hu King-en, depois de treinamento em Filadélfia. Naquele tempo, ela era a segunda mulher em toda a China formada em Medicina. Sua chegada em 1895 para trabalhar num hospital da missão suscitou ambições em algumas moças locais; e no ano seguinte, aos dezesseis anos; Huo-ping pediu ao seu profes­sor que começasse negociações para ela, também, entrar numa faculdade de medicina nos Estados Unidos. Seu progresso na escola secundária foi tal que, para sua alegria, a resposta provisória foi favorável.-Portanto, convenceu o pai a enviá-la, na companhia de uma colega, para a Escola Chinesa Ocidental Para Moças, em Xangai, a fim de melhorar seu inglês. Foi sua primeira aventura fora de Foochow e a viagem por mar foi divertida. A cidade, quando a mocinha lá chegou, tinha veículos de rodas e a polícia sikh usava turbantes no Povoamento Internacional; e ainda naquela data, nos portões do parque ao longo do Bund continha avisos: "Proibida a entrada de cães e de chineses."

Entre chineses de uma estranha fala, logo sentiu saudade de casa; mas, a ambição reteve-a ali. Come­çou a revelar-se excelente nos estudos e a deixar-se cati­var, também, pelos padrões de vida mais elevados desta cidade semi-estrangeira. Logo, estava desviando as taxas enviadas para suas lições de música e usando de outros inventos para obter os dólares com os quais vestir-se mais de acordo com a moda. "Aprendi lá", escreve, "muito do orgulho da vida e alguns dos pecados da carne."

Um encontro especial revelar-se-ia significativo no pla­no de Deus. Uma certa Srt.a Dora You (Yu Tzi-tu), moça não muitos anos mais velha do que ela própria, visitou a escola, um dia, para falar aos alunos. Dora provinha de um ambiente culto e, como muitos outros, havia encontrado a Cristo enquanto frequentava uma escola de estilo ocidental. Bem-sucedida em seus estudos, havia partido para a Ingla­terra a fim de estudar medicina. Atravessado o Canal de Suez, seu navio ancorou no Mediterrâneo. Ali Deus a encontrou, chamando-a a abandonar sua carreira e voltar à China para pregar Cristo ao seu povo. Dirigiu-se ao capitão do navio aos cuidados de quem fora confiada e contou-lhe o que havia transpirado. Pensando que ela havia perdido o juízo, ele ficou irado; porém ela apegou-se com tal firmeza ao seu pedido que afinal ele concordou em trans­feri-la para um navio que voltava de Marselha. De volta a Xangai, a recepção que ela teve de sua família não foi menos fria, mas, seu testemunho silencioso foi tão convin­cente que eles tiveram de reconhecer que a mão de Deus estava sobre ela. A partir desse dia, entregou-se com cons­tância a dar testemunho de seu Senhor pela pregação e pelo ensino da Bíblia e com muito maior eficiência porque não recebia salário algum do exterior mas confiava só em Deus para suprir-lhe as necessidades.

Ouvindo a história de Dora de seus próprios lábios, Huo-ping ficou muito comovida. Huo-ping foi vê-la em seu próprio quarto para oferecer-lhe um anel de ouro de esti­mação, presente de sua própria mãe; e a óbvia relutância de Dora em aceitar tal presente de uma jovem convenceu Huo-ping ainda mais da autenticidade de Dora. "Então", diz, "vi que ela amava a Deus e não ao dinheiro".

Mas, para a própria Huo-ping, aos dezoito anos, não foi o chamado de Deus que veio, mas, o golpe de uma verda­deira catástrofe. Sua mãe ansiava por encontrá-la e sem­pre se opusera à sua ida para a América; e quando em Foochow a viúva cantonense do pastor Nga U-cheng enviou um homem à procura de uma parceira para seu filho, ela não deixou passar a oportunidade. Sem que Huo-ping soubesse, foi combinado o seu casamento com Ung-siu, e agora uma carta apoiada com toda a autoridade paterna trazia-lhe a notícia. Isso punha fim aos seus sonhos de fazer medicina, pois, nenhuma moça de Fukien havia até agora violado o costume ao ponto de quebrar um acordo paterno. Huo-ping significa Paz, mas, Tormenta descrevia-a melhor agora. Durante alguns dias, ela esteve em agonia de quase desespero. A deliciosa viagem marítima de volta ao lar, com o navio ziguezagueando entre as rochosas ilhas costei­ras, transcorreu sob uma nuvem escura de depressão. Em seu coração, ela nutria um crescente ódio pela mãe a quem ela devia a vida, porque agora o que restava dessa vida parecia estar em ruínas.

Após sua chegada ao lar, foi chamada e foi-lhe formalmente entregue a fotografia de Nga Ung-siu e o dote de noivado que fechava o contrato. Por ele, ela estava irrevo­gavelmente vinculada a este homem que ela nunca vira. À medida que se arrastava o verão de 1899 e avançavam os arranjos do casamento, seu pesar não diminuía. Somente moças indesejadas eram dadas como noiva, dizia para si própria. Outras podiam ser independentes e alcançar fama profissional. A vida, para ela, chegara ao fim. "Casamento: como eu odiava essa palavra!"

Outubro chegou e com ele o orvalho frio. No décimo-nono dia celebraram, em Nantai, a união do filho do finado pastor congregacional, Nga Ung-siu (que como oficial do governo na Alfândega Marítima com uma nova nomeação para Swatow devia, doravante, ser, em língua mandarim, Ni Weng-hsiu) e Lin Huo-ping, a filha adotiva do convertido negociante, rico e generoso. Foi um dia de alegria e cheio de esperanças. O jovem casal foi residir durante duas semanas no lar de Nga onde a Sra. Nga governava sobre sete filhos e cinco noras. O breve tempo passado ali no incómodo papel de esposa mais jovem foi, descobriu, mais do que suficiente para restaurar sua afeição por sua própria amorosa mãe. Decidiu que se tivesse filhos, as meninas nunca sofreriam o quanto sofreu nas mãos das mulheres daquela casa! Foi, pois, um alívio quando chegou a hora de partir com armas e bagagem, para Swatow e para o novo posto.

Em meio das despedidas de ambas as famílias, Ni Weng-hsiu levou a jovem esposa pelos dezoito quilómetros rio abaixo por sampana até ao porto oceânico na Ilha Pagoda para embarcar no barco costeiro. Estava apinhado de passageiros no convés com suas roupas de cama e trouxas e pequenas malas de pele de porco e com animais de toda espécie; mas, o congestionamento e os desconfortos da viagem por mar foram compensados pela rude beleza costeira à medida que as águas do rio lamacento davam abruptamente passagem para um claro mar verde. Uma viagem de quatrocentos quilómetros levou-os afinal a Swatow, o pequeno porto livre à embocadura rodeada de rochas do rio Han. Embora pequenina comparada com Foochow, possuía um rico "hinterland" e seu ativo comér­cio envolveria totalmente o Sr. Nee em seu trabalho de tributação. Aqui, no setor oficial, o jovem casal estabeleceu agora o lar.

Aquele ano de 1900 foi um ano de relativa tranquilida­de. Lá nas províncias do norte, o I Huo Chuan ou Punhos de Harmonia Justa, que os estrangeiros conheciam como "Boxers", estavam assassinando cristãos chineses e es­palhando loucura xenófoba. A astuta e inescrupulosa im­peratriz Dowager tinha ido mais longe; e buscando atrelar o perigoso movimento aos seus próprios interesses, havia emitido uma ordem para destruir todos os estrangeiros na China. Felizmente os vice-reis do sul escolheram, com grande custo pessoal, apoiar os "tratados desiguais" e ignorar seu decreto. Na cidade de Foochow, no momento crítico, as inundações providencialmente romperam a pon­te dó rio Min, separando Os assassinos de suas:pretendidas vitimas. Em Swatow, também, reinava um silêncio precá­rio. Neste silêncio nasceu Kuei-chen, saudado com espon­tâneo regozijo como indiscutível dom de Deus. Quando; porém, um ano depois, chegou Kueí-cheng, a alegria deles foi mais moderada. Tal era a força da tradição que pesou sobre os pais um senso de culpa. Por que teria Deus de confiar-lhes uma segunda menina? Cristãos simples como eram, sua confiança em Deus foi severamente provada. Felizmente, sua angústia trouxe-os de volta aos seus joelhos para colocar o problema diante Dele.

Então, de volta uma vez mais a Swatow, a terceira gravidez chegou ao fim e, afinal, ouviu-se o grito do pai prazenteiro: "É um menino!" No jovem Shu-tsu Deus havia dado a Huo-ping o desejo de seu coração. Embora fosse cristã fraca, ela cumpriu o pacto. A semelhança de Ana, entregou seu tesouro de volta a Ele. "Por este menino orava eu; e o Senhor me concedeu a petição que eu lhe fizera. Pelo que também o trago como devolvido ao Senhor, por todos os dias que viver." Deus havia encontrado para Si um vigia (Watchman).

 

CAPÍTULO 3

REVOLUÇÃO

 

Durante os anos que se seguiram, as crianças Nee aumentaram até nove ao todo, cinco meninos e quatro meninas. Depois de Kuei-chen, Kuei-cheng e Henry (Shu-tsu, que é Watchman) veio George (Huai-tsu) e um terceiro filho, Sheng-tsu, que sobreviveria somente até aos dias escolares. Após um intervalo, seguiram-se mais duas meni­nas, Tek-ting e Teh-ching e, finalmente, dois meninos, Paul (Hong-tsu) e John (Hsing-tsu).

Como oficial júnior na Alfândega Marítima, o salário de 35 taéis por mês que Ni Weng-hsiu recebia não era grande. Além do mais, quase metade deste salário ia para sua mãe viúva. Assim, a crescente família devia, no princípio, contentar-se com as coisas necessárias da vida — alimen­to, vestuário e uma casa onde morar — embora com verduras frescas e frutos do mar à mão para completar o arroz, eles cresceram aptos e saudáveis. Os brinquedos da infância eram simples e feitos na localidade, de cerâmica, bambu e papel; e havia pandorgas para voar por ocasião do Natal quando os ventos da estação chuvosa sopravam mais fortemente.

Mas, Lin Huo-ping era cheia de energia. Para ajudar no orçamento da casa, recorreu às finanças de seu pai para abrir em Swatbw um negócio de exportação de produtos de fibra e tecido estampado, vendidos por peças. Logo se verificou que o negócio era lucrativo com um fluxo cons­tante de mercados na Malaia, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. O esposo, também, foi considerado por seus superiores como um homem cuidadoso e correto; e, pelo trabalho consciencioso no serviço, ele alcançou constante promoção. Passaram-se alguns anos de prosperidade e a transferência para Suchow, cidade situada noventa quiló­metros ao oeste de Xangai, pôs fim abrupto ao negócio de tecidos e lançou as finanças da família em desordem. Após doze meses de permanência ali e por insistência de sua mãe, candidatou-se a um novo posto em Foochow em bases compassivas e, para sua alegria, conseguiu-o.

Enquanto viveram em Swatow, os próprios pais cuidavam da educação dos filhos, exercitando-os em correção e boas maneiras e ensinando-lhes as primeiras letras escritas com pincel. Contudo, uma vez de volta a Foochow, Ni Weng-hsiu empregou como professor particular, um hsiu ísai, ou graduado do primeiro grau. Deste homem, no devido curso, eles aprenderam caligrafia e os princípios literários e morais contidos nos Quatro Livros e nos Cinco Clássicos que haviam formado a base da cultura moral chinesa por dois milénios. Muito embora, em 1905, o velho sistema de exame civil tivesse sido abolido e o caminho para o progresso oficial, daí em diante, fosse por via de novas escolas modeladas segundo as do Ocidente, ainda assim, nenhuma criança podia escapar a esses estudos confucionistas e dizer-se educada. O jovem Watchman revelou-se rápido para aprender e, geralmente, ultrapassava as irmãs mais velhas para ganhar o prémio em dólar que o professor particular às vezes oferecia pelo bom desempenho. Os Nee possuíam pendor musical e o professor instruía-os, tam­bém, no antigo sistema chinês chamado As Melodias, enquanto a própria Huo-ping ensinava-lhes hinos cristãos com as lições da Bíblia. Mais tarde, quando o marido teve condições, comprou-lhes um piano e ele próprio copiava músicas para os filhos tocarem.

Tradicionalmente, um pai chinês governava a casa com energia, mas, Ni Weng-hsiu não tinha natureza para isto. Circunspecto, como seu próprio pai, não era dado a repreensões. Embora sempre acessível, mantinha-se na reta­guarda, ocupando-se, como um chinês, com seus deveres oficiais e com os amigos. No lar era Huo-píng quem comandava a vara. Para ela, a disciplina era a glória da família e ela governava os filhos vivazes pelo medo. A família tinha por princípio que o asseio doméstico era dever igualmente partilhado por todos. Seu prazer era ver a casa limpa e ordeira, com cada coisa no seu devido lugar. Se alguma coisa estivesse fora do lugar, ninguém podia esqui-var-se à responsabilidade; quem estivesse mais próximo era responsável por colocá-la onde devia estar. Watchman não era nenhum anjo e a sua tendência era deixar para trás um rasto de lixo e coisas quebradas pelo que era regular­mente castigado. Suas irmãs mais velhas recordarn-se de quantas vezes este castigo foi exagerado e então cons­piravam para protegê-lo, confessando-se autoras de algu­mas práticas dele.

Tiveram a felicidade de contar com outra família de Foochow, os Chang, que morava perto deles, na praia de Nantai, dando a vista para a ponte. Chang Chuen-kuan era um querido amigo cristão e antigo cliente de seu pai. As idades dos filhos de Chang eram quase as mesmas dos Nee e as duas famílias davam-se sempre muito bem. As duas filhas mais velhas de Chang eram amigas especiais das meninas Nee, enquanto a pequena Charity andava sempre atrás de Watchman. Nas suas traquinagens de infância, era ele quem tinha as ideias e tomava a dianteira e, assim, tornou-se o "irmão mais velha" de todas elas.

Da casa onde moravam era um pulinho até ao movi­mentado mercado de peixe de onde uma antiga ponte de pilastras de granito com desgastadas lajes de pedra levava até à apinhada ilhota de Chung Chou; e desta, à Ponte dos Dez Mil Séculos, muito mais comprida, completava a tra­vessia para a praia do norte e a abarrotada estrada até à porta da cidade da velha Foochow. A distância era grande demais para as crianças se aventurarem sozinhas, mas, na ponte ali pertinho, elas podiam passar longas e fascinantes horas. Ali podiam encontrar quiosques de negociantes e cinemas; um geomante, predizendo dias auspiciosos para funerais; ou um dentista extraindo dentes diante de es­pectadores que se divertiam ou talvez até alguma vítima da justiça manchu, tendo ao redor do pescoço a pesada canga, com sua ofensa inscrita sobre o entabuamento. Acima da ilha, estão as sampanas dos ribeirinhos, quase ligadas umas às outras, ribeirinhos que vivem sempre ocupados com a vida, enquanto na corrente embaixo dos arcos não muito altos, os pescadores gananciosos em seus barquinhos pu­nham a trabalhar suas pacientes aves {corvos) recom­pensando cada uma com uma dose de mistura tirada de uma garrafa pelo peixe que ela apanhava, mas, devido ao anel apertado que tinha em redor do pescoço, nunca podia engoli-la.

Do cais próximo do escritório onde o pai trabalhava na margem sul, as crianças observavam os bancos costeiros que subiam a corrente impetuosa do rio até ao porto de Nantai, nas proas brilhantes pintadas com grandes olhos que buscam direção, suas velas enfunadas de cor marrom contra o azul das colinas de Kushan. Eram de desenhos tão variados segundo seus portos de origem e as cargas que as crianças viam descarregar eram mais variadas ainda. Havia, também, ativo comércio de exportação de produtos agrícolas, de chá e de madeira das montanhas; mas as indústrias de exportação eram menores, limitando-se à seda, laca e artigos domésticos tais como guarda-chuvas feitos de papel oleado e "travesseiros" de madeira ver­melha. Nisto, Foochow estava defasada, pois noutros luga­res a China havia experimentado grandes mudanças indus­triais, com fábricas de tecidos brotando nas cidades cos­teiras, estradas de ferro penetrando o interior e engenhei­ros estrangeiros explorando com diligência seus recursos minerais.

Watchman estava, talvez, com seis anos quando a família voltou para Foochow e ele teria nove anos quando a revolução estourou no país para acabar com a dinastia. Devemos fazer uma pequena pausa para considerar o mundo em que Nee cresceu. No presente, o vice-rei de Chekiang e Fukien em sua residência oficial na velha cidade era apenas um súdito dos senhores manchus representados pelo general tártaro e seus indolentes partidários que ocuparam, com suas mulheres exageradamente pintadas, uma zona especial dentro das muralhas. Mas, o regime havia sobrevivido ao seu valor e, desde o episódio dos fanáticos chineses [boxer), estava totalmente desacredita­do, de sorte que entre os chineses educados, estes eram anos de crescente desassossego dirigido tanto contra o governo estrangeiro como contra a exploração gananciosa ocidental. Era cada vez maior o número de estudantes que tinham ido para o exterior a fim de beneficiar de novo aprendizado e voltavam com as mentes num turbilhão de ideias revolucionárias.

O herói deles era um homem que durante vinte anos havia trabalhado para a renovação da China. O Dr. Sun Yat-sen, de humilde origem cantonense e de fé cristã protestante, era o principal ideologista da revolução chine­sa. Embora a sua falta de pendor administrativo viesse a ser a causa de sua queda, os seus Três Princípios de nacio­nalismo, democracia e socialismo (san-min-chu-i) estavam destinados a conquistar e manter a imaginação popular. Desde muito tempo antes, ele havia sido obrigado a traba­lhar a partir do exílio, pois, o regime manchu estava ainda sendo mantido pelas potências estrangeiras para seus próprios fins. Então, em Novembro de 1908 morreu o imperador Kuang Hsu. Inteligente, mas, fraco, havia sido totalmente dominado pela velha e supersticiosa imperatriz que demonstrara ser o génio do mal na China — egocên­trica e reacionária até ao fim — e cuja morte ocorreu no dia seguinte. Poucos lamentaram a sua partida, mas, o herdeiro do trono foi o sobrinho de Kuang Hsu, que contava então três anos de idade, agora proclamado imperador sob o nome de Hsuan Tung.

Seguiram-se três anos de incerteza marcados por uma crescente convicção de que a dinastia havia perdido o mandato do Céu. Então, no dia 10 de outubro de 1911 ("o Duplo Décimo", isto é, 10/10) a explosão acidental da bomba de um conspirador foi o estopim de uma revolta em Wuchang, capital da província de Hupei e começou a sequência dos eventos que devia resultar na abdicação imperial, na ascensão e queda da República, da ditadura nacionalista e no final triunfo do Partido Comunista.

Em Dezembro, Sun Yat-sen voltou do exterior e na "capital sulista" de Nanking foi eleito primeiro Presidente Provisório da República da China. Ali declarou um governo baseado na vontade do povo. Para simbolizar que rejeitavam o governo Manchu, seus adeptos começaram a cortar as suas tranças, a forma de usar o cabelo imposta aos homens de Han como sinal de sua sujeição. Agora, os esco­lares de Foochow não mais ficariam em fila na varanda do albergue, cada um trançando o rabicho do outro. Não estava o general tártaro implorando misericórdia enquanto seus soldados corriam em terror pelas montanhas? Após dois milénios, o pivô da civilização chinesa, o próprio Trono do Dragão, havia sido arrancado de seu lugar vital na estrutura do governo para ser esperançosamente substituído por uma república democrática.

Mas, Sun e os sulistas preeminentes na revolução que estavam do seu lado, eram, na maior parte, exilados fora de contato com o modo de viver de seu país, alimentando vagos sonhos de uma China reconstruída segundo padrão ociden­tal, mas, inconsciente de que para uma democracia efetiva faltavam-lhe os fundamentos essenciais. Inevitavelmente, surgiu um nortista para desafiá-lo. Yuan Shih-kai, general do Império, com aspirações pessoais em relação ao trono, conseguiu rapidamente removê-lo da presidência. Antes de ser obrigado a voltar para o exílio em agosto de 1913, o Dr. Sun foi constrangido, portanto, a organizar a "Segunda Revolução" nas cidades portuárias do sul.

Numa escala local, a família Nee envolveu-se intimamen­te nesses assuntos. O movimento denominado "Ame o Seu País", do Dr. Sun, conquistou-lhes o coração; e conquanto Ni Weng-hsiu fosse um homem retraído, incapaz de proferir uma palavra em público, sua esposa era o contrário: eloquente, enérgica e pronta para afirmar sua recente liberação da subserviência feminina. Sem importar-se com a luta e com o derramamento de sangue ao redor, saiu de viagem para fazer preleções, havendo primeiro doado pu­blicamente para a causa seus próprios adornos de ouro e jóias, num gesto que muitos homens e mulheres foram levados a seguir. Por meio de uma vigorosa correspondên­cia, formou a Sociedade Patriótica das Mulheres, apoiada por preeminentes líderes locais, servindo ela própria como Secretária-Geral. Quando, em Julho de 1913, Sun Yat-sen chegou em pessoa a Foochow,Huo-ping desempenhou papel oficial na recepção presidencial. Aconteceu que a secretária particular do Dr. Sun, Srt.a Song, foi sua colega em Xangai e com ela compareceu a todas as festas e funções no decorrer da viagem de quatro dias.

Watchman estava agora com dez anos, capaz de ouvir a conversa política com ouvidos inquiridores de um menino. A Revolução havia, certamente, trazido nova esperança ao seu país. A princípio, também, um surto de sentimento pró-estrangeiro havia prometido a rápida expansão da atividade missionária cristã, por isso, quem poderia dizer que portas se abririam a ele, um dia, para ir estudar no exterior? Mas, um ano depois, irrompeu a guerra na Europa, o que criou desilusão com o Ocidente. Internamente, tam­bém, a Revolução parecia ter morrido no nascedouro, com a terra desmembrada por líderes guerreiros rivais e pelas usurpações japonesas sob o disfarce de ajuda na prepa­ração de guerra. No dia 18 de Janeiro de 1915, o Japão apresentou suas Vinte e Uma Exigências, que, começando com as reivindicações sobre a Província de Xantung, conti­nuariam até que toda a China se tornasse um estado fantoche. Nesse ano, o Presidente Yuan anunciou a sua própria encantada reversão de todas as esperanças deles, proclamando a sua ascensão ao Trono do Dragão, mas, ele estava destinado apenas a terminar seus dias em vergonha. Em 1916, aos treze anos, impressionável e cheio de esperanças, Watchman entrou para a Middle School vernacular de C. M. S. em Foochow para dar começo à sua educação segundo o estilo Ocidental. No devido tempo, ele continuaria os estudos na escola secundária inglesa, de grau médio, de S. Marcos. Esta escola fazia parte de um complexo anglicano em Nantai, que compreendia escolas de nível primário, médio, normal, superior e teologia, que tinha quase quatrocentos alunos no seu rol e eram conhe­cidas, no conjunto, como Trinity College, de Foochow. O pessoal missionário era principalmente de nacionalidade irlandesa, procedente do Trinity College, de Dublin.

Enquanto vencia seu currículo escolar, Watchman ia bem nos trabalhos de classe, superando reveses ocasionais em virtude de enfermidade, pelos quais os amigos culpavam a mãe de Huo-ping que constantemente o prejudicava. Na verdade, muitas vezes aparecia como o primeiro da classe. Conta-nos como, à semelhança de qualquer aluno, gostava, quando jovem, de carimbar "Ni Shu-tsu" em tinta vermelha opaca sobre livros e papéis e em tudo o que lhe viesse às mãos, usando uma versão de fabricação doméstica do selo ou estampa pessoal que um dia assumiria maior signifi­cado. Era, por assim dizer, geralmente franco, talvez um pouco presunçoso, com um agudo senso de justiça; pois, certa vez, quando um transeunte que visitava a escola queixou-se de que estava faltando um de seus objetos, Watchman provocou ressentimento geral ao indicar o meni­no que o havia furtado. Demonstrava pouco entusiasmo pelos esportes de equipa — basquete, vôlei, futebol — nos quais os outros meninos participavam, parecendo faltar-lhe força para esses jogos; mas, estava agora transformando-se rapidamente num rapaz de constituição esbelta, uns vinte centímetros mais alto do que a maioria dos seus colegas.

Logo, adquiriu facilidade no dialeto nortista pouco usa­do, conhecido dos ocidentais como "mandarim", o qual estava agora tomando a dianteira como a língua nacional ou pai-hua — a "língua simples" do povo. Toda a sua leitura anterior fora feita em livros no estilo clássico preferido pelos homens cultos e ainda exigida pelo fossili­zado sistema escolar do Estado, mas, agora, a China estava passando por um gigantesco renascimento cultural. Como reação à exigência popular, os escritores e poetas pioneiros estavam-se voltando para um meio de expressão vernacular que até agora havia sido deixada para os romancistas de imprensa de baixa categoria; e, como consequência, Watchman e seus colegas liam romances baratos sub-repticiamente sob os tampos de suas carteiras. Em 1922, o próprio Ministério da Educação sancionaria este desenvol­vimento, ordenando que todos os livros destinados às escolas fossem reescritos na língua nacional. Era uma mudança destinada a causar tremendo efeito sobre a disseminação de ideias através da literatura nos anos vindouros e não menos na divulgação mais livre do pensa­mento cristão nos círculos populares.

Mas, a religião estava, no momento, em situação desfa­vorável entre os estudantes. Na verdade, em 1918, um movimento anti-religioso fora promovido através da revista Nova Juventude, por Chen Tu-hsiu, Deão da Escola de Letras de Peking e líder muitíssimo influente do pensamento culto. Seu movimento deveria florescer na Grande Federação de Anti-Religiosos de 1922 e nos levantes emocionais contra o Cristianismo que se seguiram e o próprio Chen se tornaria, mais tarde, Secretário-Geral do Partido Comunis­ta Chinês. E um movimento de maior influência que deve chamar nossa atenção aqui, é o Movimento Quatro de Maio. Com a vitória da Primeira Guerra Mundial e com o Tratado de Versalhes de 1919, a China esperava a volta das concessões alemãs em Xantung, mas, em vez disso, a Grã-Bretanha e a França as deram como recompensa a seu outro aliado, o Japão. A indignação entre os jovens chineses ao descobrirem o que para eles era uma traição do seu governo incompetente, levou, no dia 4 de maio de 1919 a um maciço e espontâneo protesto da parte dos estudantes de Peking, dentre os quais se destacava um jovem de vinte e três anos, por nome Chou En-lai. Seguiram-se greves lide­radas por estudantes em Xangai e em Foochow e uma proliferação de novas ideias marxistas, levadas avante pela oferta do governo soviético, em 1920, de renunciar aos direitos extra-territoriais russos. O Movimento Quatro de Maio comprovar-se-ia altamente significativo em pavimen­tar o caminho para o comunismo chinês.

Watchman estava, agora, com dezesseis anos e bastante vulnerá­vel à explosão de sentimento estudantil suscitada por esses acontecimentos. Mas, também havia acabado de completar a escola média e o estímulo de sua breve mudança para S. Marcos pode ter feito algo para contra­balançar nele a desilusão geral que afetava os que viviam ao seu redor. Havia muitos motivos para isto. Luta esporá­dica arrastava-se na Província entre os líderes guerreiros e um dividido e enfraquecido Kuomintang, seus exércitos prontamente deixando as atividades de soldados e passan­do a viver como bandidos (caso a distinção importe) sempre que o pagamento era insuficiente. Alguns de seus colegas, voltando de regiões rurais, contavam histórias trágicas do caos civil e da crescente aflição dos camponeses.

Em seu lar, também, havia muita coisa para desencan­tar um menino em fase de crescimento. O envolvimento de sua mãe com o Partido começara a perder o fascínio que todos sentiam. Anteriormente, em reconhecimento de seu zelo político, o governador de Fukien, Suen Tao-ren, indicara-a para receber um prémio; e Peking havia respondido promovendo-a à Ordem da Segunda Classe por Patriotismo. Uma vez, porém, obtida esta honra, seu zelo esfriou. O amor à pátria cedeu, diz, ao desfrute do louvor e posição pelo que isto representava. O entretenimento social e cultu­ral tomou o lugar de sua antiga prática de ir à igreja, e "do contato com revolucionários incrédulos eu mesma quase me tornei uma incrédula". Diariamente, as damas da sociedade vinham à sua casa em Nantai para jogar cartas e mah-jong; e quando o pastor metodista a visita para solicitar um donativo, dizia em tom de zombaria: "Sente-se aqui e vejamos a quanto montam os meus ganhos. Se ganhei uma boa quantia, dar-lhe-ei um pouco!" E ele, pobre homem, aquiescia... Até mesmo a máscara exterior de uma cristã, confessa ela, se fora.

Além do mais, a disciplina de Huo-ping para com os filhos, geralmente justa e imparcial, parecia agora marca­da por impaciência e injustiça. Certo dia, em janeiro de 1920, no fim dos feriados de inverno, um valioso ornamento na casa foi encontrado partido. Resolvendo em sua mente onde jazia a falta, Huo-ping decidiu que Watchman, como o verdadeiro réu, deveria confessar. Quando declinou fazê-lo, ela o submeteu uma vez mais à indignidade de uma surra. Ela não deixou de sentir remorso, mais tarde, ao descobrir que afinal de contas ele era inocente, mas, deixou, não obstante, que ele curtisse sua tristeza. Ele voltou para o segundo período escolar no ginásio triste e amargurado.

Naquele mesmo mês, ela recebeu algumas notícias ines­peradas. Dora Yu, a mulher que anos antes a impressio­nara tanto em Xangai, viria a Foochow no Ano-Novo chinês para dirigir duas semanas de reuniões de avivamento na capela metodista de Tien An. A Srt.a Yu tornara-se conhe­cida como evangelista dotada e havia viajado muito entre as missões na China do norte e na Coreia, bem como estabe­lecendo seu próprio seminário bíblico em Xangai. Huo-ping não a tinha visto desde aquele dia, em 1898, quando fora movida a fazer-lhe um donativo. Agora, no começo das reuniões de Foochow, ela convidara a amiga para uma refeição vespertina com um grupo de suas amigas jogado­ras. Falou calorosamente da visitante às suas amigas e, no fim, anunciou: "Amanhã a Srt.B Yu pregará no Salão da Paz Celestial. Estejam todas lá, por favor." Alguém perguntou: "E você?" "Claro que irei", respondeu.

Chegou o dia 15 de Fevereiro e com ele a primeira reunião. Huo-ping foi pontual com as outras e sentou-se bem na frente enquanto a pregadora, com os pés envoltos em pequeninos sapatos brocados, levantou-se ereta para anunciar com o seu texto as palavras de Deus a Eva: "Nem tocareis nele, para que não morrais." Servindo-se dessas palavras, pregou naquele dia e no seguinte com grande poder sobre a morte espiritual como separação de Deus. Mas, o assunto aborreceu Huo-ping. Sabia disto desde os tempos de criança e resolveu que duas reuniões eram suficientes. Suas amigas estavam amofinadas com a perda de tempo de jogo.

Assim, no terceiro dia e de novo no quarto, sobre a mesa de tampo duro retiniam os blocos brancos de mah-jong, entre gritos de alegria, mas, não sem uma pontada de consciência no coração de Huo-ping. "Eu estava ali senta­da", lembra-se, "como alguém já morto. Sabia que o Espírito Santo de Deus estava lidando comigo." E após dois dias de inquietação já não aguentava mais. "Sou cristã", exclamou subitamente para as outras. "A Srta Yu veio de longe para pregar aqui. Não comparecer, é falta de educa­ção. Digam o que quiserem, mas, amanhã não virei jogar." No dia seguinte, Dora Yu viu-a chegar e veio de imediato cumprimentá-la. "Onde esteve você?" Perguntou com ino­cência. "Não me sentia bem", mentiu Huo-ping. A Srt.a Yu olhou-a bondosamente. "Que Deus mesmo brilhe sobre você e a cure", respondeu. As palavras atingiram o alvo. Como foi removida para longe a doença oriunda de mah-jong! Em inflexível realidade, viu todo o engano de sua atitude. Durante toda a palestra mexia-se em sua cadeira sentindo-se culpada enquanto as frases penetrantes da pregado­ra a encontravam. Com quarenta anos de idade e sendo uma figura pública, não podia conceber que alguém a expusesse daquela maneira. Esta, certamente, seria sua última reunião. Porém, quando a Srt.a Yu lhe perguntou "Você estará aqui amanhã?", como poderia desculpar-se? E quando o amanhã chegou, embora Deus ainda a acusas­se, sua serva agora relatava de novo os sofrimentos de Cristo na cruz pelos pecadores. "Cada palavra que proferia era exatamente para mim", diz. "Graças a Deus, cada dia uma força além da minha trazia-me de volta para receber mais." O clímax aconteceu quando confessou a Deus sua necessidade e deu-Lhe graças por Sua misericórdia. A graça divina conquistara-a.

Seu marido, que havia comparecido a algumas das reuniões, estava confuso. "Você não come nem dorme", protestou. "Você não faz outra coisa senão derramar lágrimas. Outros sentem-se felizes quando se convertem! Se este é o efeito sobre você, desista e fique longe!" "Mas, você não sabe como me sinto por dentro", exclamou. "Tenho mentido para você; tenho desviado tanto dinheiro de nossa família para jogos de azar"; e continuou relatando os modos pelos quais o havia defraudado. Então foi a vez de ele confessar-lhe suas faltas e logo estavam ambos em lágrimas. A "Paz", que era o significado do nome dela, veio-lhe ao coração afinal. Ela nunca mais tocou nas cartas de baralho nem as peças de mah-jong.

Os alunos da escola secundária tiveram permissão para frequentar as reuniões da Srt.a Yu e muitos o estavam fazendo. Com sua alegria recentemente encontrada, Huo-ping havia assumido o papel de intérprete e estava tradu­zindo a palestra da Srt." Yu feita em pai-hua para o dialeto de Foochow, por amor a esses estudantes. Watchman, até agora, havia estado ausente. Vulnerável como já se encon­trava ao comportamento de seus amigos, mais do que nunca ficara desiludido pelo fracasso do cristianismo como força vital em seu próprio lar. Embora sua mãe o tivesse convida­do para ir às reuniões, mostrava-se tão obstinado quanto ela e havia declinado o convite. Como poderia ela esperar que fosse de outro modo? Assim, agora vinha o remorso. Ela sabia que devia confessar a injustiça praticada contra o seu filho mais velho, mas, seu orgulho rebelava-se contra tal humilhação. Seria uma atitude sem precedente. Não havia o próprio Confúcio ensinado que os pais nunca erram?

Algo mais, porém, ela poderia endireitar e resolveu fazê-lo. Com três dólares na mão, saiu para comprar uma Bíblia e um hinário com os quais recomeçar a adoração na família. No dia seguinte, começou a tocar e a cantar o primeiro hino — mas o Espírito de Deus a impediu. Se pretendia adorar a Deus publicamente, era seu dever, sabia, confessar-Lhe suas faltas. "Mas", protestou, "como posso eu, uma mãe, confessar a meu filho?" Muito claramente, Deus disse: "Você deve fazer precisamente isso. Esse é o único caminho."

Enquanto o marido e os filhos assistiam a tudo aquilo, confusos, voltou-se repentinamente para Watchman e ati­rou os braços ao redor dele. "Por amor do Senhor Jesus", disse chorando, "confesso ter surrado você injustamente e com raiva." "A senhora o fez, honrada mãe", foi sua resposta lógica, "e eu a odiava por isso." "Por favor, perdoe-me!" Rogou, olhando-o nos olhos; mas, ele desviou-se sem responder ao apelo materno. As orações da família prosseguiram.

Naquela noite, Deus lançou mão de Watchman. Ficara profundamente comovido pela confissão de Huo-ping. Nun­ca tinha ouvido falar de um pai ou mãe chinês aceitar tal humilhação. Se a sua própria mãe podia ser assim trans­formada, então por certo devia haver algo poderoso na pregação desta visitante. O cristianismo deve ser mais do que mero credo. Iria verificar isso por si mesmo. Na manhã seguinte, levantou-se cedo. "Estou preparado agora", disse à mãe, "para vir e ouvir Yu Tzi-tu." Foi, e antes que as reuniões terminassem, a pregação dela o havia conduzido, também, ao arrependimento de seus pecados e havia encontrado em Jesus Cristo um Salvador e um Amigo vivo. Num ato de entrega da juventude, comprometeu-se a servir a Deus total e completamente e nunca deixou de cumprir a sua palavra. Deus, por sua vez, respondeu com um novo nascimento em seu espírito que lhe revolucionaria intei­ramente a vida. Tinha ouvido a oração da mãe à noite, naqueles anos passados e estava cumprindo a sua parte do acordo.

Podemos reconhecer a mão de Deus, também, na deter­minação do tempo desses acontecimentos. Como já vimos, ideologias poderosas estavam competindo pela lealdade de todos os chineses pensantes e havia no ar conversões radicais. Nesses mesmos meses, um homem dez anos mais velho do que Watchman estava devorando os escritos marxistas que só agora se tornavam disponíveis na língua chinesa e, através deles, chegando a convicções íntimas profundas. Nascido em 1893 numa família camponesa de Hunan, Mao Tse-tung, por algum tempo bibliotecário assis­tente da Universidade de Peking e ultimamente agitador político em Changsha, havia chegado a Xangai na prima­vera de 1920 para uma visita a Chen Tu-hsiu. Discutiram, juntos, as obras de Marx e foi através da confissão de fé política de Chen, que Mao se tornou agora um comunista convicto e por toda a vida.

De um fraco gotejar como este deveria irromper um dilúvio quase esmagador. Não obstante e de certo modo, o curso de Watchman Nee já estava decididamente assenta­do contra esta maré.

 

CAPÍTULO 4

DEDICAÇÃO

Quando, aos dezoito anos, Watchman Nee se converteu a Jesus Cristo, o compromisso que assumiu foi sincero. Con­tou, mais tarde, a um amigo íntimo que durante aqueles poucos dias das reuniões de Dora Yu pesou a questão cuidadosamente, sabendo que devia ser tudo ou nada. Não se disse dos discípulos de Jesus que "deixando tudo, o seguiram"? Viu que, para ser salvo, devia prestar obediência duradoura Aquele que faz exigências totais.

E por que não? Em uma das lojas da rua do verniz da velha cidade, um artífice anónimo já havia gasto seis anos trabalhando em três folhas de madeira dura de um biombo de quatro folhas, esculpindo relevo de flores na madeira natural, branca contra uma superfície envernizada preta. Para isso recebia oitenta centavos por dia, com "chuva, sol, feriados ou revolução", como disse o dono da loja, mais arroz e verduras e uma tábua para dormir. Havendo adquirido perícia para este trabalho, pôde fabricar apenas dois desses biombos antes que seus olhos e nervos falhas­sem e fosse jogado para viver com os mendigos. Se o dom criativo humano podia ser desperdiçado assim por um empregador avarento, havia alguma coisa boa demais para dar de volta a um Deus que não havia recusado dar-nos seu próprio Filho?

Logo Watchman concordou com as palavras de Paulo: "Mas oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos e os vossos membros a Deus como instrumentos de justiça." "Deus exigia de mim, portanto", disse depois, "que agora eu considerasse todas as minhas faculdades como perten­centes a Outrem. Não me atrevia a esbanjar uns poucos centavos de meu dinheiro, ou uma hora de meu tempo ou qualquer de meus poderes mentais ou físicos, porque não eram meus, mas Dele. Foi uma coisa importante quando fiz essa descoberta. Para mim, a verdadeira vida cristã come­çou naquele dia."

De imediato, havia um erro a ser corrigido. Em uma matéria escolar, o conhecimento bíblico laboriosamente ensinado, Watchman tinha até agora mantido uma apatia que lhe assegurava de maneira invariável notas baixas. Não havia sido afetado nem um pouquinho pelo espírito anti-religioso de seus maiores. Não obstante, como membro de uma família cristã, desagradava-lhe a humilhação que isto representava numa escola secundária da Missão. Resolvera, portanto, ajudar-se a si próprio nos exames es­crevendo fatos selecionados nas palmas de suas mãos e escondendo-as dentro de suas amplas mangas. Isto bastava para que obtivesse notas correspondentes a 70%, as quais, uma vez que quase se aproximavam do padrão em outras disciplinas, não levantavam suspeitas em seus professores. Nascido de novo, porém, imediatamente abandonou essa prática e, agora, por mais que tentasse, não conseguia alcançar as mesmas notas. Deus, percebeu, não podia ajudá-lo enquanto seu pecado permanecesse inconfessado. Mas tinha motivo para hesitar. O diretor da escola tinha avisado que qualquer aluno apanhado colando seria sumariamente expulso e a expulsão destruiria qualquer espe­rança de uma bolsa de estudos na Universidade e, finalmen­te, de estudar no exterior. [Os dois últimos anos na Trinity eram, naquele tempo, equivalentes ao primeiro ano da Universidade na Faculdade C. M. S. de São João, em Xangai.) Assim, foi uma verdadeira luta para decidir que Jesus Cristo era-lhe mais precioso do que uma carreira. Ele procurou o diretor e contou-lhe com franqueza o que havia feito e por que devia confessá-lo — e para seu alívio, não foi demitido.

Três meses após a conversão de Watchman, Dora Yu voltou a visitar Foochow, fazendo uma paragem em sua viagem em dirèção ao norte, procedente de Amoy, para falar às alunas da escola secundária da C. M. S. ; e, de novo, "muitas vidas foram transformadas". Nesta ocasião, o distrito estava militarmente perturbado, com luta esporá­dica no campo e na cidade, como um pêndulo oscilante entre as esferas de influência do Norte e do Sul. Por volta de 9 de Maio, os alunos do ginásio estavam envolvidos em demonstrações anti-japonesas, porque nesse Dia Nacional da Vergonha, a China recordava anualmente as Vinte e Uma Exigências do Japão, de 1915. O desassossego continuava e, pelo segundo ano consecutivo, o currículo escolar estava muito desorganizado.

Vendo isto e sentindo a necessidade de adaptar-se a uma direção na vida inteiramente nova, Watchman desa­pareceu sem dar sinal de si. Seus colegas não tinham ideia que rumo tomara e sua família guardou segredo até sua volta muitos meses depois. Na verdade, ele havia tomado um navio para Xangai, uma cidade onde o movimento Nova Tendência no campo da educação, fomentado pelas recen­tes visitas de John Dewey, Bettrand Russell, e Tagore, estava causando forte impressão nas mentes estudantis. Não mais, porém, sobre a de Watchman. Tinha ido para lá a fim de matricular-se na Escola Bíblica da Srt.a Yu, para um ano de treinamento nas Escrituras que até agora ele tinha achado tão difíceis. Colocou o coração no trabalho e não podia ter encontrado melhor professora. Com ela, aprendeu, acima de tudo, o segredo de confiar somente em Deus para suprir suas necessidades, conforme ela havia feito no decorrer da vida. Ensinou-lhe, também, a deixar que a Palavra de Deus lhe falasse ao coração e não meramente — embora isso fosse essencial — encher a mente com seu texto.

Quando ele voltou, a mãe disse-lhe com firmeza: "Agora, volte ao Trinity e termine o curso da faculdade." Ele o fez e visto que todo o currículo escolar estava atrasado, teve pouca dificuldade em acompanhar a classe. Mas, era um aluno transformado e, agora, não desperdiçava tempo. Aplicou-se aos estudos com dedicação e, também, fez uma lista dos colegas e começou a orar sistematicamente a favor de cada um deles e não perdia oportunidade de dar-lhes o seu testemunho. A princípio, pelo fato de levar consigo uma Bíblia aonde quer que fosse, riam-se dele e com zombaria o apelidaram de "Depósito de Bíblias". Mas, ele a lia a todo instante e sabia o que ela continha. Havia-se decidido, dizem-nos, a ler dezenove capítulos consecutivos do Novo Testamento todos os dias e estava pronto para conversar ardentemente com qualquer pessoa acerca da mensagem bíblica. Aos poucos, a sua vida mudada e sua evidente sinceridade conquistaram-lhes a atenção.

Wilson Wang, jovem estudante de Foochow da escola naval de Canton, transferira-se da preparação náutica para matricular-se na classe de Watchman no sexto ano da Trinity e foi um dos primeiros a juntar-se a ele em reuniões de oração informais estudantis na capela da faculdade. Demorou mais de um ano até que começassem a ser vistos os frutos; mas, aos poucos, como resultado de conver­sas no quarto de Watchman, diversos rapazes foram-se convencendo e, um por um, descobriram em Cristo a nova alegria que estiveram buscando. Entre eles destacavam-se Simon Meek, do distrito de Lieng Chieng, perto da costa e Faithful Luke e K. H. Weigh, ambos de Kutien, que ficava mais distante, rio acima.

Não contente em testemunhar na escola, um punhado desses ginasianos começou a espalhar o evangelho pela cidade, fazendo uso dos domingos e dos dias de festa e das frequentes greves estudantis como oportunidade para esse trabalho. Conseguiram um gongo de som alto e ressonante e com ele iam cantando pelas ruas, proclamando a todos os que paravam e ouviam as boas-novas de um Salvador vivo. Havia incessante barulho, de qualquer forma, na cidade — barulho de tambores e de queima de fogos e de porcos a grunhir, gritos dos vendedores e os coolies vociferantes e as bandas desafinadas que acompanhavam os funerais. Ninguém ligava a nada. Distribuíam folhetos e carrega­vam cartazes e escreviam pósteres com letras grandes declarando com clareza o caminho da salvação. Estes eram colados nos muros públicos para competir com os pomposos frangotes vermelhos que anunciavam cigarros, com os pósteres que retratavam os méritos das lamparinas de querosene e com os pálidos murais do tigre azul comedor de homens, terror dos moradores das colinas nas selvas de Fu-tsing ao sul. Sendo a língua chinesa escrita em sentido vertical, prestava-se para publicidade feita em tábuas e logo uma nova ideia os inspirou. Faziam camisetas de algodão branco que enfeitavam com letras vermelhas apli­cadas; essas camisetas traziam mensagem com estes dize­res: "Deus amou o mundo dos pecadores", "Jesus Cristo é um Salvador vivo". Os bairros de ambos os lados do rio ficaram sabendo de um despertamento espiritual entre os cristãos.

Em Ma Wei (Ancoradouro de Pagode) Watchman cedo descobriu um espírito afim que devia tornar-se um valioso amigo. Ao desembarcar, de sua volta de Xangai, havia, por sugestão da Srt.a Yu, visitado a Srt.a M. E. Barber, ex-missionária anglicana, agora trabalhando por conta pró­pria. Nascida em Peasenhall, em Suffolk, Margaret Barber fora para Foochow a fim de trabalhar com a C. M. S. em 1899 e, durante sete anos, ensinou na escola média para meninas (correspondente à escola de 1.° grau no Brasil). Os registros da Missão revelam-na obreira zelosa e devota e "uma personalidade muito brilhante". Quando, po­rém, se encontrava em férias na Inglaterra, em 1909, sentira o desafio de Deus como crente, sobre a questão do batismo e procurou D. M. Panton, pastor de Surrey Chapei, Norwich, para discutir este ponto. Compreensi­velmente, seu bispo escreveu aconselhando-a a não voltar para Fukien, mas, apesar disso voltou, tendo agora quaren­ta e dois anos de idade, confiando em Deus para suprir-lhe as necessidades e apoiada pelas orações da congregação de Surrey Chapei.

Filiou-se a ela um pastor chinês independente, Li Ai-ming e para evitar embaraços às suas ex-colegas em Nantai, encontrou uma residência de aluguel módico, de um missionário da American Board em White Teeth Rock (Pei Ya Tam), do outro lado do porto do pagode de Lo-hsing, em Ma Wei. Aqui, com a colaboração da Srt.a M. L. S. Ballord, vinte anos mais moça, estabeleceu a base de suas futuras operações.

Durante dez anos, as duas trabalharam pacientemente entre as mulheres locais e, onde possível, entre os homens. De quando em quando, faziam visitas a Foochow para distribuir folhetos nos mercados da cidade, sentindo, como o sentem as missionárias solteiras, as limitações impostas pelo sexo e pela anomalia de sua situação de estar na mera entrada de uma província vasta e espiritualmente escura. De volta em seu primeiro ano em Foochow, Margaret Barber havia testemunhado o batismo, como cristão, do segundo sacerdote do templo da colina de Boiling Spring, ali na vizinhança, templo outrora famoso por seu dente de Buda. Tais fatos não aconteciam agora. A conquista da China rural para Cristo parecia um sonho distante — a menos que, diziam para si mesmas, Deus escolhesse e chamasse para o trabalho moços e moças de toda a terra. Não obstante, por que não o faria Ele assim? Começaram a fazer disto motivo de suas orações constantes.

Um dia, nos começos de 1921, um navio de guerra da República ancorou fora de White Teeth Rock e um jovem oficial da marinha desembarcou. Ao passar pela Alfânde­ga, sentiu-se atraído pelo som do cântico do hino que vinha de um prédio da missão; entrou e apresentou-se. Era Want Tsai (Leland Wang), natural de Foochow e irmão mais velho de Wilson Wang, colega de classe de Watchman. Depois de diplomar-se pela Faculdade Naval de Chefoo, foi nomeado para um navio estacionado em Nanking e, en­quanto servia ali, foi maravilhosamente convertido a Jesus Cristo. Estava, agora, com vinte e três anos e já tinha resolvido desistir do posto que ocupava e tornar-se prega­dor do evangelho a tempo integral. Aqui estava um sinal de que Deus estava respondendo às orações das duas missionárias.

O lar dos Wang ficava no subúrbio no lado de Nantai do rio, sobre a colina um pouco acima da casa dos Nee; assim, Wang Tsai logo foi posto em contato com Watchman e seus amigos. Uma vez completado seu desligamento do serviço naval, voltou ali para estabelecer a sede de seu trabalho como evangelista, ministério para o qual provou possuir um verdadeiro dom. Sendo ligeiramente mais velho e mais experiente do que todos, foi calorosamente recebido e procurado pelo grupo de estudantes.

O lar de Nee, também, com a transformação que Deus havia operado na vida de Huo-ping, tornou-se agora um centro de ação e movimento de um novo tipo. Demorou um pouquinho para que as pessoas se ajustassem à ideia da oradora política mundana transformada em testemunha cristã; mas logo, com seu testemunho franco e uso sensível das Escrituras, a Sr.a Nee começou a ser requisitada como pregadora metodista nas reuniões para mulheres e moças por todo o norte de Fukien. Visto que, com a ajuda de uma amiga, adquiriu maior facilidade no pai-hua, esses com­promissos a levariam a lugares mais distantes ainda. Andava bem perto de Deus e em tudo buscava a Sua vontade, fazendo pequenas anotações e corrigindo imedia­tamente seus erros; e parece que Deus honrava de maneira notável o seu testemunho.

Conquanto de novo amiúde estivesse fora de casa, era sensível às necessidades de sua grande família. Numa época de muito calor, depois de falar durante duas sema­nas em reuniões para a Associação Cristã de Moças de Foochow, não aceitou o convite para continuar ali para um merecido e necessário descanso, sentindo que Deus a avi­sava de algo iminente em sua casa. De volta para lá naquela noite, enquanto perambulava com o marido à beira da água em frente da casa e observava o incessante vaivém dos barcos no rio, foi levada a observar: "Está tão seco hoje à noite. Temo que haja um incêndio." Nas primeiras horas, gritos despertaram-nos para o feroz estrépito de chamas do bambu e dos tetos da casa feitos de folhas de colmo ao longo da rua. Oraram, quando recebeu de Deus uma forte certeza de que a sua casa não seria tocada e de que nem precisava acordar os filhos menores. Na verdade, o vento mudou de direção e soprava do sul; e o fogo que destruiu uma dúzia de casas deteve-se exatamente três portas antes da sua casa.

Ni Weng-hsiu ficou muito comovido por esta prova do cuidado de Deus; mas, não ficou contente quando, apenas sete dias mais tarde, enquanto de novo caminhavam de um lado para outro na noite quente, sua esposa falou apreen­sivamente de outro incêndio. O alvoroço que desta vez acordou-os às quatro horas da madrugada foi até mais terrível do que o anterior. Um forte vento carregado de chuva ajudava as chamas, que saltavam para o norte procedentes da área do mercado junto à ponte. "Acha você", perguntou-lhe o marido, "que desta vez nossa casa será queimada?" Ela ergueu o coração ao Senhor e só pôde responder: "Talvez." Assim, primeiro despertaram os filhos mais velhos, depois começou a azáfama de empacotar e retirar as coisas essenciais. No meio de tudo isto, de súbito, veio-lhe à mente Génesis 18 (conforme ela achava) e a prematura conclusão de Abraão em sua oração a favor de Sodoma. Parecia que Deus a repreendia com a pergunta: "Por que você não ora?"

Assim, ela abandonou suas atividades e ajoelhou-se uma vez mais. "O Deus", orou, "nesta parte de Foochow minha família é a única que crê em ti. Dá-me alguma resposta a esses incrédulos, de sorte que não possam dizer: 'Onde está o teu Deus?'" Imediatamente veio a certeza: "Caiam mil ao teu lado e dez mil à tua direita, tu não serás atingido." "Aceito isto como vindo de Deus", disse ao marido. Mas, as chamas aproximavam-se depressa diante de um vento forte e ele a repreendeu severamente por sua inação. Então, aconteceu o inacreditável. O Corpo de Bombeiros da cidade, impedidos pelo fogo que fazia vítimas em torno da entrada da ponte, resolveu chegar por água à porta de sua casa e instalar aí a sede do comando de combate aos incêndios. Seus habilitados esforços combinados com uma mudança de vento e alguma chuva detiveram o grande incêndio duas portas antes. Os dois incêndios em uma semana haviam deixado uma ilha de cinco casas ribeirinhas miraculosamente intocadas em meio à devas­tação. Como poderia tal misericórdia deixar de fortalecer a fé que a família depositava em Deus?

Poucos dias mais tarde, ao voltar de um trabalho de pregação, Huo-ping ficou sabendo que as duas senhoras de White Teeth Rock haviam estado à sua procura. Até aqui ela não se havia encontrado com Margaret Barber e sua colega, embora soubesse que Watchman e seus colegas de escola, às vezes, iam a Pagoda para receber instrução bíbli­ca. Na verdade, havia evitado contato desde que ouvira que Dora Yu havia feito uma curta paragem ali quando se dirigia para Xangai e fora por elas batizada no rio. Isto, achava Huo-ping, havia prejudicado muito o bom resultado obtido por suas reuniões de reavivamento e não hesitara em pronunciar-se abertamente contra o fato.

Mas, agora, poucos dias antes da Páscoa, Watchman procurou a mãe. "Honrada mãe", disse, "a partir de amanhã tenho três dias de feriados escolares. Quero ir à casa de Ho Sheo-ngen (o nome que davam à Srt.a Barber) para estudo biblico. Gostaria a senhora de ir comigo?" "Espere até que eu tenha perguntado ao Senhor", respondeu-lhe e subiu as escadas. Ajoelhando-se, orou; de­pois sentou-se e penteou os cabelos. Enquanto se penteava, sentiu que Deus lhe dizia: "Vá e seja batizada!" Em crian­ça, fora batizada como cristã juntamente com a mãe. Agora, Deus pedia-lhe que fizesse publicamente aquilo que comba­tera com tanto vigor: fazer uma nova afirmação adulta de sua fé. Estava claro que era Ele e nenhum outro que a pressionava a realizar este ato de obediência. Lembrava-se das palavras de Deus a Jesus no Seu batismo: "Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo." Depois de pensar um pouco, desceu e chamou Watchman. "Resolvi ir com você à casa da Srt.a Ho", disse, "e além do mais, desejo ser batizada." "Eu também", respondeu ele de imediato, "vou indo para esse fim."

Para ele, não menos, tinha sido uma questão de obe­diência dar a Deus "a resposta de uma boa consciência". Tinha lido no Novo Testamento as palavras de Paulo vin­culando o batismo com a morte de Cristo e as de Pedro vinculando-o com o seu reinado; e vislumbrara o fato de dois mundos mutuamente hostis e a impossibilidade de servir aos seus dois senhores, o príncipe deste mundo e o Príncipe da vida. Sabia, agora, que devia expressar nesta forma pública sua completa ruptura com um e sua entrega ao outro. "Vou", sair do sistema governa­do por Satanás”, disse. “Já não pertenço a este padrão de coisas. Pelo contrário, pus meu coração naquilo em que está posto o coração de Deus. Tomo como meu alvo seu eterno propósito em Cristo, e entro nele e me liberto daque­le."

Ouvindo falar do plano de ambos, George, irmão de Watchman, expressou também o desejo de receber o batis­mo; e, assim, aconteceu que na manhã seguinte, os três foram de barco para Ma Wei. A Srt.a Barber cumprimentou pra­zerosamente Huo-ping: "Já comeu seu arroz? Quais são as boas-novas que nos traz?" Ela ficou maravilhada ao ouvir dos próprios lábios de Huo-ping como, sem intermediário humano, Deus lhe falara do batismo. Desde que soubera por intermédio de Dora Yu dos tratos de Deus com ela, não cessaram de orar a seu favor. Então, todos se ajoelharam e juntos deram graças a Deus.

Chegou o domingo de Páscoa e saíram para a margem do rio em White Teeth Rapid. A maré estava parada e calmo o movimento de navios no porto, mas, o dia estava sombrio e o céu nublado com uma chuvinha fina caindo para umede-cer-lhes o espírito. Nessa manhã Huo-ping sofrera um dos seus ataques ocasionais de taquicardia e a Srt.a Barber prontificou-se a adiar o acontecimento. Mas, ela foi insis­tente. "Prefiro morrer na vontade de Deus", disse, "a viver mais tempo na minha própria vontade." Ela conta como, enquanto o idoso evangelista, Li Ai-ming, com dificuldade vadeava ao seu lado no rio Min, pediu a Deus um sinal de sua aprovação. Li imergiu-a e tão logo seus olhos se abriram ao sair da água, o sol da Páscoa irrompeu através das nuvens. Quanto Watchman e George seguiram, ele banhou-os em sua luz dourada.

Por este ato, Watchman havia declarado qual era a sua posição. "Senhor, deixo meu mundo para trás. Tua Cruz separa-me dele para sempre e entrei num outro. Estou onde me colocaste em Cristo!" Voltaram para a sala da reunião com um cântico em seus corações.

 

CAPÍTULO 5

SEGUINDO O SENTIDO DA FIBRA

Wang Tsai e Watchman Nee viviam, agora, sempre jun­tos, partilhando um zelo comum pela propagação do evan­gelho entre os moços e as moças da cidade e das escolas e faculdades locais. A pregação de rua continuava e foi levada também às aldeias da vizinhança. O prolongado feriado do Ano-Novo chinês foi devotado, em parte, a este trabalho e em parte a uma Convenção destinada aos crentes que viviam espalhados, a fim de guiá-los em seu crescimento espiritual. Neste último trabalho, o diligente estudo de Watchman na Palavra começou a dar frutos, pois, de imediato exibiu dom e clareza de exposição que se comprovariam utilíssimos aos seus ouvintes.

No lar de Wang Tsai havia uma sala de tamanho suficiente para realizar reuniões e uns poucos se reuniam aí para oração e estudo bíblico. Um domingo de tarde, em 1922, um pequeno grupo composto por apenas três pessoas — Wang Tsai, sua esposa e Watchman Nee — juntos se lembravam do Senhor no partir do pão. Encontraram tal alegria e liberdade em assim adorar o Senhor, sem sacer­dote ou ministro, que começaram a fazer isto com frequên­cia; e depois de algumas semanas, outros se uniram a eles, incluindo Simon Meek, Wilson Wang, Faithful Lucas, a mãe de Watchman e um segundo ex-oficial da Marinha, João Wang, que nada tinha de parentesco com os outros Wang.

Perto do fim de 1922, outra mulher respeitável, que ocupa lugar principal nesta história, visitou Foochow para dirigir uma missão evangelística. Ruth Lee (Li Yuen-ju) era pequena, mas inflamada; era natural de Tientsin e estava empregada, agora, como professora numa faculdade em Nanking. Fora, outrora, convicta ateísta e ávida leitora da Nova Juventude, da autoria de Chen Tu-hsiu. Havia ido para Nanking pela primeira vez como diretora de uma escola normal do governo, ali chegando cheia de arrogân­cia: "Ainda que o mundo inteiro se converta ao cristianis­mo, eu jamais crerei!" Sabedora de que já havia algum interesse religioso entre as moças, ela buscou e publica­mente queimou os novos testamentos que diversas delas estavam lendo. Duas alunas, às quais se juntou uma professora de tempo parcial na escola, chamada Christiana Tsai, puseram-se a orar pela conversão da diretora. Então, durante um período escolar, houve uma epidemia de peste bubônica e a escola fechou; Ruth teve de acompanhar algumas alunas de volta pelo canal para suas aldeias. De certo modo, aquela viagem silenciosa através dos campos de trigo da primavera colocou-a face a face com Deus como Criador. Em seu coração, nasceu uma nova fome que a leitura secreta da Bíblia começava a satisfazer e, afinal, encontrou em Jesus Cristo o seu Salvador. Então, renunciou ao posto que tinha no governo e encontrou emprego na missão como obreira cristã de tempo integral.

Visto que Wang Tsai a conhecera no tempo de sua própria conversão em Nanking, convidou Ruth Lee para ficar mais algum tempo e dirigir mais quatro dias de reuniões abertas em seu lar. Foram reuniões notáveis, apinhadas de homens e mulheres, de pessoas idosas e de jovens; foi um momento de grande bênção. Pelo menos para um estudante, Faithful Lucas, elas foram um marco espiri­tual. Havia frequentado as reuniões de Dora Yu com o coração faminto de Deus e ardentemente havia participa­do nos dois anos de atividades que se seguiram; mas, a plena certeza da salvação só veio por intermédio da pre­gação inflamada de Ruth Lee. Outros, também, encontra­ram o Salvador nesta ocasião, e tornou-se necessário prolongar as reuniões mesmo depois que a pregadora especial se havia retirado. Assim, enquanto os jovens saíam e reuniam o povo nas ruas da redondeza, Wang Tsai, Watchman Nee e João Wang, por sua vez, pregavam a Cristo noite após noite a audiências cada vez maiores.

Aquele inverno foi excepcionalmente frio com os topos dos montes cobertos de neve, cena rara na costa de Fukien. As pessoas andavam de um lado para outro, estreitamente apegadas a seus cestinhos de brasas como se esses cestinhos contivessem a própria centelha de vida. Simon Meek havia percorrido quarenta e oito quilómetros rio abaixo até aos estreitos e através da cadeia costeira para passar um breve feriado em sua cidade natal de Lieng Chiang. Mal fazia uma semana que se encontrava ali quando chegou um cartão postal de Watchman. "Urgentíssimo", lia-se nele. "Deus está realizando uma grande obra entre nós e preci­samos da sua ajuda. Por favor, volte imediatamente." Embora o tempo estivesse apavorante e os exércitos rivais estivessem ativos ali por perto da cidade, Simon Meek fez, desde logo, a arriscada viagem de volta sobre as montanhas até Foochow.

O que encontrou deixou-o espantado. O Espírito de Deus estava operando e os meninos e meninas estudantes que se haviam arrependido dos seus pecados e crido no Senhor Jesus estavam completamente transformados. Movido pelo espírito de alegria e de humilde ação de graças entre eles, também se dedicou de novo a seguir ao Senhor em singeleza de coração. "Assim na terra como no céu", são as palavras que usa para descrever os dias nos quais haviam entrado.

As reuniões continuaram em vigor todas as noites e durante os fins-de-semana e quando recomeçou o período escolar, simplesmente prosseguiram após as aulas. Bandos de jovens com camisetas e bandeiras nas quais se lia "Jesus Vem" e "Crê no Senhor Jesus Cristo" saíam cantando e convocando o povo para os serviços religiosos que rapida­mente se enchiam de ouvintes atentos. Com o passar dos dias e com o crescente entusiasmo, desde logo ficou claro que necessitavam de mais espaço. Assim sendo, os jovens juntaram seus recursos e alugaram uma casa em Chien Shan e fizeram bancos rústicos de planchas para o povo sentar-se. Simon e Watchman fixaram residência ali, para estarem disponíveis quando não estivessem em aula para poderem atender às necessidades dos indagadores. Todas as noites, um bando de rapazes vinha da escola, lavava suas roupas, comia alguma coisa e saía para pregar.

Saídas mais ambiciosas para testemunhar nas aldeias eram realizadas em feriados, tais como o Festival do Barco do Dragão. Uma vez liberados dos estudos, o grupo de jovens, sessenta ou oitenta rapazes fortes, saía por uma ou por outra das estradas pavimentadas de granito através dos campos de arroz e cana-de-açúcar, onde os campone­ses vestidos do mesmo tecido de algodão azul pisavam sem cessar os elevadores de água fabri­cados de madeira ou vadeavam fundo na lama atrás dos arados puxados por búfalos. Qualquer pessoa alfabetizada que eles encontravam na estrada ou nas casas de repouso, recebia um folheto evangélico. Homens de todas as classes sociais, desde autoridades escolares até "coolies" e solda­dos, eram prontamente envolvidos em conversação, pois esses rapazes eram "educados" e em qualquer parte podiam dominar uma audiência. Chegados à aldeia escolhi­da, acampavam fora num edifício de igreja tomado por empréstimo, separando uma sala para "orar sem cessar" onde se revezavam para manter uma vigília de vinte e quatro horas. A noitinha quando os trabalhadores volta­vam dos campos para casa, formavam grupos ordeiros através das ruas, convidando os aldeões para ouvir a pregação do evangelho.

Simon Meek afirma que Watchman era o planejador e líder dessas aventuras. Enquanto caminhava a passos largos, sorridente e animado com os grupos a cantar, ou orientava os menos experientes em seus contatos pessoais e testemunho, estava sempre com os olhos voltados para a frente, sempre preocupado com o futuro dessas consagra­das vidas e estimulado pelo potencial que ofereciam a Deus. Por este motivo, insistia em que o tempo não aplicado à evangelização fosse empregado na instrução bíblica desti­nada a revelar-lhes o propósito de Deus e os altos padrões de discipulado que o próprio Jesus estabelecera.

Para a sua própria renovação espiritual, tomava a lancha para Pagoda, onde, muitas vezes, até duas dúzias de homens e mulheres compareciam às aulas de Bíblia dirigidas pelas damas inglesas na White Teeth Rock (Rocha dos Dentes Brancos). Margaret Barber dirigiu a maior parte do ensino que de agora em diante se comprovaria cada vez mais frutífero. Watchman viu-se valorizando mais e mais o conselho e a amizade dessa mulher. Convidado, certo dia, para unir-se a ela em oração, descobriu que ela própria estava enfrentando uma controvérsia com Deus.  Deus desejava algo dela e ela sabia-o e em seu coração ela também o desejava. Não obstante, era custoso e não con­seguia convencer-se de que devia ceder. Ele ouvia en­quanto ela pleiteava com Deus, entretanto a luta não era para que Deus reduzisse suas exigências. "Senhor, isto não me agrada mas, por favor, não ceda à minha vontade." Tudo o que ela pedia era tempo. "Simplesmente espere, Senhor e me renderei a ti!" Ela era tão evidentemente sincera que ele começou a ver nela uma pessoa a quem ele podia, com segurança, trazer seus problemas, que eram muitos.

Quanto às relações entre os irmãos, nem sempre es­tiveram isentas de tensão. Com todo o seu zelo e devoção a Deus, Watchman, conforme vimos, não tolerava a injustiça. "Em meus primeiros tempos", lembra-se, "propus-me evi­tar tudo o que era mau e fazer o que era bom e pareceu-me que realizava esplêndido progresso. Naquele tempo, tinha um colega de trabalho dois anos mais velho do que eu e vivíamos sempre em desacordo. Além do mais, nossas discordâncias eram sobre assuntos públicos, de modo que nossas disputas eram públicas também. Dizia comigo mes­mo: Se ele insiste em fazer as coisas do seu modo, devo protestar, pois isso não é certo. Mas, a despeito dos meus protestos, ele nunca entregava os pontos. Para mim, só havia uma linha de argumento: certo e errado. Ele também tinha lá a sua linha de argumento: sua condição de mais velho. Ele justificava suas ações raciocinando que era dois anos mais velho, fato que não podia refutar. Por isso, ele sempre levava vantagem. Ressentia-me de sua irrazoabilidade e no íntimo nunca cedia, mas, na prática, ele sempre contava pontos a seu favor."

Um dia, Watchman levou sua aflição para a Srt.a Barber e apelou a ela que arbitrasse a questão. Quem estava certo: ele ou o outro irmão? Ela, porém, conhecendo a Deus e detestando em si própria o orgulho e o ciúme, ignorou os certos e os errados da situação e tranquilamente respondeu: "Seria melhor você fazer conforme ele diz." Watchman ficou totalmente desgostoso: "Se estou certo", protestou, "por que não reconhecê-lo? Ou se estou errado, diga-o com franqueza! Por que dizer-me que faça o que ele diz?" "Porque", respondeu ela, "no Senhor, o mais moço deve submeter-se ao mais velho." Watchman ainda estava fazendo o curso secundário e conhecendo pouca coisa de autodisciplina, desabafou sua contrariedade. "No Se­nhor", retorquiu, "se o mais jovem está certo e o outro errado, deve o mais jovem ainda assim submeter-se?" Ela, porém, simplesmente sorriu e disse de novo: "Seria melhor você fazer conforme ele diz."

O problema era que isto lançava uma sombra sobre os dias ensolarados que viveram. Naquela primavera de 1923, o primeiro grupo dos que haviam nascido de novo recentemente haviam pedido o batismo. Para os irmãos, este era um tempo muitíssimo significativo. "Quem quer que tenha visto os homens converter-se a Cristo numa terra pagã", ressalta Watchman, "sabe que tremendos problemas o batismo suscita." Mas, a solene expectativa com a qual enfrentavam a ocasião era um tanto desfigurada para ele por causa desta tensão em pano de fundo. Três deles deviam, juntos, arcar com a responsabilidade: Watchman, o irmão dois anos mais velho e um sete anos mais velho do que ele. Que aconteceria, ponderava, quando discutissem os argumentos? Iria ele, que sempre controlou aqueles dois anos mais jovem submeter-se, por sua vez, àquele que era sete anos mais velho? Reuniram-se, e o irmão obstinado permaneceu irredutível, descartando toda sugestão apre­sentada pelo que era mais velho. Por fim, mandou embora os dois, com esta observação: "Vocês dois podem deixar as coisas comigo; encarrego-me delas muito bem." Que espé­cie de lógica é esta? Pensou Watchman desgostoso.

O próprio dia era, com efeito, um ponto luminoso na história deles, com dezoito jovens, principalmente estudan­tes, dando jubiloso testemunho público, no rio, de sua união com Cristo na morte e ressurreição. Para a multidão que assistia, o evangelho era claramente pregado. Depois disso, uma vez mais, procurou a Srt.a Barber para resolver um problema. "O que me aborrece", protestou, "é que aquele irmão não dá lugar para certo ou errado." Ela, porém, sempre rígida consigo própria, podia, portanto, ser muito franca com os outros. Pondo-se em pé, olhou-o bem nos olhos. "Você nunca considerou, até hoje, o que é a vida de Cristo? Você não conhece o significado da Cruz? Nestes últimos meses você só vem afirmando que está certo e seu irmão está errado. Mas pensa você", prosseguiu, "que é certo falar como vem falando? Pensa você que é certo vir e relatar-me essas questões? Seu juízo do que é certo ou errado pode ser perfeitamente correto, mas, que dizer do seu sentido interior? A vida dentro de você não protesta contra seu próprio comportamento melindrado?"

Enfrentando-o assim em seu próprio terreno, havia tocado no ponto nevrálgico da questão quando ele, confuso como estava, teve de admitir lá no íntimo que mesmo quando, segundo a lógica humana, estava certo, o Espírito Santo em seu interior dizia que sua atitude era errada.

Margaret Barber, muitas vezes, repreendeu a Watchman desta maneira, mas, para Faithful Lucas certo dia observou: "Ele se tornará um grande pregador." E ele, anos mais tarde, repetidamente confessava a influência que ela exer­cera em sua vida. "Sempre pensei nela", diz, "como uma cristã 'iluminada'. Bastava-me entrar em sua sala, de imediato eu era trazido a um senso da presença de Deus. Naqueles dias era muito jovem e vivia cheio de planos, de esquemas e mais esquemas para o Senhor sancionar, mil e uma coisas que julgava maravilhosas se pudesse concreti­zá-las. Com todas essas coisas em mente, procurava-a para experimentar e persuadi-la; dizer-lhe que isto ou aquilo era o que se devia fazer. Mas, antes que pudesse abrir a boca, ela dizia algumas palavras muito comuns — e a luz raiava. Isso simplesmente me deixava envergonhado. Toda a minha esquematização era tão natural, tão cheia do homem, ao passo que aqui estava alguém que vivia só para Deus. Tinha de clamar: 'Senhor, ensina-me a andar dessa manei­ra'."

Por esse tempo, ela deu-lhe para ler a biografia de Jeanne de la Motte Guyon (1648-1717), a mística francesa que Luís XIV aprisionou na Bastilha por causa de sua fé.

Nos escritos de Mme. Guyon, a nota de consentimento na vontade de Deus comoveu-o sobremaneira e exerceria grande influência sobre sua futura maneira de pensar. De certa forma, esse livro aprofundou-lhe a consciência das coisas invisíveis, mas, eternas. Outro fruto de seu acesso às estantes de livros da Srt.a Barber, e aos escritos de G. H. Pember, Robert Govett e D. M. Panton foi um avivado senso escatológico. A próxima volta do Senhor Jesus tornou-se, para ele, uma perspectiva real, que devia aguardar com ansiedade e preparar-se para ela com um sentimento de urgência. Faithful Lucas recorda-se de como neste tempo ele expunha os livros de Daniel e do Apocalipse com entusiasmo e grande efeito, incendiando seus ouvintes com uma disposição de pagar qualquer preço que preparasse o caminho para a vinda do Filho do homem.

Mas, nem tudo lhe corria bem. Mais ou menos nessa ocasião, conta-nos, Deus mostrou-lhe que devia ir, durante as férias escolares, pregar o evangelho numa ilha conhecida por viver infestada de piratas. Foi, diz, uma verdadeira luta para que se dispusesse a ir; mas, levou a sério o chamado. Que é que Deus não podia fazer se obedecesse? Após muita oração, fez uma visita à ilha que ficava longe, no Estuário do Min. Para sua alegria, encon­trou as pessoas dispostas a recebê-lo; com alguma difi­culdade, alugou uma casa, fez os consertos necessários e tudo estava pronto. O projeto havia atraído a imaginação dos irmãos e cem deles estavam orando a favor de Watch­man e haviam contribuído para as despesas. Em todo este tempo, seus pais não levantaram nenhuma objeção. Cinco dias antes de sua partida e quando tudo já estava prepa­rado e empacotado, entraram e proibiram-no de ir! A casa estava preparada, o dinheiro gasto, a vontade de Deus ardia-lhe no coração; que devia fazer? Seus pais disseram não e Deus havia dito: "Honra a teu pai e a tua mãe". Em profunda angústia buscou a luz de Deus. "Sim", disse-lhe Deus, "minha vontade é que você vá. Por outro lado, não tenho alegria alguma quando você força essa vontade para que ela se cumpra. O que desejo é que você se sujeite aos seus pais; assim, você simplesmente terá de esperar e permitir que minha vontade opere de outro modo." O problema, agora, era que Watchman não se sentia com liberdade de explicar aos outros o motivo da sua mudança de planos, a saber, eram seus pais que o detinham. "Por conseguinte, todos me compreenderam mal", diz, "e a pessoa cuja opinião tinha em alta estima, disse: 'Será difícil confiar em você no futuro.'"

Ponderou longa e amargamente sobre este problema, até que um dia deu com as palavras de Jesus no Evangelho de Mateus acerca do imposto do templo: "Logo, estão isentos os filhos. Mas, para que não os escandalizemos... Toma-o e entrega-lhes por mim e por ti." De repente sentiu o peso do "logo" — e compreendeu. Até mesmo Jesus podia acomodar-se àqueles que se escandalizariam por Sua liberdade, por Sua isenção de cumprir preceitos da lei. Anos mais tarde, Watchman pôde interpretar a experiência objetivamente à luz da crucificação. A vontade de Deus pode ser clara e inconfundível, mas, para nós, o caminho divino para chegar a ela pode, às vezes, ser indireto. "Nossa auto-estima é alimentada e acalentada porque dizemos: Eu estou fazendo a vontade de Deus!" O que nos leva a pensar que nada sobre a terra deve impedir a passagem. Então, um dia Deus permite que aceitemos algo em nosso caminho a fim de contrariar essa atitude. A semelhança da cruz de Cristo, ela cruza — não nossa vontade egoísta mas, de todas as coisas, nosso zelo e amor pelo Senhor! Isso é-nos dificílimo de aceitar." Com efeito, na ocasião não podia aceitá-la. Tudo o que podia sentir era ressentimento pela atitude dos pais e sobre a mãe jogava a maior parte da culpa. Levaria algum tempo para vencer este sentimento.

Perguntou à Srt.a Barber se poderia emprestar-lhe algo para ler a respeito do assunto da cruz na experiência cristã. Ela confirmou que possuía dois livros, mas, não poderia dar-lhos no momento; preferia esperar até que estivesse amadurecido para lê-los. "Eu não podia entender a razão disto", diz, "e desejava muito ler esses livros; de modo que os consegui por astúcia. Indaguei dela os títulos e o nome do autor sem que ela desconfiasse e escrevi à Sr." Penn-Lewis que mos enviou como presente e escreveu-me também uma excelente carta! Um era The Word of the Cross (A Palavra da Cruz) e o outro era The Cross of Calvary and Its Message (A Cruz do Calvário e Sua Mensagem). Bem, li-os com o máximo cuidado e embora rece­besse ajuda de um tipo, para meu desapontamento não solucionaram meu maior problema. Assim, entendo, não é do feitio de Deus dar-nos respostas rápidas."

Durante o último mês do verão de 1923 a escola ficou fechada em virtude de uma greve e Faithful Lucas, com outros quatro colegas, aproveitaram a oportunidade para testificar por meio do batismo sua ruptura com o mundo e a união com seu Senhor. A experiência de Lucas era típica. Um tio influente, no furor da ira, fê-lo sair às pressas de Kutien, porque sendo criado como membro da Igreja Angli­cana, seu sobrinho podia, por sua ação, ter prejudicado suas perspectivas de uma concessão para entrar na Uni­versidade de São João. O tio insistiu para que se arrepen­desse do passo dado; mas, Lucas respondeu: "Meu arrependimento é para com Deus e por meus pecados. Estou em paz." Até o seu diretor pensou que tivesse perdido o juízo quando deu a conhecer sua intenção. O Trinity College era uma porta de entrada para emprego no Estado ou na Missão e os rapazes partiam dali para posições amiúde de grande influência. "Você quer dizer, então, que não vai prosseguir nos estudos? Perguntou. "Não", foi a resposta impetuosa, "vou pregar o evangelho." O missionário ficou sinceramente perturbado. Nee, temia ele, estava-se tor­nando uma influência perniciosa na comunidade estudantil. "Vá e ore", disse, "e volte a procurar-me passadas três noites." Mas, ao voltar, a mente de Lucas não havia mudado. "Decidi servir somente ao Senhor Jesus", disse; e nunca na vida retratou-se de sua decisão.

Os dois rapazes que completaram o ano com Faithful Lucas entraram para o Departamento da Alfândega, mas, ele próprio foi para Pagoda. As senhoras inglesas estavam compreensivelmente cheias de louvor pelo dilúvio de res­postas em meses recentes às suas prolongadas orações; e a Srt.a Barber convidou-o agora para atuar como anfitrião dos jovens que vinham em busca de informação, enquanto sua colega cuidava das mulheres. Ele devia ficar ali seis anos.

Agora, eram Watchman e Wilson que estavam em seu último ano em Trinity numa classe um tanto maior. Na faculdade, durante o inverno, o fervor evangélico não cessava de arder e havia três reuniões diárias de oração entre os rapazes, uma bem cedinho e duas à noite. Na cidade, também, o testemunho do evangelho florescia en­quanto Wang Tsai e João Wang pregavam noite após noite no pequeno salão alugado. O culto dominical ali com o partir do pão era agora um ato regular. Entrementes, Watchman dava o que podia do seu tempo ao crescimento espiritual dos convertidos e dos jovens obreiros e até publicou para eles algumas edições de um boletim mi-meografado, Revival (Reavivamento), que incorporavam alguns de seus estudos bíblicos. A conferência de Ano Novo realizou-se novamente em Fevereiro e com as férias da primavera os grupos de evangelização saíram uma vez mais para as aldeias. O trimestre do verão foi perturbado por severas inundações que impunham pesada tensão sobre os arcos baixos da antiga ponte e trouxeram a cólera e a peste aos lares ribeirinhos, mas, os rapazes tiveram condições de concluir o ano na escola. Nos exames finais, Wilson Wang obteve o primeiro lugar com Watchman Nee bem próximo em segundo; na realidade, era praticamente um empate.

Watchman estava agora com vinte e um anos de idade. Para a formatura, ele usou uma nova toga de dez dólares adquirida por sua avó paterna, a dama cantonense de língua ferina, agora toda feliz e reconciliada com a nora. Mas, para ele, de longe a coisa mais gratificante de todas era o fato pelo qual os estudantes agora se reuniam ao final do período escolar para dar graças juntos, porque nos doze meses passados, Deus havia conquistado para si muitos novos convertidos nas faculdades de Foochow, na cidade e nas regiões circunvizinhas.

6

A PROVA DA FÉ

De tempos em tempos, durante esses anos, a família Chang voltava de Tientsin para Foochow onde Chang Chuen-kuan estava agora empregado como pastor da Alian­ça Cristã e Missionária. Eles e os Nee permaneceram amigos firmes e o relaxamento geral dos estritos costumes sociais significava que as crianças crescidas podiam ainda encontrar-se livremente no lar. Não é de surpreender que esses encontros tenham despertado em Watchman um interesse em sua ex-colega, Charity, que era ao mesmo tempo inteligente e bonita ao extremo.

Mas, então, Watchman havia encontrado o Salvador e tinha passado, como vimos, por uma total revolução de perspectiva. Além do mais, com sua formatura havia feito, à semelhança de Faithful Lucas antes dele, outra escolha radical. Não prosseguiria os estudos no St. John's College, conforme esperavam seus pais que o fizesse, nem buscaria aumentar sua educação formal, mas, de agora em diante, dirigiria a vida à tarefa de pregar a Jesus Cristo. A decisão era de longo alcance e parece ter sido tomada tão-somente por convicção pessoal.

Só agora reconheceu o quanto Charity Chang havia ocupado seus pensamentos. Não tinha havido, é claro, nenhum indício de casamento, mas, em alguma fase a ideia certamente havia encontrado guarida em sua mente. O próximo encontro deles, porém, deixou-o preocupado. O que já temia era por demais evidente como resultado da breve conversa que mantiveram. Seus gostos mundanos e sua paixão por andar vestida segundo a moda pareciam-lhe a marca de algo mais profundo. De maneira alguma participaria do amor que ele dedicava ao Senhor, com sua nova escala de prioridades, pois tinha seus próprios obje-tivos, ambições por sucesso aos olhos do mundo que ele já não podia aceitar. Estava claro que se encaminhavam para direções diferentes.

Por algum tempo, ele deixou de lado o problema, até que um dia estava lendo o Salmo 73 e deu com estas palavras do versículo 25: "Não há outro em quem eu me compraza na terra", e o Espírito de Deus prendeu-o. "Você tem um desejo consumidor na terra. Você deveria abrir mão de seu afeto pela Srt.a Chang. Quais as possíveis qualificações que ela tem para ser esposa de pastor?" Sua resposta foi uma tentativa de barganhar. "Senhor, farei tudo por ti. Se quiseres que leve as boas-novas às tribos que ainda não foram alcançadas, estou pronto para ir; mas, esta é a única coisa que não posso fazer." Como poderia ele, que acabara de completar vinte e um anos, tirar de sua mente aquela pessoa que tão prazeirosamente a ocupava?

Atirou-se, portanto, à obra do evangelho. Havia muitas portas abertas e após participar de maneira aceitável da Conferência de Ano Novo em Foochow, entregou-se ao trabalho de aldeia e especialmente à instrução de novos crentes. Não demorou para que aqui aprendesse novas lições. "Durante um ano após minha conversão", conta-nos, "tinha um ardente desejo de pregar. Era-me impossível ficar em silêncio. Era como se houvesse algo movendo-se dentro de mim que me empurrava para a frente e tinha de continuar andando. A pregação tornara-se minha própria vida." Recebera uma boa educação e era bem versado nas Escrituras, de modo que era muito natural que se conside­rasse perfeitamente capaz de instruir o povo da aldeia, onde especialmente as mulheres eram quase todas analfa­betas. Mas, depois de algumas visitas a um grupo com o intuito de ajudá-los a confirmar a fé, sua auto-estima foi severamente esvaziada. Conforme descobriu, essas mulhe­res, a despeito de seu analfabetismo, haviam chegado a um conhecimento íntimo do Senhor. Nas suas palavras, "co­nhecia o Livro que liam hesitantemente; elas conheciam Aquele de quem o Livro falava". Ele estava começando a aprender a humildade. Não havia arrefecimento do seu zelo, mas, estava tendo seu primeiro encontro com um princípio divino de produzir frutos — que "sem mim nada podeis fazer".

Nesta ocasião, também, com o término de sua bolsa de estudos e sem nenhuma perspectiva de emprego remune­rado, começou a enfrentar o que significava confiar em Deus para suprir as necessidades. Dentre os livros que havia retirado das estantes das damas inglesas, foi grande­mente influenciado pelos relatos da fé de George Múller, de Bristol, e de Hudson Taylor, da Missão da China Conti­nental. Esses homens haviam demonstrado sua confiança no Invisível ao porem à prova a suficiência de Deus para as necessidades visíveis e tangíveis de sua obra. Mais perto ainda, a própria Margaret Barber era um exemplo vivo de fé. Ela havia partido da Grã-Bretanha sem nenhum apoio garantido além da certeza de um fiel cristão hebreu: "Se Deus envia você, Ele deve ser responsável." Muitas vezes, Watchman sabia, ela ficara reduzida ao seu último dólar, mas, Deus nunca falhou com ela. Em 1923, ela havia falado aos irmãos acerca de sua oração pedindo uma hospedaria de dez cómodos para expansão de seu trabalho em Customs Point, sem a mínima ideia de como conseguiria isto. Watch­man ficou maravilhado quando, um pouco mais tarde, uma escola industrial da vizinhança parou de funcionar e Deus fez com que suas vinte salas se tornassem disponíveis a ela mediante o pagamento de um aluguel praticamente simbólico.

Tal fé era contagiosa. Ele estava lá num fim-de-semana quando um seu amigo com dois dólares no bolso tinha necessidade urgente de conseguir $150 segunda-feira de manhã e o barco postal não funcionava nos sábados e nos domingos. Após entregar o assunto nas mãos de Deus, este irmão saiu a pregar e encontrou-se com um homem a quem ele devia um dólar, e o homem lembrou-o da dívida e esta foi paga. A moeda que lhe restava no bolso assumia agora um novo valor e quando ele se encontrou com um mendigo, pensou em trocá-la em miúdos antes de dar-lhe uma es­mola; mas, Deus obstou-lhe o plano e ele deu ao mendigo a moeda. Quando aquele dólar saiu, Deus entrou. Ele voltou para casa e dormiu em perfeita paz; na manhã de segunda-feira recebeu por telegrama um donativo imprevisto de 150 dólares!

Para Watchman Nee, este princípio divino de "dai e dar-se-vos-á", devia tornar-se uma nova norma de vida. Se nos preocupássemos exclusivamente com as necessidades alheias, então Deus, acreditava, faria Suas todas as nossas preocupações. Mas ele ia além. Jamais devemos, susten­tava, divulgar aos outros nossas próprias necessidades financeiras, mesmo quando tal segredo pudesse induzir nossos amigos a interpretar erroneamente nossa pobreza como riqueza. Além do mais, exceto a breve hospitalidade, nada devemos "receber dos gentios" para a obra de Deus e assim evitar colocá-Lo sob obrigação aos pecadores.

Logo mais devia pôr esses princípios à prova. Um seu colega de classe, K. Ff. Weigh, anteriormente havia deixado o Trinity a fim de ir para a Universidade de Nanking e exatamente agora estava em casa em Kienning, onde seu pai era médico do Hospital da Missão. Kienning (ou Chien-O) está situada cerca de 240 km rio acima de Foochow, bem nas montanhas, na confluência de diversos rios; é centro da indústria de papel e empório do comércio interior. Watch­man recebeu da Missão ali um convite para dirigir uma série de reuniões evangelísticas. Estava seguro de que suas despesas seriam cobertas; depois de orar, telegrafou res­pondendo que partiria na sexta-feira.

O problema era chegar lá. Tinha apenas 30 dólares em mãos e a passagem por barco motorizado custaria, no nínimo, 80 dólares. O pior da história é que soube que aqui em Foochow havia outro irmão em Cristo que se encontra­va, pelo menos, na mesma situação financeira que ele. Quando, na quinta-feira, Deus lhe trouxe este fato à lem­brança, sentiu que devia agir e com muita apreensão, portanto, enviou-lhe um donativo de 20 dólares pelas mãos de Wang Tsai.

Na manhã seguinte ninguém deu a Watchman coisa alguma antes de partir e enquanto efetuava a travessia por barco até ao porto com meros 10 dólares no bolso, orou em desespero: "Senhor, não te peço dinheiro; somente que me leves a Chien-O!" Chegado ao cais, foi abordado pelo dono de uma pequena lancha a vapor, que lhe perguntou: "Para onde vai, vai para Yen-ping ou para Chien-O?" "Para Chien-O", respondeu. "Então, venha comigo. Eu o levarei." "Por quanto?" "Apenas sete dólares." Espanta­do, perguntava qual o motivo enquanto transportava a bagagem para bordo. O barco, ficou sabendo, estava fretado para o condado, mas, o proprietário estava livre para ganhar alguma coisa extra deixando vago o assento para um passageiro se tal assento não fosse exigido pelos afretadores. Dessa maneira, Watchman fez a longa viagem sem ser molestado por salteadores e livre das infindas demoras provenientes dos Jiirin cobradores de impostos em Shui-kow e Yen-ping e outros pontos na rota.

Quanto ao cenário, a viagem foi bela; a primeira parte através de uma região semimontanhosa, fértil, onde aqui e acolá os declives eram revestidos de bosques de longiens, lichias, toronjas e das laranjas verdes e douradas de que Watchman tanto gostara desde a infância. Expres­sava uma opinião generalizada quando costumava dizer com orgulho: "Acho que não há no mundo laranjas iguais às de Fukien." Mais além, rio acima, as montanhas recober­tas de pinheiros se adensavam e havia pedras pontiagudas e madeira flutuando nas águas turbulentas enquanto o barco sulcava estrepitoso seu lento curso sob os penhascos carrancudos para conduzi-los ao seu destino.

Em Chien-O, Watchman pregou durante duas semanas, tendo muita liberdade no uso da Palavra e com o saldo de um dólar e vinte centavos no bolso. Suas mensagens eram bem recebidas e seu amigo K. H. Weigh entrou num novo estado de bênção e consagrou-se de novo a Deus. Por fim, houve um almoço de despedida no qual o arquidiácono Hugh Phillips levou o jovem pregador para um lado. Hugh era homem de vasta experiência e sobrevivente de incríveis provações por amor ao evangelho. "Recebemos muita ajuda de suas pregações", disse. "Por favor, posso partilhar de suas despesas?" Watchman respondeu com ímpeto: "Não há necessidade alguma. Tudo está plenamente provido." Para ser franco, não se sentia à vontade quanto a aceitar ajuda missionária. Tinha certeza de que Deus agiria a Seu modo. Mas, no dia seguinte, caminhando com muitos novos amigos pela estrada que leva ao rio, amigos que foram ao seu bota-fora, se viu orando: "Senhor, tu não podes trazer-me aqui e não me levar de volta ao lar!" A meio caminho do barco, um mensageiro aproximou-se dele com um bilhete do missionário: "Embora alguém tenha pago sua passagem, queira aceitar a quantia inclusa, permitindo que este idoso irmão tenha uma pequena parte." Reconhecendo nisto a mão de Deus, aceitou o sinal de comunhão. A quantia dava para pagar muito além de suas despesas, pois o mesmo barco fretado ali estava pronto para voltar, com a mesma vaga ao mesmo preço reduzido. Na divertida descida pelas corredeiras do Min, o seu coração estava em paz. Uma vez mais, de volta a Foochow, descobriu, também, que o donati­vo que fizera antes de sair havia satisfeito a uma neces­sidade verdadeiramente aflitiva. Foi uma experiência da qual jamais se esqueceria. Conforme disse mais tarde, o caminho de Deus não é "Poupe e você ficará rico", mas "dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante".

Contudo, em Nantai tinha ocorrido uma mudança no relacionamento de Watchman com os obreiros que opera­vam a partir da casa alugada. De maneira alguma se conhecem os detalhes que levaram à decisão dos irmãos mais idosos, Wang Tsai e João Wang, apoiados por mais uns poucos, de pô-lo fora de sua comunhão. Na verdade, havia-os desapontado por causa da aventura na ilha de piratas. Entretanto, não foi isto, mas, um simples problema de princípio que é citado pelos envolvidos naquele tempo, e parece surpreendente que tal problema tenha surgido num grupo ainda tão jovem.

Em sua busca de uma nova investida no trabalho do evangelho, Watchman procurava voltar aos pontos funda­mentais. A seu ver, Deus mesmo é o Organizador de qualquer trabalho que seja chamado verdadeiramente Seu; e Deus deve ser, também, o alvo desse trabalho. Mas, o que dizer da tarefa intermediária? Não era Ele, em certo sentido, o seu Agente — Aquele que deve dotar a todos de poder? Aqui havia, no seu entender, algo que os cristãos geralmente menosprezavam. Ele o disse nestes termos:

"Quando vemos um homem de aguçado intelecto, eloquente e enérgico e com tino administrativo, dizemos: 'Que bên­ção esse homem seria para a causa de Cristo!' Mas, isto equivale a dizer que, embora o começo deva ser de Deus e o fim para Ele, o meio está dentro do poder do homem realizar." A despeito do zelo evangélico com o qual Watch­man se impulsionava tão ilimitadamente, era atormentado pela declaração de Jesus de que "o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai" e pelas não menos explícitas palavras de Deus a Paulo: "Porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza." Este elemen­to de milagre divino parecia-lhe a mola mestra necessária de toda a verdadeira realização para Deus.

Watchman tentava expressar esta opinião em palestras para os crentes durante o feriado do Ano Novo anterior. As exposições do Antigo Testamento que havia feito versavam sobre o tema do testemunho de Deus expresso na arca da aliança de Israel. (O tema dessas exposições pode servir-nos para esclarecer suas ocasionais incursões no campo da alegoria.) Em Jericó, lembrava aos ouvintes, a presença da arca havia causado a ruína daquela cidade. Mais tarde, num dia de derrota, conquanto o ritual sacerdotal pudesse ainda prolongar-se em Silo, foi aquela mesma arca em exílio junto à qual Deus permaneceu, para o desbarata­mento dos captores da arca. A pergunta que Watchman fazia era: Como podia Deus ter hoje uma obra e obreiros aos quais ele pudesse entregar-se assim?

Ao discutir esta questão, Watchman apontava para um objeto que fazia parte do conteúdo da arca, a saber, a vara de Arão que havia florescido, que havia sido colocada ali como memorial de uma noite escura e de uma manhã de ressurreição. Isto aludia, no seu modo de ver, ao único caminho seguro de frutificação para todo servo de Deus. Não realizamos a obra de Deus meramente rendendo-nos ao apelo de portas abertas e de grandes oportunidades. Há também, amiúde, uma noite escura a ser enfrentada com paciência por amor de uma nova vida (ilustrada pela vara florescente) além da capacidade do homem de produzir. Essa vida de ressurreição em seu mais pleno sentido estava em vista quando Jesus mesmo foi à cruz; e de maneira alguma é o servo maior do que o seu Senhor.

Esses estudos foram publicados na revista que editava de vez em quando, uma edição que fora paga com o donativo do Arcediago Phillips em Kienning. Ainda não era prática de Watchman melhorar mediante cuidadosa revi­são a licença do pregador para exagerar e pode ter sido seu método quietista demais no serviço cristão que levou àquela desaprovação dos irmãos. Mas, fora as diferenças de ponto de vista entre eles, houve também pressões ex­ternas. Com o movimento anticristão atingindo o ponto mais alto nas cidades, alguns elementos dos círculos missioná­rios certamente teriam preferido que o testemunho dos es­tudantes assumisse formas menos inflexíveis. Poucos pode­riam negar a estatura de Wang Tsai e de João Wang, ambos ex-oficiais navais convertidos de maneira supreendente e era de esperar que homens tais como esses podiam ser "contidos" dentro de uma parte da ordem estabelecida. Na verdade, Wang Tsai havia recebido ultimamente ordenação formal em Xangai de mãos missionárias. Watchman, por contraste, pode ter parecido menos maleável e uma fonte potencial de divisão, justamente numa época quando qual­quer aparência de desentendimento na causa cristã devia ser considerada com cautela. Alguns dos colégios fizeram tentativas de proibir os estudantes de comparecer às reuniões de reavivamento, e um missionário, pelo menos, o havia classificado como "diabo e enganador de muitos". Isto pode ter representado uma opinião amplamente sus­tentada.

Por um ou mais desses motivos, os Wang pediram a Watchman que deixasse de adorar com o grupo. Muitos logo se lamentaram da providência tomada e mais tarde a maioria inverteu a decisão. "Fizemos uma coisa muito tola", observa um deles, "mas, talvez fôssemos movidos de inveja também, porque o irmão Nee era melhor dotado do que o restante de nós." Entretanto, por algum tempo, permaneceram as reservas acerca de sua pregação e para sua grande tristeza, a ferida com alguns dos irmãos nunca foi completamente curada.

Watchman desceu para Me-hsien, a aldeia localizada entre Pagoda e Ma Wei e ali alugou uma cabaninha com uma janela que dava para o porto. Fez desta minúscula cabana a base de suas viagens de pregação e aqui começou a estudar e a trabalhar mais seriamente na revista que havia tentado publicar. Um ou dois jovens irmãos permaneceram para fazer-lhe companhia e Faith-ful Lucas não estava muito distante em White Teeth Rock, do outro lado do rio.

Por este tempo, a médica encarregada do Hospital da C. M. S., que ficava pouco abaixo do rio, Srt.a Li, aproxi­mou-se de Watchman. Ela havia adotado e educado um menino a quem dera o nome de Kuoching, mas, ele a desapontara. Aos dezesseis anos de idade teve de ser expulso da escola e, em desespero, ela o trouxe para Ma-hsien e apelou para Watchman que a ajudasse. Assim, ele o tomou e passou a ensinar-lhe a Bíblia e em bem pouco tempo o rapaz estava sinceramente convertido. Para ale­gria da mãe dele e de toda a família desta, a conduta do jovem deu testemunho convincente da mudança operada.

Com o mês de Janeiro de 1925 aproximou-se o Novo Ano Lunar e com ele a costumeira convenção de férias em Foochow, atraindo crentes da cidade e da vizinhança. Neste ano, Wang Tsai enviou uma mensagem a Watchman pedindo-lhe que não comparecesse. A crítica do trabalho concentrava-se nele e eles sentiriam-se mais à vontade sem a sua presença.

O pedido, Watchman admite, sacudiu-o de seu descanso em Cristo e mergulhou-o em profundo desânimo. No limite extremo de suas forças, tomou o barco para Customs Point em busca de sua amiga e conselheira. "A situação chegou a este ponto!", exclamou e delineou-lhe o que havia aconte­cido. Ela disse muito pouco em resposta, indicando por seu silêncio o quanto partilhava de sua tristeza. Não obstante, ao retirar-se, ele estava com a coragem renovada.

A seguir, ele encontrou-se com Faithful Lucas, que, embora permanecesse leal aos seus irmãos mais velhos em Foochow, ficara profundamente angustiado pela ruptura deles com seu amigo. Juntos buscaram a Deus em oração. Watchman era realista bastante para avaliar a crítica procedente de qualquer fonte e formulou sua pergunta com humildade. Apesar das muitas conversões reais que ha­viam testemunhado no decorrer deste ano, havia, de algu­ma forma, desagradado a Deus? Havia ele dado aos irmãos base para tal atitude? Enquanto oravam, a resposta veio-lhes com clareza aos seus corações: "Deixe seu problema comigo. Vá e pregue as boas-novas!"

Aconteceu que a mãe adotiva de Faithful Lucas estava, nesse tempo, trabalhando como parteira numa aldeia cha­mada Mei-hwa, no braço sul do estuário que tinha ilhas por todos os lados. Era um lugar de trevas do paganismo, com um povo totalmente ignorante acerca do evangelho. Ele e Watchman, com outros quatro, resolveram passar as férias lá pregando Cristo aos aldeões. No último minuto, o recém-convertido Li Kuo-ching foi junto também, de modo que o grupo agora era de sete. Haviam escrito com antecedência a um antigo estudante de Trinity que era o diretor da escola, mas, quando ao cair da noite desembarcaram em Mei-hwa, recusou-lhes o uso das instalações da escola como base para seu testemunho. Finalmente, foram acomodar-se sobre pranchas e palha no sótão de um bondoso ervanário.

Durante os primeiros dias, os pescadores e os lavradores estavam ocupados com as ruidosas celebrações costumei­ras: visitas cerimoniais, refeições vegetarianas, culto dos antepassados, jogatina, exibições de fogos-de-artifício, gastos com assistência aos necessitados, e, no quarto dia, acolhimento com oferendas a seus diversos deuses domés­ticos. Não admira que não ouvissem. Mas, quando no nono dia ainda não havia reação a pregação, o jovem Li Kuo-ching sentiu-se frustrado. "Que há de errado aqui?" Pergun­tou à multidão. "Por que vocês não crêem?" Contaram-lhe, então, do deus Ta-Wang (Grande Rei) totalmente digno de confiança, cujo dia de festa se fazia conhecido por adi­vinhação, fora fixado este ano para o 11. ° dia. No decorrer dos últimos 286 anos havia, afirmaram, proporcionado a infalível luz solar para o dia que escolheu. "Então prometo-lhes", exclamou o obstinado Li, "que nosso Deus, que é o Deus verdadeiro, fará chover no 11.° dia." De imediato seus ouvintes aceitaram o desafio. "Não diga mais nada. Se no 11.° dia chover, então o seu Jesus é, deveras, Deus. Estaremos prontos a ouvi-lo."

Watchman estivera pregando em algum lugar da aldeia e quando as notícias se espalharam com rapidez e chega­ram aos seus ouvidos, ficou horrorizado. A honra do Senhor parecia correr perigo, pois, haviam-no comprometido levianamente a fazer algo que podia não querer sustentar. Todos os sete, sabia - e não apenas Li - deviam ser respon­sabilizados por isto. Entretanto, se Deus não sustentasse o desafio, que futuro poderia ter o evangelho nas ilhas? Haviam pecado? Perguntava-se a si próprio, repetindo a pergunta que havia feito a Deus apenas uns poucos dias antes. Deveriam retirar-se agora e deixar este Grande Rei imperar supremo? De volta ao seu alojamento, buscaram a Deus em profunda humildade, preparados para receber a sua censura.

Então, veio a Watchman a palavra: "Onde está o Se­nhor, Deus de Elias?" — e com ela a segurança de que a chuva, deveras, cairia no 11.º dia. Tão claro era isto que saíram agora proclamaram o desafio aos quatro cantos.

Naquela noite, seu anfitrião os alarmou confirmando o testemunho dos aldeões. Ta-Wang, o deus da vizinhança, era um verdadeiro protetor de paz e tranquilidade, prote­gendo seus adoradores de enfermidade, seus campos de pragas, suas mulheres na hora do parto. No dia de sua festa, podia-se contar com ele para recompensar-lhes o zelo com céus sem nuvens. Além do mais, lembrou-lhes o hospedeiro, metade dos nativos era de pescadores que passavam meses no mar e, pelo menos, podia-se confiar neles quanto à previsão do tempo com alguns dias de antece­dência, o que faziam com precisão! Ao ouvirem isto, os irmãos foram seriamente tentados a orar pedindo chuva, sem mais delongas, mas, de novo, viram-se confrontados pelas palavras do profeta: "Onde está o Senhor, Deus de Elias?" No dia seguinte, portanto, foram a uma ilha vizinha — a ilha pirata do anterior desapontamento de Watchman —  onde imediatamente três famílias se converteram a Cristo, confessando-0 e publicamente e queimado seus ído­los. Voltaram tarde naquela noite, cansados, mas, jubilosos.

Na manhã seguinte, dormiram até tarde. Watchman conta como foi despertado pelos raios diretos do sol que entravam pela única janela do sótão. "Isto não é chuva!" Exclamou. Já passava das sete horas. Levantou-se, ajoelhou-se e orou: "Senhor, por favor, manda-nos chuva!" Mas, uma vez mais as palavras soavam em seus ouvidos: "Onde está o Senhor, Deus de Elias?" Humilhado, desceu as escadas em silêncio. Afinal sentaram-se para tomar a refeição matinal, os sete irmãos e seu hospedeiro, todos muito quietos. Não havia no céu uma nuvem sequer, entre­tanto, sabiam que Deus estava comprometido. Enquanto curvavam a cabeça para dar graças antes de comer, Watchman observou: "Acho que o tempo acabou. A chuva deve vir agora. Podemos trazê-la à lembrança do Senhor." Tranquilamente o fizeram e, uma vez mais, veio a certeza, mas, agora sem nenhum indício de reprovação: "Onde está o Senhor, Deus de Elias?" Antes mesmo de proferirem o amém, ouviram algumas gotas sobre as telhas. Enquanto comiam o arroz, havia uma chuva constante. Ao ser servido com a segunda tigela, Watchman exclamou: "Demos graças de novo" e agora pedia a Deus que enviasse chuva ainda mais pesada. Começaram a comer a segunda tigela de arroz e a chuva descia a cântaros. A hora em que termina­ram, a rua lá fora já estava inundada de água e os três degraus da entrada da casa do herbolário estavam cober­tos.

Já ao primeiro indício de chuva alguns dos aldeões mais jovens começavam a dizer abertamente: "Há Deus; já não há Ta-Wang! A chuva impediu-o de sair de casa!" Mas, seus adoradores não iam entregar os pontos. Levaram-no para fora numa liteira, pois, certamente ele faria parar a chuva! Então, foi aquela chuvarada. Percorridos apenas uns pou­cos metros, os que carregavam a liteira tropeçaram e caí­ram. Lá se foi para baixo o andor e Ta-Wang com ele, quebrando a mandíbula e o braço esquerdo. Ainda deci­didos, executaram consertos de emergência e puseram-no de volta na liteira. De qualquer modo, escorregando e tropeçando, arrastaram ou transportaram-no meio cami­nho pelas ruas de Mei-hwa antes que as inundações os derrotassem. Alguns dos anciãos da aldeia, velhos de 60 a 80 anos, de cabeças descobertas e sem guarda-chuvas como sinais de sua fé nas condições do tempo exigidas por Ta-Wang, haviam caído e estavam em sérias dificuldades. A procissão foi interrompida e o ídolo levado para uma casa onde se fez uma nova revelação divina. "Hoje era o dia errado", foi a resposta. "O festival deve continuar no dia 14 com a procissão às dezoito horas."

Com esta notícia veio aos irmãos a imediata segurança de que Deus atuaria de novo. Buscaram a Deus em oração:

"Senhor, envia chuva às 6:00 da tarde no dia 14 e dá-nos quatro belos dias até lá." Aquela tarde o céu limpou e agora tinham um bom auditório para o evangelho. Dous concedeu-lhes mais de trinta verdadeiros convertidos em Mei-hwa e sua vizinhança durante esses três curtos dias. Rompeu o dia 14, outro dia perfeito e continuaram a ter uma boa audiência. A medida que se aproximava o entar­decer, reuniram-se e de novo na hora indicada o assunto foi trazido à lembrança de Deus. Nem um minuto de atraso. Sua resposta veio com chuvas torrenciais e inundações como antes. O poder de Satanás manifesto naquele ídolo tinha sido quebrado e nunca mais Ta-Wang foi um deus efetivo.

No dia seguinte, o seu tempo havia-se esgotado, porque os irmãos que tinham emprego precisavam partir. No devido tempo, a Missão, cujos "campos" incluíam aquelas ilhas, assumiu o cuidado dos convertidos. Watchman, recordando-se dessa experiência, devia ver nela lições espirituais de valor duradouro. No presente, o horário do incidente foi para ele e para os que estavam com ele profundamente tranquilizador. Se apenas pudessem continuar humildemente, mantendo-se perto de Deus, o cuidado de todas as consequências era, certamente, Dele.

CAPÍTULO 7

CAMPOS ESTRANGEIROS

Na aldeia de Ma-hsien, a "cabaninha junto ao rio", que Watchman havia alugado, dava vistas para o porto de águas profundas com seu esplêndido cenário e seu cons­tante movimento de barcos fluviais e embarcações que sulcavam o oceano. Subindo o rio, está o estaleiro de Ma-Wei e a escola de treinamento naval. Rio abaixo sobre a Ilha Lo-hsing (Estrela Cadente), na curva do rio, o templo pagão com 30 metros de altura dava ao porto o seu nome. Aqui onde se reuniam os dois braços do Min, que por 14 quilómetros circundavam a ilha de Nantai, a correnteza da água do rio produzira profundidade suficiente para os grandes cargueiros singrarem na corrente do meio. Acima, levantavam-se as montanhas, algumas cultivadas em terra­ços quase até ao topo, outras tão íngremes que só permi­tiam um atrofiado cultivo de pinheiros. Perto do local de expedição, sampanas e barcaças movimentavam-se, seus tombadilhos a ecoar os gritos das gaivotas e o ritmado "uo-ho, uo-ho, uo-ho", dos "coolies" transpirando por todos os poros.

Aqui, vivendo com muita simplicidade, Watchman esta­beleceu sua base desde os 22 até aos 24 anos durante o que seria um período de transição e de imenso desenvolvimento espiritual em sua vida. Começou a estabelecer alvos para si próprio. Enquanto estava na escola, experimentara andar de bicicleta fixando os olhos no guidão, com a ideia de que se as barras do guidão fossem firmes caminharia reto, mas, tudo o que acontecia era que nas ruas estreitas a todo instante ia de encontro às paredes e machucava as juntas dos dedos. Então, um amigo que sabia andar de bicicleta mostrou-lhe onde residia a falta. "Não dê atenção à estra­da", disse. "Mantenha os olhos no caminho à frente." Ele agora procurava aplicar este princípio no trabalho de Deus.

Uma área na qual via a necessidade disto era no pro­blema da autopreparação e estabeleceu para si um vigoro­so programa de estudo. Mas parecia já ter vislumbrado o fato de que para Deus o pregador importa, no mínimo, tanto quanto a coisa pregada. Chegou a ver que Deus necessi­tava, antes de tudo, criar nele o que Ele, Deus, desejasse proclamar por intermédio de Seu servo. Com efeito, duran­te parte deste tempo, Watchman não ia bem de saúde, afligido com tosse; e quando isto acontecia, entregava-se ao estudo e à meditação da Palavra e à ampla leitura que ia desde Alford e Westcott sobre as Escrituras até às vidas de Lutero e Knox, Jonathan Edwards, George Whitefield e David Brainerd. Quando se encontrava bem de saúde, dividia a atenção entre as viagens de pregação e o preparo da revista Revival, pequeno devocionário que começou a publicar já em 1923. A revista consistia quase inteiramente em suas exposições da Bíblia, reproduzidas conforme pro­nunciadas, suplementadas por extratos escolhidos de uns poucos escritores devocionais ocidentais. Revival aparecia em intervalos irregulares, conforme Deus lhe enviava o dinheiro em pequenos donativos de uns poucos dólares e centavos e era distribuída sem assinaturas a todos quantos a solicitassem. Com suas valiosas mensagens que expu­nham o propósito redentivo de Deus em Cristo, a revistinha logo alcançou campos mais distantes e isto resultou em mais convites para dar testemunho pessoal e pregar.

Em 1924, foi a Chekiang para as reuniões na cidade de Hangchow e daí subiu o rio Yangtze até Nanking, capital de Província de Kiangsu e principal centro de atividade missionária. A fim de adquirir experiência em publicação, trabalhou ali alguns meses com a Sociedade Publicadora Luz Espiritual, da Missão Presbiteriana, onde sua amiga Ruth Lee estava agora no grupo redatorial. Deu valor ao treinamento técnico que os missionáris ofereciam e ficou contente por servir com eles, como irmão em Cristo. Ao voltar pelo caminho de Xangai, recebeu notícias de Charity. Fazia muito tempo que se haviam encontrado pela última vez, mas, não conseguia afastá-la de sua mente. No colégio em Tientsin, segundo soube, ela estava revelando-se uma aluna brilhante e esperava no devido curso dos aconteci­mentos continuar em Peking e conseguir um lugar na Universidade de Yenching. Todavia, com relação aos inte­resses sociais de Charity, o que descobriu simplesmente aprofundara a convicção de que se quisesse seguir ao Senhor completamente, devia desistir de uma vez de pensar nela. Cheio de tristeza, portanto, propôs-se eliminá-la de seus pensamentos. Foi para seu quarto, ajoelhou-se e entregou o assunto firme e finalmente a Deus e, então, escreveu o poema "Amor Ilimitado".

Teu amor, amplo, alto, profundo, intérmino, é verdadeiramente sem medida

Pois só assim poderia tal pecador como eu ser dessa maneira abundantemente abençoado.

Meu Senhor pagou um preço cruel para readquirir-me e fazer-me seu. Não posso deixar de levar Sua cruz com alegria e segui-Lo firmemente até ao fim.

Tudo o mais eu abandono uma vez que Cristo é agora meu alvo.

Venha a vida, venha a morte, que importa?

Por que deveria eu olhar para trás e lamentar-me?

Satanás, o mundo, a carne, buscam, se possível, confundir-me.

Ó Senhor, dá poder a este ser fraquinho para que eu não desonre o Teu Nome.

Certa manhã, em Xangai, ao ler a Bíblia, esta lhe trouxe as palavras de Jesus: "É necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois, para isso é que fui enviado." Pouco depois, chegou-lhe um telegrama de sua mãe: "Fui convidada para pregar o evangelho na Malaia. Estaria você em condições de acompanhar-me, se não tiver outros compromissos?"

Questão de um mês atrás, talvez antes, na festa de aniversário de uma amiga, Huo-ping ficou conhecendo um visitante da Malaia, por nome Ching, um homem eticamente muito confuso e em evidente necessidade espiritual. Sentira o Senhor dizer-lhe: "Preguei para uma mulher de Samaria. Fale com ele da palavra da vida!" Ele parecia ter ouvido falar da maravilhosa conversão dos Nee, mãe e filho; e quando ela lhe deu seu testemunho pessoal, respondeu ardorosamente às reivindicações de Deus sobre sua vida. Do estado de Perak, ele agora escreveu-lhe apelando para ela em nome de sua igreja-mãe, em Sitiawan, da qual poucos membros, conforme explicou, conheciam a salvação em Cristo que havia encontrado. Estaria disposta a vir e pregar-lhes? Ele custearia todas as despesas de viagem e seriam hospedados na casa de sua irmã e seu cunhado, Sr. e Sr.a Ling Ti-kong, cristãos sinceros. Huo-ping colocou o problema diante do Senhor e ele deu-lhe a confirmação nas palavras do Evangelho de Lucas: "E necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades." Com esta certeza, havia telegrafado a Watchman, que veio de Xangai para juntar-se a ela.

Viajando via Singapura e Ipoh, chegaram a Sitiawan onde encontraram calorosa acolhida no lar de Ling. Contu­do, a recepção na Igreja Metodista foi fria. "Há um mês", observou o pastor, "dois norte-americanos realizaram reu­niões de avivamento para as quais nos esforçamos por ganhar membros para a igreja. No primeiro dia, havia mais de trezentas pessoas presentes; no segundo, sessenta e no terceiro apenas doze. Agora, em Novembro, a situação é muito pior, porque todos estão fora sangrando seringueiras e não temos nenhum tempo livre, exceto aos domingos."

Quando chegaram à igreja na noite seguinte, a porta estava trancada. Procuraram o pastor e o encontraram calculando o rendimento do látex do dia. Ele havia-se es­quecido, conforme explicou, da hora da reunião. Não revelando desagrado algum, pegaram a chave e abriram a porta, pondo-se a trabalhar na limpeza do edifício com uma vassoura emprestada, enquanto um crente indiano se postou na rua convidando as pessoas a entrar. Os números, a princípio, eram desanimadores, até que Watchman, em seu testemunho pessoal, aludiu às palavras "é necessário que eu anuncie", encontradas no Evangelho de Lucas. Então Huo-ping percebeu como Deus havia usado trecho bíblico idêntico para chamar cada um deles a trabalhar nesta aventura. Imensamente estimulada, proclamava a palavra agora com maior liberdade e vigor. Muitos arrependiam-se, vertendo lágrimas, confessando seus pecados e houve muito acerto de contas, muita gente corrigindo seus erros. Agora, os números subiam constantemente, chegando a tre­zentos e até mais, com multidões a transbordar, ouvindo em pé, nas janelas. Somente o pastor se mostrava cauteloso ao ver tanta emoção e depois de dezesseis dias achou por bem terminar as reuniões. Mesmo então, a convite do casal Ling, continuaram ali por mais algum tempo com estudos bíblicos nos lares, visando a firmar na Palavra os novos crentes. Antes de deixar Sitiawan, Watchman telegrafou para Faithful Lucas, pedindo que viesse para dar assistência à obra. Mas, haviam de passar alguns anos até que fizesse da Malásia e da Indonésia seu campo de serviço, sentindo o chamado.

Durante essas semanas, a Sra. Nee encontrara-se muito à vontade no lar de Ling e relacionou-se particularmente com a filha mais velha da família, Ai-king, uma promissora jovem cristã. A Sra.a Nee via nessa jovem a perfeita companheira para o seu filho. Falou sobre isto com os pais da moça e comunicou-se com seu dócil marido, mas, com pouca referência a Watchman. Outros convites para pre­gar os detiveram na Malaia por algum tempo mais e dessa maneira as famílias encontraram-se de novo. Impetuosa­mente, Huo-ping forçou o assunto, esquecendo-se de sua própria e amarga experiência quando menina, embora a obediência filial exigisse que Watchman suprimisse suas dúvidas. No devido curso dos acontecimentos, uma troca formal de cartões e uma pequena festa proclamaram um noivado que, quase de imediato, devia comprovar-se uma fonte de grande desassossego de coração para ele. Pois, enquanto ele e a mãe estavam ainda em Singapura aguar­dando passagem para casa, um mestre-escola interessado na Srt.a Ling chegou a Watchman com uma história falsa, mas, plausível denegrindo o caráter da moça. Relutava muitíssimo em crer na história. Entretanto, o efeito sobre ele devia intensificar seu próprio senso de incerteza. Num assunto que afetava tão profundamente o propósito de Deus para a sua vida estava desesperado para não dar um passo em falso. Passou alguns dias agonizando em oração, ponde­rando diante de Deus o que deveria fazer e, finalmente, tendo chegado a Xangai, disse à mãe que Deus não lhe estava dando liberdade alguma para prosseguir com o noivado. Conseguiu convencê-la de que devia devolver as promessas de noivado, enquanto escreveu aos Ling, tão cortesmente quanto lhe foi possível, explicando sua posi­ção. A mãe achou difícil aceitar este fato, pois já amava a Ai-king como filha. Houve, pois, certa tensão entre eles enquanto ministravam a Palavra no Hospital Betei a convite da Dr.a Mary Stone (Shih Ma-yu); mas, um convite a Huo-ping para dar seu testemunho na Escola Ocidental Para Moças colocou as coisas em perspectiva trazendo-lhe à lembrança seu próprio noivado mal-recebido enquanto estudante ali e ela começou a ver as coisas como Watch­man as via. No barco que os conduzia ao lar em Foochow, ela estava pronta a admitir que teria estado enganada.

O apelo da pregação do próprio Watchman assentava-se, antes de tudo, em seu dom de fazer tão claro o caminho para Deus que depende exclusivamente da obra consumada de Cristo. Grande demais era o número de cristãos que buscavam uma salvação baseada nas boas obras, em prin­cípio, uma maneira um pouco distante do budismo. Disseram-lhes que era presunçoso da parte deles dizer confian­temente que estavam salvos. Por conseguinte, a pregação da nova vida como dom gratuito de Deus era uma novidade que os deixava perplexos. Nem Watchman parou de anun­ciar as boas-novas de justiça pela fé. Estava, agora, encon­trando muita ajuda pessoal através dos escritos de Andrew Murray e F. B. Meyer sobre a vida prática da santidade e livramento do pecado. Leu, também, tudo quanto pôde de Charles G. Finney e de Evan Roberts e o despertamento espiritual galês de 1904-5; e investigou as obras de Otto Stockmayer e de Jessie Penn-Lewis sobre as questões da alma e do espírito e do triunfo sobre o poder satânico. Seu próprio estudo do Novo Testamento apoiava o ponto de vista de que estavam ali grandes problemas da experiência cristã que deviam, de algum modo, ser apresentados em termos simples para seus irmãos na fé.

Quando tais temas começaram a aparecer em seus discursos e, com o passar dos anos foram reproduzidos na revista, encontraram uma cálida reação dos leitores em toda a Província de Fukien e além. Sem dúvida alguma, grande parte do que proclamava era tão-somente fruto de estudo diligente de uma mente aguçada e necessitava ainda de ser comprovada em sua própria experiência. Entretanto, com o entusiasmo da juventude, logo estava revelando a ideia de escrever um compêndio sobre a vida espiritual do cristão. Muito do que havia lido e em que tanto se havia regozijado não encontrava menção alguma nas igrejas missionárias que havia ao seu redor. Foi chamado para ser orador de uma convenção e disse aos ouvintes que não bastava receber o perdão de pecados e a certeza da salvação, pois, estes elementos eram apenas o ponto de partida. O homem deve chegar a conhecer o Salvador ressurreto como sua própria vida, pois só assim podia esperar exibir conduta agradável a Deus.

Todos ouviam com avidez. Estas eram ideias novas para gente que pensava no evangelho como destinado apenas aos pecadores — uma promessa do céu, que, uma vez recebida com confiança, nada mais tinha que oferecer-lhes no presente senão conforto na adversidade. "Receber o Salvador", era a teoria, "e depois esquecer de sua obra salvadora e converter-se a uma filosofia humana de vida." Isto explicava por que as ideias de Confúcio e de Meneio pesavam tanto quanto a Bíblia em tantos lares nominal­mente cristãos.

Como isto se distanciava infinitamente dos frutos do novo nascimento! Dava tão pequeno lugar ao Espírito de Deus que reside em nós, sobre cujo papel como mestre dos incultos, Watchman estava chegando a depender mais e mais. Havia descoberto, certo dia, um humilde alfaiate por nome Chen que, meses antes, apanhara e lera uma folha avulsa que era nada mais, nada menos, que a última pági­na do Evangelho de Marcos. Este homem, sem nenhum cris­tão para aconselhá-lo ou adverti-lo da suspeita atribuição desses versículos a Marcos, havia selecionado a partir do versículo 18 o que concluiu ser o mínimo dos sinais, a saber, a cura e partir para a aldeia a fim de pô-lo à prova. Então, convencido pelo resultado obtido na recuperação dramáti­ca de um vizinho, simplesmente voltou para a sua alfaiata­ria para alí testemunhar fielmente a favor de Cristo.

Experiências tais como esta ajudaram a superar uma dificuldade que havia perturbado Watchman. Conta-nos que nos primeiros tempos tinha muito medo de encontrar-se com um ateu ou com um modernista adepto da alta crítica, para não dar-se o caso de tal homem demonstrar-lhe que a Bíblia não merecia confiança e, como resultado, perdesse a fé. Mas, quando, pessoalmente e na vida de outros, se viu face a face com o Cristo vivo, sabia que havia encontrado a resposta. A todos os argumentos dessas pessoas podia responder com segurança: "Sim, há muita razão no que você diz — mas, eu conheço meu Deus. Isso é suficiente."

Em outra aldeia, um lavrador recentemente convertido havia enfrentado uma crise. Sua faixa do campo de arroz ficava logo acima de uma corrente de irrigação sobre a encosta da montanha, cujo terreno era formado por pata­mares; mas, repetidas vezes fora defraudado por um vizinho abaixo dele de sua água, laboriosamente bombeada, na inclinação do terreno, que de noite abria uma brecha na sua água represada e esta escorria para a sua terra. Em desespero, o lavrador procurou seus irmãos na fé. "Isso não é justo!" Exclamou. "Que devo fazer? Digam-me, qual é minha conduta certa nesta situação?" Ajoelharam-se em oração e, então, os outros propuseram que experimentasse caminhar a segunda milha. "Se fizermos apenas o que é certo", disseram, "certamente somos servos inúteis. Deveremos ir além do que é meramente certo." Assim, no dia seguinte, carregou seu balde de madeira com seu elevador de água de "espinha de dragão" e foi trabalhar uma vez mais no seu moinho [treadmill). De manhã bombeou água para as duas faixas de terra molhada do seu vizinho abaixo dele; depois, à tarde, bombeou água suficiente para seu próprio campo.

O vizinho ficou aturdido. Depois de ponderar sobre o assunto foi à casa do vizinho cristão e, com toda aparência de sinceridade, solicitou explicação. Em breve, também estava bebendo na Palavra de vida.

Era devoção deste tipo a Deus e à Sua Palavra que nos anos seguintes Watchman sentiu-se chamado a promover e a servir. Aqui estavam pessoas que haviam levado a Bíblia a sério. Aqui estava uma verdadeira comunhão de almas nascidas de novo. Nisso começou a ver tanto a essência da Igreja de Cristo na terra como a ponta de lança de seu testemunho do Espírito para o paganismo. Todo filho de Deus, por mínimo que seja, deve ser testemunha do poder transformador do evangelho. Cada grupo frágil em si mesmo deveria tornar-se um centro de adoração e testemu­nho, onde a vontade de Deus foi descoberta e onde Cristo possa ser encontrado em presença viva.

CAPÍTULO 8

ODRES VELHOS

Na pouca distância de dezesseis quilómetros desde a capela do Trinity College até à sua cabana coberta de sapé à beira-rio onde dois ou três jovens se reuniam com ele para orar, Watchman havia percorrido um longo caminho se­gundo seu modo de pensar. Aqui, como em Nantai, os extremos do Oriente e do Ocidente impunham-se sobre ele. Um ajuntamento de confortáveis bangalôs estrangeiros cobria a encosta da montanha atrás, enquando, do outro lado do rio, os navios costeiros e os cargueiros que vinham da Europa e da América permaneciam nos seus atracadouros no canal principal ou saíam rapidamente pela maré. Mas, cruzando entre eles, sacolejando e balançando em seu charco, estavam as pequeninas sampanas e "slipper boats" da gente local, adoradores da deusa Ma-zu; e aqui, na praia em volta dele, suas moradias simples aglomeradas entre os ruídos e odores do bazar nativo. Era um mundo muito misto. Como, perguntava continuamente a si próprio, podia o seu cristianismo ajustar-se num ambiente tão complexo?

Em Foochow era a dominadora "igreja de pedra" angli­cana ou sua contraparte norte-americana de tijolos ver­melhos que simbolizavam a fé cristã. Ali, uma vez por semana, segundo descrição de um contemporâneo, a "co­munidade" de cônsules, de oficiais portuários e de mer­cadores condescendia em juntar-se aos missionários numa breve hora de exercícios religiosos formalmente conduzidos pelo capelão do porto. Terminados esses exercícios, volta­vam — os representantes de Jardine Matheson ou de Gillman e Sassoon — aos seus tradicionais misteres pós-igreja, de fixar o preço do chá para a semana; os restantes iam para o Clube Britânico ou para os seus lazeres de domingo.

Naturalmente, as congregações menores da cidade e do distrito, erigidas com tal devoção no decorrer de muitos anos, contavam com maior número de chineses em seu rol de membros e ministério e Deus tinha muitos dos Seus filhos entre eles; ainda assim, participavam de uma estrutu­ra e características peculiares do povo essencialmente ocidentais. O laicato era grandemente passivo, dependente de uma organização eclesiástica enfadonha, tendo no seu ápice bispos estrangeiros dedicados. Pobre homem, se pesado ou leve, devia sempre contar com quatro homens para carregar-lhe o palanquim! E, também, havia uma carência crónica de clérigos ordenados. A proporção de pastores qualificados para administrar os sacramentos era com frequência consideravelmente menos do que um ho­mem para sete congregações. Os metodistas em Foochow ofereciam a Santa Ceia uma vez por trimestre. Segundo nos descreve mais tarde outro missionário de Fukien, "seguiu-se o inevitável resultado. Um sistema sacramental exaltado, mas, praticamente inaproveitável, cai em desdém. As seitas nativas espalham sua influência". Nos anos da juventude de Watchman fora a Igreja do Verdadeiro Jesus, Chen Yeu-su Chião, fundada por Barnabé Tong, que atraíra muitos pastores de Fukien e membros da igreja para a sua comunhão. "Se a sua própria igreja não pode proporcionar-lhe um eficiente ministério e frequentes sacramentos e não está organizada de tal modo que você se sinta membro de uma comunidade espiritual, você, se tem sérias inten­ções, na maioria das vezes se unirá a alguma outra que proporcione essas bênçãos."

Assim fala um missionário anglicano, com uma visão tardia de vinte e cinco anos após esses acontecimentos.

Ouçamos o próprio Watchman, também alguns anos depois deles, narrar um incidente de sua própria experiência sobre o mesmo tema dos sacramentos. "Conheço um homem que odiava outro. O outro havia pecado tão profundamente contra ele e tão grande foi o dano que havê-lo matado pareceria escassa vingança. O homem que sofreu a ofensa foi salvo e, durante alguns anos, não teve notícia alguma do outro. Então, fez uma visita a determinada cidade e no domingo foi à igreja local para o culto de Comunhão. Logo depois de apresentado, viu repentinamente que ali estava seu ex-inimigo. "Aqui está ele!" Disse consigo mesmo. "Eu não sabia que ele estava salvo. Que devo fazer? Que tolice a minha em deixar-me ser apresentado!" Durante a oração seguinte, ele levantou-se em silêncio e foi-se embora. Come­çou a caminhar e enquanto caminhava pensou, por um lado, em sua salvação e, por outro, em sua ofensa contra o homem. Quanto mais se distanciava tanto pior se sentia por haver-se retirado da reunião e, por outro lado, mais enrai­vecido contra o inimigo. Voltou seus pensamentos dez anos atrás para o tempo em que foi salvo e como Jesus havia apagado todo o seu passado, não obstante ao mesmo tempo sentia que não podia perdoar ao inimigo. Então, afinal, o Espírito Santo lhe trouxe à mente as palavras: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros." Agora estava quebrantado e entre­gou os pontos. "Senhor, eu perdoo-lhe ", exclamou; virou-se e voltou à reunião com lágrimas a correr-lhe pela face. Ao entrar, haviam cessado de orar e estavam prestes a partir o pão. Levantou-se, pediu permissão para falar e confes­sou toda a história, contando como Deus o havia conduzido ao ponto de perdoar o homem."

Tal movimentação do Espírito de Deus em seu povo congregado era o que Watchman continuamente procura­va e acreditava que isso não poderia ocorrer no estreito contexto de qualquer grupo sectário. Assim o encontramos, um pouco mais tarde, narrando a uma congregação: "Se, enquanto nos reunimos em torno da Mesa do Senhor hoje, nosso horizonte estiver limitado por nosso próprio grupo, não estamos qualificados para partir o pão; porque a possessão da vida de Cristo trouxe-nos a um relacionamento com a Igreja toda e não meramente com uma parte dessa Igreja. Oh, precisamos ampliar nossos horizontes, de sorte que nossos corações incluam todos os filhos de Deus; se assim não for, comeremos o pão indignamente. Proclama­mos aqui que todos os filhos de Deus são irmãos e irmãs; portanto, não abriguemos nenhum pensamento dividido. Lembremo-nos de que o mesmo Espírito Santo que veio sobre nós, também veio sobre eles."

Aqui, em forma desenvolvida, estava sua tentativa de dar uma resposta ao problema importado das divisões denominacionais cuja história e valor eram, no seu enten­der, quase impossível para um recém-convertido estimar. Afligindo a Igreja potencial na China com suas diferenças sectaristas, as missões tendiam apenas a dividi-la. Dentre os jovens cristãos dessa época, Watchman não estava sozinho em perguntar-se a si próprio se o retorno a uma simples obediência ao Novo Testamento podia efetivamente reafirmar aquela unidade orgânica dos crentes para a criação daquilo pelo qual Jesus havia orado e dado a Sua própria vida.

Bem sabia que, para qualquer movimento distanciado das igrejas estabelecidas, o perigo reside em sua tendência para ser nacionalista e antimissionária e termina na de­núncia de todos os demais organismos cristãos como falsos. Mas, entre os ocidentais cujo escritos estava agora usu­fruindo havia alguns como, por exemplo, Govett, Panton e o muito anterior J. N. Darby, que por questão de consciên­cia havia renunciado às suas ordens anglicanas e cuja busca por um padrão mais primitivo de adoração e ministé­rio Deus tinha, evidentemente, honrado. Tal obediência à voz de Deus segundo a Escritura deveria ser suficiente. Sua posição, acima de tudo, deveria ser pela qualidade espiri­tual de vida. Não podia esquecer-se do pobre respeito merecido pelo pastor que costumava visitar o lar de seus pais. "A não ser para coletar dinheiro, sabendo bem que muitas vezes eram ganhos de jogadores", lembra, "nunca mostrou seu rosto entre nós." "Na obra de Deus", diz algures, "tudo depende do tipo de obreiro enviado e do tipo de convertido gerado. Se o seu alvo é a qualidade, não haveria necessidade de uma cruzada contra a ordem missionária estabelecida. Não se atreve a confundir sua própria peregrinação espiritual com o espírito do naciona­lismo em voga."

Este período que vai de 1925 a 1928 testemunharia uma nova onda de sentimento nacionalista entre os estudantes. Em anos passados seus professores haviam-lhes dito que eram a esperança da nação, destinados algum dia a ser os salvadores dela. Entretanto, com a passagem do antigo sistema de entrada para o serviço civil, suas perspectivas de pós-graduação pareciam menos seguras do que antes. Além do mais, sendo jovens, eram idealistas, impacientes com o velho estado de coisas e ansiosos pelo novo, sufi­cientemente preparados para assumir o papel de líderes de qualquer promissora ação de massa.

Um acontecimento devia acentuar este fato com trágica força para os pais de Nee. Seu terceiro filho, Sheng-tsu, educado sob a influência de sua indulgente avó, cedo fora levado para as lides políticas. Fonte de constante ansieda­de para os pais, raramente não estava envolvido em pro­blemas. Ostensivamente "para salvar a nação", mas, na realidade para fugir aos estudos, filiara-se primeiro aos Voluntários de Ferro e Sangue e depois aos Corpos Ouse Morrer - dois movimentos revolucionários. Finalmente, o pesar da família completou-se quando um dia chegou a notícia de que havia perdido a vida numa demonstração revolucionária.

Já no Ano Novo de 1925, enquanto Watchman e seus amigos estavam fora dando testemunho nas ilhas, um levante anti-missionário havia irrompido na velha cidade de Foochow em que as irmãs católico-romanas e algumas senhoras da C. M. S. foram tratadas com brutalidade e por pouco quase perderam a vida. No dia 12 de Março daquele ano, a morte do Dr. Sun Yat-sen, em Peking, deixou um vazio de poder que não foi de imediato preenchido; e no dia 30 ocorreu o histórico Incidente da Estrada de Nanquin, em que a polícia municipal da Colónia Internacional de Xangai abriu fogo contra uma demonstração estudantil. Isto pro­vocou o surgimento de um sentimento anti-britânico e resul­tou em mais violência nas cidades do sul.

Os missionários de Foochow, que estavam em retiro de verão na montanha, rapidamente renunciaram aos seus postos administrativos remanascentes em favor dos chine­ses, na esperança de reabrir o Trinity College no período escolar do outono. O reavivamento de antigas superstições acerca dos demónios estrangeiros de olhos pálidos pressionava severamente os chineses que estavam a serviço da Missão e houve alguns exemplos de imensa coragem por amor a Cristo da parte desses "cães de corrida dos es­trangeiros". Tão espalhados, deveras, foram os distúrbios promovidos pela Aliança Anticristã no ano seguinte que, na primavera de 1927, todos os missionários que trabalhavam no interior foram evacuados temporariamente para a cos­ta. Naquele verão, a escola de primeiro grau foi incendiada, enquanto Janeiro de 1928 viu a destruição, pelo fogo, do esplêndico edifício de dormitórios da escola secundária às mãos de um fanático marxista. O período de lua-de-mel das missões protestantes parecia haver chegando ao fim.

Entretanto, o próprio Watchman continuava a res­peitar como servos de Deus aqueles missionários a quem historicamente tanto devia, muistos dos quais partilhavam do seu vivo conhecimento do Salvador. No começo de 1926, alguns dos missionários o convidaram a ir a Amoy, no sul de Fukien, para falar aos alunos do Talmage College e do Seminário da Missão Presbiteriana Norte-americana. Aqui, na classe dos formandos, conheceu dois inteligentes estu­dantes cristãos, Daniel Tan e James Chen, filho de um pastor que anos mais tarde se tornariam íntimos colegas de trabalho. Enquanto estava no sul de Fukien para outras reuniões, contudo, caiu doente. Contraiu uma tosse que lhe exauria as forças e um médico preveniu-o de que podia agravar-se seu estado de saúde e devia descansar.

Entrementes, fora convidado para voltar a Nanking a fim de ajudar a redigir um curso de estudo bíblico e nisto viu a possibilidade de pagar sua viagem e conseguir algum tempo para repouso. A viagem via Xangai comprovou-se valiosa na conquista de novas amizades. Muitos leitores de sua revis­ta, The Christian, que a partir de janeiro de 1926 sucedera Revival, viviam ali e no norte ou em Yangtze; e viu de novo o potencial de Xangai como base de operação para o país como um todo. Com sua atmosfera de competição feroz e intriga política, era uma cidade estimulante, ainda que perigosa, embora seus princípios morais fossem muitas vezes condenados com a observação de que "se Deus poupasse Xangai devia pedir desculpas à Sodoma e Gomorra". Porém, ela estava estabelecida como o principal centro comercial, industrial e financeiro da China. Por contraste, Pagoda Anchorage, remota e linguisticamente provinciana, deu pouco espaço para manobra e desde a dispersão do primeiro grupo de irmãos de Foochow, ofe­recia menos perspectiva de colaboradores. Deveria, per­guntava a si próprio, transferir a sede do seu trabalho para Xangai?

Em Nanking, pôs-se de imediato a corrigir o curso bíblico. Também foi persuadido a falar a alguns estudantes da Universidade de Chin-ling e serviu de instrumento para conduzir diversos deles a Cristo. Mas, o renovado compa­nheirismo com Ruth Lee é que lhe foi especialmente valioso. Era dez anos mais velha do que ele e de maior experiência espiritual e ele sentia a necessidade de tal "irmã mais velha". Falou com ela sobre algo de sua visão para alcan­çar a China com a Palavra da vida e encontrou nela uma sábia conselheira e um espírito afim. Ela confirmou o senti­mento dele de que a presente inquietação estava desper­tando uma nova fome espiritual entre os jovens chineses que se voltavam para Cristo, mas, ficavam descontentes com o cristianismo à medida que o encontravam. Não poderia atender a esta necessidade? Ela deu-lhe apoio, também, quanto à sua opinião de que Xangai era o lugar estratégico do qual operar e disse que se sentia chamada a renunciar ao seu posto em Nanking e unir-se a ele ali, especialmente para que ele pudesse avançar em seu ministério de escre­ver.

Havia completado muito pouco de sua atribuição redatorial quando a enfermidade o atacou de novo. A tosse, que realmente nunca o deixara, piorou. Ao entardecer, sentia calafrios e à noite transpirava muito. Viu-se desejando ardentemente o clima mais quente de seu lar e, depois de oração, certamente viu que devia voltar. Pôs-se de novo rio abaixo, espiritualmente revigorado mas abatido na mente e enfraquecido no corpo. A caminho do sul, consultou o médico.

O médico de Xangai que o examinou ordenou-lhe que fizesse uma radiografia do tórax. A radiografia revelou, dizem-nos, um pesado envolvimento tuberculoso de todo um lado e parte do outro. Enquanto o médico examinava a radiografia ainda molhada e Watchman aguardava o resul­tado, apanhou a conversa do médico com a enfermeira-chefe em inglês: "Pobre sujeito; veja só isso! Lembra-se do último caso que tivemos com um quadro semelhante a este? Dentro de seis meses estava morto." Watchman foi convi­dado a entrar na sala. "Você está com os pulmões muito afetados por tuberculose", disse-lhe o médico. "Vá para casa, descanse e alimente-se muito bem. Isto é tudo que lhe cabe fazer. Você pode recuperar-se."

No navio que o levava para casa, Watchman estava em agonia mental. Fizera tantos planos; estava tão esperanço­so de realizar grandes coisas. Agora Deus havia dito "não" a tudo. Começou a fazer um auto-exame — suas ações, seus motivos, suas ambições. Um desejo o dominava agora: ser puro diante de Deus. Confessou seus pecados, buscando descobrir onde podia ter dado a Deus b ase para seu desa­grado. O problema que ainda lhe perturbava a consciência relacionava-se com a garota Ling Ai-king, de Sitiawan. Havia muito tempo descobrira que seu informante o enga­nara. Havia pecado, portanto, em não mostrar obediência filial desde o início? Havia magoado a moça e sua família ao dar ouvidos a histórias mentirosas? Havia interpretado mal a orientação de Deus nessa questão toda? Estava disposto a permanecer solteiro a vida toda por amor à obra? Parecia que nada mais podia fazer para corrigir as falhas.

Foi num dia, no começo do outono de 1926, que o navio costeiro navegou através dos estreitos do Min aproveitando a maré e o desembarcou em Pagoda Anchorage. Sua cabana em Ma-hsien, quando ali chegou, parecia um lugar deserto para voltar a ela. Todo o seu modo de vida ali subitamente parece-lhe tão ineficaz. Desejava clamar em protesto a Deus. Desejava questionar tudo.

Tentou acomodar-se ao trabalho. De uma caixa na cabana retirou o esboço de um livro que planejara escre­ver. Já fazia três anos, esboçara o primeiro rascunho de dois capítulos e meio sobre o assunto do homem de Deus — seu espírito, alma e corpo. Havia arquivado o projeto como teórico demais, porque em muitos pontos lhe faltava a prova da experiência. Mas, nesse intervalo muita coisa havia acontecido. Em sua própria vida cristã havia experi­mentado novas realidades e tinha visto outras almas li­bertadas do poder das trevas. Se Deus ia levá-lo em breve para si mesmo, Watchman achou que devia, de algum modo, pôr em forma escrita as coisas preciosas que Deus lhe dera. Sentou-se perto da janela, de onde contemplava o rio; e pegou tinta e pincel.

Mas, enquanto assim fazia, a febre apanhou-o. Não conseguia escrever; não podia nem mesmo dar forma aos seus pensamentos. Por isso, ajuntou a Bíblia e as páginas do manuscrito. Sabia agora que não podia vencer sozinho. Fechou a cabana uma vez mais, desceu ao cais em Lohsing-ta e tomou uma sampana que o levasse através dos 1600 metros de rio até Customs Point. Na hospedaria, Faithful Lucas estava à porta e deu-lhe as boas-vindas, levando-o para um quarto do alojamento dos homens. Ali deitou-se numa pequena cama de lona e deixou-se cair nas mãos de Deus.

Serviu-lhe de algum conforto que a hospedaria ainda estivesse ali. Anteriormente, seu pai já o advertira de que a escola industrial cujas propriedades ela ocupava e da qual fora diretor, estava prestes a reabrir as portas com novo pessoal de engenharia vindo dos Estados Unidos. Entretan­to, a Srt.a Barber havia partido para passar as semanas do verão quente na montanha Kuliang acima de Foochow, descansando inteiramente em Deus, para ali receber notí­cias de que as finanças da escola tinham sido liquidadas subitamente e no final das contas não iria reabrir. Esta acomodação estava ao seu dispor, para usá-la no seu trabalho.

As senhoras passaram a fornecer-lhe leite e boa ali­mentação e remédios quando havia disponíveis e os irmãos o atendiam. Os dias sombrios arrastaram-se em semanas enquanto continuava a perder peso e sentir que as forças enfraqueciam. "Ele era tão humilde", recorda Lucas, "tão desejoso de ser curado. Pedia-me todos os dias que o ungisse em Nome do Senhor e orasse." Quando se sentia tão exausto que não aguentava ler, sua memória de textos bíblicos vinha em seu socorro: "Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus" — mas, não se atrevia entretanto a completar a sentença. "Durante dois meses", observou, "vivi diariamente nas próprias mandíbulas de Satanás."

A Srt.a Barber vinha regularmente visitá-lo com a mensagem "Cristo é Vencedor". Todavia, embora conhe­cesse o valor do precioso sangue daquele que levou sobre si as nossas doenças para lavar os pecados e pudesse reivindicar cura sobre a enfermidade, verdadeiramente acre­ditava estar em falta e ter dado motivo a Satanás para resistir a Cristo em sua vida. Ela, porém, citava-lhe textos da Escritura que acentuavam a eficácia abrangente da ressurreição do Senhor até que, afinal, ele pôde assentir em fé: "Cristo é Vencedor!"

Lentamente, em resposta às orações de ambos, Deus interveio e a dieta e o repouso começaram a operar a mudança. Com a recuperação de alguma força, em breve estava pedindo de novo papel e tinta. Agora, enquanto Deus permitisse, deu-se ao trabalho que achava tão urgen­te. Como um repórter perseguido pelo prazo para entregar uma notícia ao jornal e fazendo o melhor que podia na última hora de desespero, derramou o coração numa detalhada exposição da vida espiritual do cristão e da estratégia da guerra celestial.

Finalmente, depois de alguns meses, estava pronto o primeiro volume que compreendia quatro partes de The Spiritual Man (O Homem Espiritual). Era muito analítico e expunha a salvação do crente — espírito, alma e corpo — em exaustivos detalhes. Em seu prefácio descreveu o livro como uma obra de psicologia bíblica, mas, advertiu os leitores de que usá-lo meramente como instrumento para auto-análise só os impediria de perder-se em Cristo. Como fruto de sofrimento, o livro era rico em introspecções, mas, faltavam os toques ilustrativos mais leves que tanto alen­tavam sua pregação. A obra devia muito à extensa leitura de Watchman, mais à argúcia de sua mente, mas muitís­simo ao seu profundo conhecimento das Escrituras e à sua abertura transparente ao impacto da mensagem que elas transmitiam.

No mês de Maio, embora ainda muito fraco, sentia-se bastante bem para viajar até Xangai com o manuscrito. Ruth Lee já se havia mudado de Nanking para lá; em Nanking, os levantes pró-comunistas haviam causado a morte de alguns missionários. Com seu excelente chinês literário, oferecera-se para dar os retoques finais no rascunho e prepará-lo para impressão.

Nanking devia tornar-se, agora, a sede do novo regime de Chiang Kai-shek, cujos exércitos, caminhando em direcção ao norte através de Hunan, haviam tomado Changshu o Hankow e a seguir rumaram para o leste a fim de controlar Xangai. Aqui, pouco se importando com a vida civil, Chiang pôs abaixo o movimento comunista entre os operários de Xangai mediante um implacável golpe no dia 12 de Abril em que certo Chou En-lai mal escapou ao massacre. A paz, de algum tipo, havia agora retornado à cidade.

Foi enquanto Watchman estava em Xangai dando os toques finais no seu projeto que teve uma experiência que afetaria profundamente sua futura exposição do tema do livramento do pecado. As palavras da Epístola aos Roma­nos sobre as quais havia pregado muitas vezes repentina­mente adquiriram vida. "Viu" a prioridade do fato divino sobre a experiência pessoal que flui da fé. Deixemos que conte o fato em suas próprias palavras.

"Durante anos após minha conversão ensinaram-me que o caminho do livramento era reconhecer-me morto para o pecado e vivo para Deus (Romanos 6:11). Reconheci desde 1920 até 1927 e o problema era que quanto mais o fazia tanto mais estava claramente vivo para o pecado. Simplesmente não podia crer-me morto e não podia produ­zir a morte. O pecado ainda me estava derrotando e vi que algo estava fundamentalmente errado. Assim sendo, pedi a Deus que me mostrasse qual era o significado da expressão 'Estou crucificado com Cristo'. É preciso que me fique claro que, ao falar deste assunto, Deus em nenhum lugar diz 'Você deve ser', mas sempre 'Você foi'. Entretanto, em face de minha constante falha, isto simplesmente não parecia possível a menos que eu fosse desonesto comigo mesmo. Quase cheguei à conclusão de que só as pessoas desonestas poderiam fazer tais declarações. Não obstante, sempre que busquei a ajuda de outros, eu era mandado de volta a Romanos 6:11. Prezava o ensino desta passagem, mas, não podia compreender por que nada resultava dela. Ninguém, veja bem, havia-me ressaltado que 'sabendo' (v. 6) deve preceder 'considerai-vos'  (v.  11).  Durante meses andei perturbado e orava ardentemente, lendo as Escrituras e buscando luz. Disse ao Senhor: 'Se não posso ser levado a ver isto que é tão fundamental, então deixarei de pregar. Desejo primeiro que este assunto me seja claro.'"

"Lembro-me de uma manhã — como poderia jamais esquecê-la! — estava sentado no andar de cima lendo Romanos e cheguei às palavras 'sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirvamos o pecado como escravos'. Sabendo isto! Como poderia eu sabê-lo? Orei: 'Senhor, abre-me os olhos!' E, então, num instante, vi. Antes estivera lendo 1 Coríntios 1:30: 'Mas vós sois deles, em Cristo Jesus.' Voltei a esta passagem e li-a de novo. 'O qual se nos tornou da parte de Deus'; em outras palavras: 'O fato de estar em Cristo Jesus é obra de Deus!' Era surpreendente! Então, se Cristo morreu e esse é um fato e se Deus me colocou Nele, então devo ter morrido também. De imediato vi minha unidade com Cristo: que eu estava Nele e que quando Ele morreu, eu morri. Minha morte para o pecado era assunto do passado e não do futuro. Era um fato divino que começava a ser-me compreensível. Arreba­tado de alegria, saltei da cadeira e desci correndo as escadas até ao jovem que trabalhava na cozinha. 'Irmão', disse, agarrando-o pelas mãos, 'sabe que eu morri?' Devo admitir que ele parecia perplexo. 'Que é que você quer dizer com isso?' exclamou; então prossegui: 'Você não sabe que Cristo morreu? Não sabe que morri com Ele? Não sabe que minha morte é um fato não menos verdadeiro do que este?' Oh, era tão real para mim! Sentia-me como que gritando minha descoberta pelas ruas de Xangai. Daquele dia até hoje nunca, por um momento sequer, duvidei do caráter decisivo das palavras: 'Estou crucificado com Cris­to; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim.'"

9

BARRO FRÁGIL

Agora Watchman sentia-se bastante forte para perma­necer nos alojamentos em Xangai e trabalhar nas outras seções do livro que estava seguro de que Deus desejava que completasse. Aos poucos, sob a tutela literária de Ruth Lee, as verdades que havia aprendido mediante tanto sofrimen­to e fracasso encontraram expressão escrita. Sentia-se feliz, também, por lançar um olhar silencioso na cena missionária. Aqui, pela primeira vez, entrou em íntimo contato com a grande interdenominacional China Inland Mission (Missão do Interior da China), fundada por Hudson Taylor, que por mais de sessenta anos havia estendido seu testemunho evangélico até aos confins do país. O testemu­nho desse organismo sobre a fidelidade de Deus recebeu nova dimensão pela amizade de Watchman com um missio­nário do departamento de contabilidade, Charles H. Judd, homem de larga experiência no campo, a quem prontamen­te se afeiçoou em espírito. Watchman ia com frequência à sua casa onde compartilhavam seu interesse comum nas Escrituras. A ele, Watchman falou, também, de suas espe­ranças de alcançar a China com o evangelho; e quando as forças permitiam, às vezes saíam juntos, acompanhados de um grupo de jovens, pregando pelas ruas e bairros da cidade.

Ruth Lee apresentou-o a uma querida amiga, Peace Wang (Wang Pei-chen), filha de um magistrado abastado, que tinha sido um dos seus alunos, cuja fé, como decidido ateu, Ruth buscara outrora destruir. Quando jovem, Peace havia encontrado o Salvador, mas, seus pais tentaram, por todos os meios, fazê-la renunciar, primeiro subornan-do-a com jóias, depois, induzindo-a ao suicídio e, finalmen­te, expulsando-a do lar. Depois de graduar-se pelo seminá­rio de Nanking, havia trabalhado como evangelista inde­pendente e era muito procurada nas escolas, onde seu vibrante testemunho era usado para conduzir muitos a Cristo. Agora, anos mais tarde, teve a alegria de conduzir sua própria mãe a ele.

Foi no lar de Peace Wang que num domingo nos idos de 1927, quatro deles — Watchman Nee, Charles Judd, Ruth Lee e a própria Peace — reuniram-se pela primeira vez para adorar a Deus no partir do pão. Continuaram com essas reuniões durante algumas semanas, mas, Watchman já sentira que devia dar um passo de fé e alugar instalações apropriadas para ensino bíblico e testemunho. "Comece do pouco", era o ditato chinês e casava bem com as palavras do profeta, "Porque, quem despreza o dia das cousas pequenas?'- Por fim, no começo de 1928, encontrou uma propriedade na Wen Teh Li, uma travessa que vira para o leste, saindo da Estrada Hardoon na Colónia Internacional. Ficava acima do nível de inundação ao norte da Bubbling Weel Road e cerca de cinco quilómetros ao oeste do Bund. A esta altura, diversas pessoas já se haviam unido ao grupo e eles mudaram-se para lá, reunindo-se no pavimento de cima, até que o espaço da loja embaixo pudesse funcionar como salão de cultos. Bem cedinho, aos domingos, Judd ia de bicicleta através da cidade do centro da C. I. M. em Woosung Road para estar com eles na Mesa do Senhor antes de voltar para as suas próprias responsabilidades na Igreja dos Cristãos Livres, dirigida pela Missão. Mas, a associação devia durar pouco, porque menos de um ano depois o homem em quem Watchman depositava tanta confiança foi chamado de volta para o Canadá. À luz da história subsequente, talvez se lamente que um vínculo tão potencialmente valioso entre este novo trabalho e os mis­sionários se removesse tão abruptamente.

Em junho de 1928, mês em que os exércitos de Chiang Kai-shek ocuparam Peking, as seis seções restantes da obra de Nee, The SpirituaJ Man, estavam prontas para o pre­lo. Havia completado a obra sob o mesmo senso de compulsão com que o havia começado. Foi o primeiro e o último livro que escreveu, pois, o restante de suas publi­cações foram todas transcrições de suas pregações e ensino. O terceiro volume continha um capítulo sobre "Doença" e mesmo que este tivesse resultado da experiência, logo se viu mergulhado numa nova provação do que havia escrito, como tantas vezes acontece com os servos de Deus. Por este motivo, anos mais tarde, dizia achar que The Spiritual Man era "perfeito" demais. A obra dava a ilusão de proporcionar respostas a tudo. "Não será reimpresso", disse em 1941. "Não que o que escrevi esteja errado, pois, quando o leio agora posso endossar tudo o que contém. Tratava-se de uma exposição muito completa da verdade; mas, exatamente aí reside sua fraqueza. Quando se lê o livro, não sobra nenhuma pergun­ta. Mas, Deus, descobri, não faz as coisas desse modo e muito menos nos permite que as façamos. Porque o perigo de sistematizar os fatos divinos está em que o homem possa entender sem a ajuda do Espírito Santo. Somente o cristão imaturo é que exige sempre ter conclusões intelectualmente satisfatórias. A própria Palavra de Deus tem este caráter fundamental de sempre e essencialmente falar ao nosso espírito e à nossa vida." A leitura de The Spiritual Man há-de deixar claro que essa obra deve ser lida hoje, não como um livro de estudo, mas, como registro de uma fase da peregrinação do autor. Não tinha, afinal de contas, com­pletado vinte e cinco anos de idade quando o escreveu.

O salão de reuniões de Wen Teh Li, na Hardoon Road, tinha acomodações para não mais que cem pessoas. Porém, mais tarde, em 1928, realizou-se aí a pequena, mas, signi­ficativa primeira Conferência de Xangai, congregando crentes da cidade e de outras partes durante o tempo de exposição da Palavra. As mensagens de Watchman a respeito do eterno propósito de Deus em Cristo satisfaziam com uma reação calorosa. Todavia, uma vez mais o mero esforço de pregar, aliado às exigências de aconselhamento das muitas pessoas que o procuravam, minou-lhe as forças. A tosse e o enfraquecimento voltaram e, nesse longo ano, ele passou a maior parte dos dias guardando o leito no esforço de readquirir energias. No começo de 1929, alguns assuntos de família demandavam sua atenção e aproveitou a opor­tunidade para embarcar para Foochow, ao sul e provar o que seria sua última reunião com Margaret Barber.

Com alguma hesitação, a Srt.a Barber anteriormente havia-lhe emprestado alguns escritos expositivos de C. A. Coates e de J. N. Darby. Achando que atendiam ao seu gosto, havia escrito a uma casa editora de Londres solici­tando mais obras desses autores e, como resultado, manteve um ano ou tanto de uma feliz correspondência com o Sr. George Ware, na Inglaterra, que pertencia a esta con­vicção estritamente darbista dos Irmãos de Londres. Sua própria busca de um padrão mais primitivo de adoração cristã, livre dos entulhos acumulados da tradição, desco­briu, agora, haviam-no levado a seguir linhas um tanto semelhantes às deles. O ato central de toda adoração aos domingos era a reunião vespertina em torno da Mesa do Senhor, na qual qualquer pessoa presente estava livre para expressar adoração espontânea e ações de graças a Deus, antes que todos participassem do pão e do vinho. Outros característicos centrais da vida da igreja eram o batismo dos crentes, a exposição da Palavra entre eles, sua assistência mútua, o cuidado da obra de Deus e o constante testemu­nho público que davam das ações salvadoras de Watchman em Cristo. Mas, também, à semelhança dos Irmãos, Watch­man havia começado a aplicar com o máximo de rigor as restrições do apóstolo Paulo com relação às mulheres, aconselhando-as a não pregar publicamente na presença de homens e insistindo com elas no sentido de cobrirem a cabeça nas reuniões da igreja. Visto que nenhuma mulher chinesa normalmente usava véu ou chapéu, estes tiveram de ser especialmente desenhados e tomaram a forma de um gorro preto de croché. As irmãs chinesas prontamente aquiesceram nesses regulamentos e exceto nas reuniões de mulheres, Ruth Lee e Peace Wang abriram mão de suas pregações largamente aceitas para o aconselhamento indi­vidual.

Mas, quando de volta a Pagoda, ele discutiu longamente com Margaret Barber sobre o aspecto erróneo de ela ministrar aulas bíblicas para rapazes, ela ouviu delicada­mente porém, manteve-se reservada. Ela, na realidade, tinha dúvidas quanto à posição doutrinária desses Irmãos de Londres e havia divulgado essas dúvidas a Faithful Lucas antes de ele partir para começar obra pioneira na costa próxima de Hinghwa. Eles eram, no entender dela, apenas um dos diversos desses grupos de reuniões mutua­mente exclusivos, cada qual alegando pureza de doutrina e prática por mais de um século e cada qual recusando a comunhão a todos os demais cristãos tendo esses pontos por base. Para Watchman, ela disse pouca coisa. Ofereceu-lhe, contudo, algumas publicações de outro pregador e comentarista inglês, T. Austin-Sparks, cujas mensagens sobre a cruz de Cristo, em parte devidas a Jessie Penn-Lewis, haviam-lhe, no ano passado, trazido bênçãos.

A breve visita que fez à Srt.a Barber enriqueceu-o, mas, com a incerteza de sua saúde, achou melhor não obrigá-la à hospitalidade. Tomou a barca fluvial para Nantai e com o diabo a assaltá-lo mediante o emprego de efeitos depres­sivos da tuberculose para prolongar seus ressentimentos interiores. "Você tinha um futuro brilhante, pleno de possibilidades, mas, abriu mão dele para servir a Deus. Isso foi esplêndido. Então, você teve um ministério promissor no qual, com seus dons, contava com o sucesso assegurado; e esse, também, você jogou fora. Para quê? Você renunciou a muita coisa; que é que você ganhou com isso? Às vezes Deus ouve as suas preces. Muitas vezes Ele mantém-se silencioso. Compare-se com aquele outro colega que agora está empenhado num grande sistema evangélico. Ele, também, tinha um brilhante futuro e nunca o deixou escapar. É espiritualmente próspero e Deus honra o seu ministério. Consegue almas salvas e elas prosseguem com Deus. E, mais ainda, parece um cristão, tão feliz, tão satisfeito, tão convicto. E você assim? Dê uma olhada em si mesmo!"

Ao desembarcar, foi para a casa dos pais à margem do rio, tributar-lhes o respeito devido e atender aos negócios que o haviam trazido ali. Fazendo pouco caso de sua própria indisposição, perguntou-lhes como estava passan­do. Em seu coração, estava preparado para dizer ou fazer qualquer coisa que Deus exigisse, desde que pudesse recu­perar a saúde. No dia seguinte, aventurou-se a sair pela cidade, evitando, com pesar, os dois lugares de reunião da igreja local há muito dividida. Abaixo da ponte, os cormorões pescadores estavam em atividade e ele parou para observá-los como costumava fazer quando criança, maravilhando-se da paciência das aves cativas. Caminhava morosamente, apoiando-se numa bengala.

De repente, ali na rua, quem deveria encontrar senão um de seus antigos professores do Trinity College? Cumprimentou-o, inclinando-se e o homem levou-o a uma casa de chá onde se assentaram para conversar. Após umas incisivas indagações, parou e olhou Watchman de alto a baixo. "Que é isto?" Exclamou com evidente consternação. "Pensamos muito em você na escola secundária e ali­mentávamos esperanças de que você realizaria algo impor­tante. Você quer dizer que ainda é o mesmo?"

Tradicionalmente, o estudante chinês tem elevada con­sideração por seu professor, retribuindo-lhe agradecimen­tos formais pelo sucesso académico; assim, a pergunta incisiva atingiu-o cruelmente em cheio. Ali estava um mestre a quem Watchman honrava instintivamente, mas, que via o aluno apenas como fracasso educativo. Intimidou-se diante do olhar penetrante do homem. Pois, era verdade: sua saúde estava combalida, suas perspectivas haviam-se ido; que tinha para exibir? E aqui estava seu velho professor de direito chinês a perguntar: "Você ainda não deu um passo sequer para a frente? Nenhum progresso, nenhuma carreira, nada?" Nesse momento, Ni To-sheng, já homem feito, estava a ponto de verter lágrimas.

E no instante seguinte (conforme nos conta), "Sabia em realidade o que significava ter o Espírito de glória repou­sando sobre mim. Pude levantar os olhos e dizer: 'Senhor, louvo-te porque escolhi o melhor caminho.' Para meu professor, era um desperdício total servir o Senhor Jesus; mas, esse é o alvo do evangelho — dar tudo para Deus."

Permaneceu em casa por algum tempo, contente pelo renovado contato com os pais e feliz por saber notícias dos outros membros da família, quase todos agora casados. Huo-ping ainda estava cheia de energia e saía sempre que as portas se abriam para oração e testemunho. Havia tido a alegria de conduzir seu idoso pai, o mercador, já no final da vida, a um conhecimento vivo do Salvador. Quando ele morreu, o irmão dela organizou um funeral taoísta, do qual ela se ausentou, enviando para acompanhar os bandos contratados e os pranteadores vestidos de branco uma liteira cortinada, vazia, mas, com uma enorme pedra. Quando a mãe soube disto, ameaçou enforcar-se; mas, finalmente ela, também, que vivera a vida toda ocupada consigo mesma, respondeu aos apelos da filha e encontrou o Senhor.

Huo-ping conta-nos que ela temia nessa ocasião que Watchman não vivesse muito tempo. Ela preocupava-se com ele; mas, porque tendia ao mesmo tempo a afirmar sua desaprovação do muito que ele fez, ele ressentia-se com as observações dela e fê-la saber disso. Ele repousou, contu­do e orou sem cessar pedindo forças para o trabalho ao qual se sentia certamente chamado. Por fim, Deus parecia dizer-lhe: "Este assunto é meu. Confie em mim e deixe o resto comigo!" Todavia, ele era tão insistente em que a vontade de Deus fosse salvaguardada que, por mais que tentasse, não conseguia relaxar-se e deixar a questão com Ele. Ainda se encontrava perseguindo-a obsessivamente em oração.

Um dia, ele saiu a caminhar na praia, meditando em sua difícil situação. Abruptamente parou. Enfiando sua benga­la completamente sob a areia, ele pisou sobre ela e pro­clamou: "Senhor, confio em ti. Deixei cair aqui a questão da minha cura!" Então se foi. Mal, porém, havia percorrido alguma distância, quando a velha ansiedade o esmagou de novo e fez ressaltar nele um suor frio. Involuntariamente, começou a orar uma vez mais, argumentando com Deus que sua cura era uma necessidade absoluta. De imediato se deteve, cônscio do que havia feito. Esta tentação vinha do Adversário e orar agora dessa maneira era submeter-se a ele. Virou-se e caminhou de volta até ao lugar onde havia enterrado a bengala na areia. Apontando para ela como testemunho, declarou: "Senhor, deixei cair aqui a questão da minha cura. Recuso-me tomá-la de novo!"

Concluídos os negócios que tinha de resolver, partiu de novo para Xangai. Uma vez mais em Wen Teh Li, ali­mentando suas forças, pregava o evangelho todos os do­mingos pela manhã, insistindo com os ouvintes na separa­ção do mundo e na total dedicação a Cristo, enquanto à noite se reunia com os crentes na Mesa do Senhor. Diversos irmãos devotos haviam-se unido ao grupo, dois dos quais, John Chang e um oftalmologista do hospital, Dr. Yu Cheng-hua, estavam agora em condições de cuidar das coisas em sua ausência. Pouco tempo depois, achava-se disponível uma propriedade contígua — 4,5 x 9 m como a primeira — perfazendo, quando aberta, um lugar mais amplo para reuniões, onde as irmãs se assentavam de um lado e os irmãos de outro de uma fileira de colunas. Com maior espaço no andar superior, o trabalho de publicação pro­grediu depressa. O Cristão (The Christian, durante algum tempo com o nome de Revival) crescia rapidamente em circulação e um novo periódico que circulou por breve tempo veio juntar-se a ele, The BibJe Record. A revista devia continuar a desempenhar um papel importante na extensão da obra.

Um efetivo e crescente auxiliar do testemunho do evan­gelho era o constante fluxo de excelente livretes e folhetos reproduzidos dos discursos evangelizadores de Watchman. Arrazoados com clareza e apoiados em termos simples, diretos, apresentavam de maneira clara o caminho da salvação e eram lidos e entendidos facilmente pelo homem comum. E, para atender a uma necessidade que crescia cada vez mais, Watchman traduzia hinos para uso nos cultos — alguns escritos pela Srt.a Barber, outros extraídos de um hinário dos Irmãos que havia recebido de Inglaterra. Ele mesmo, também, escreveu alguns hinos. Sua saúde ia melhorando agora. Os médicos confirmaram uma mudança para melhor em sua condição pulmonar e aconselharam um período de descanso no clima mais saudável de Kuling Mountain.

Kuling fica na província de Kiangsi, a dez quilómetros do Yangtze acima e bem ao sul do porto fluvial de Kiu-kiang. Os lados deste profundo vale na cordilheira de Lushan estavam salpicados de bangalôs de estilo ocidental, onde ass pessoas das casas de negócios de Xangai e de Hankow ia passar a temporada do verão quente, ou famílias de missionários se revezavam para recuperar as energias gastas. Lírios altos floresciam nos jardins sombreados e trilhas convidativas levavam a pontos interessantes entre as montanhas rochosas. Mais abaixo, fora das barreiras florestais que limitavam o território cedido, amontoava-se o mercado chinês do "Abismo", cidadezinha situada a mil e poucos metros acima do nível do mar.

Aconselhado a não tentar a subida da montanha, Watchman viu-se forçado a aceitar uma liteira. Não, nem a dez taéis (tael é unidade de moeda chinesa) por dia podia dar-se ao luxo de tratamento no bem equipado Sanatório da Missão; assim, uma senhora de Nanking havia arranjado acomodações para dormir numa casa de sua propriedade, desocupada, n. ° 103 do Abismo. Um mecânico e sua esposa, que moravam numa casa da vizinhança, ofereceram-lhe as refeições. Mesmo aqui em Kuling Mountain, os amigos o procuravam para conversações nas manhãs, mas, fez anunciar que estava "ocupado com outros misteres" no período da tarde — deitado de costas.

Pediram-lhe, também, que visitasse, enquanto estava ali, um jovem de Amoy, CL. Yin, que ultimamente voltara de seus estudos de engenharia em Boston, Massachusetts e estava gastando seus dólares norte-americanos no trata­mento de uma súbita infecção no peito. Sua mãe estava preocupada com o seu bem-estar espiritual; mas, quando Watchman o visitou no pavilhão do Sanatário, Yin conver­sou o tempo inteiro, enumerando extensamente as objeções intelectuais que ele fazia à crença de sua mãe. Repelido, seu visitante só pôde sorrir e perguntar enquanto se levantava para sair: "Essas dúvidas são autenticamente suas, ou tomou-as emprestadas para levantar uma cerca contra a salvação de sua alma?" A pergunta ficou. De volta a Amoy, incapaz de sacudi-la de si, Yin buscou outro homem de Fukien, John Sung, que recentemente voltara de Ohio com um diploma de doutor em filosofia e este homem de Deus levou-o ao Salvador.

Watchman, agora, tornara-se muito amigo de seus hos­pedeiros de refeição; mas, durante duas semanas, a não ser pedir uma bênção antes do alimento, nada lhes disse a respeito do evangelho. Então, um dia, em resposta a uma pergunta, disse-lhes o que o Senhor Jesus havia feito por ele. Ouviram atentamente, pois, seus corações estavam fa­mintos e em breve buscaram o Salvador em fé simples a fim de obterem o perdão de seus pecados. Com o novo nasci­mento, nova luz e alegria entraram em suas vidas. Watch­man, agora, lia a Bíblia com eles e explicava como o Espírito Santo de Deus, residindo neles, lhes abriria as Escrituras daí em diante.

Durante muitas semanas, recuperou-se em Kuling, fa­zendo passeios ocasionais a um mirante do qual podia ver bem ao longe, lá embaixo, o turvo Yangtze, pontilhado de velas paradas, serpenteando através daquela verdadeira colcha de retalhos. Estava repensando seu cristianismo e descobrindo onde reside seu verdadeiro descanso do cora­ção. "Quando, pela primeira vez, me dirigi ao Senhor", diz, "eu tinha minha própria concepção do que era ser cristão; e esforçava-me ao máximo para ser aquele tipo de cristão. Pensava que o verdadeiro cristão devia sorrir desde a manhã até à noite. Se, nalgum momento, derramava uma lágrima, deixava de ser vitorioso. Pensava, também, que o cristão devia ser infalivelmente corajoso. Se, em quaisquer circunstâncias, demonstrava o mais leve sinal de medo, não havia alcançado meu padrão." Mas, sua leitura seria do Novo Testamento levara-o de volta várias vezes à Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios, autobiografia do apóstolo, onde lia "como contristados..." e as palavras o prendiam. Um grande cristão que derramara "muitas lágrimas", que podia ficar "perplexo" e que podia até "desesperar da própria vida" devia ser muito humano. É possível, per­guntava, que Paulo desesperasse? Fora exatamente aí que ele próprio estivera. "Descobri", diz, "que Paulo era homem, o verdadeiro tipo de homem que eu conhecia." Começou a ficar-lhe claro o segredo do cristianismo que se resume nas palavras: "Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós." Agora, havendo aprendido a confiar em Deus continuamente para sua própria vida, chegou a um novo lugar de descanso em Deus.

Mas, a estação estava mudando e o tempo ia ficando mais frio. Chegou o dia em que devia apresentar suas despedidas aos amigos e voltar para Xangai. Desta vez, fazendo-o vagarosamente, desceu a escada de pedras ao lado da impetuosa torrente emoldurada na selva. Ao pé da montanha, a estrada com seus veículos de aluguel trouxe-o, de novo, a Kiukiang e aos navios fluviais.

Alguns meses mais tarde, em Wen Teh Li, certo dia avisaram-no de que havia lá embaixo um visitante que desejava vê-lo. Era seu hospedeiro de Kuling Gap. Estando em Xangai a negócios, viera narrar uma experiência que havia tido. Durante os meses do inverno, tinha o hábito de tomar vinho às refeições, muitas vezes com excesso. Com a volta do tempo frio, o vinho apareceu de novo na mesa; mas, naquele dia, quando curvou a cabeça para dar graças pela refeição, as palavras não lhe vinham à boca. Após uma ou duas tentativas em vão, dirigiu-se à esposa: "Que há de errado?", Perguntou. "Por que não podemos orar hoje? Abra a Bíblia e veja o que diz sobre beber vinho." Ela, porém, virava as páginas em vão, buscando luz sobre o assunto; e, é claro, podia demorar meses antes que pudes­sem consultar Watchman que estava distante, a muitos quiló­metros. "Beba seu vinho", disse a esposa. "Referiremos o assunto ao irmão Nee na primeira oportunidade." Mas, ainda o homem viu que não podia dar graças ao Senhor pelo vinho. "Leve-o daqui!" Disse finalmente; e feito isso, juntos pediram a bênção sobre o alimento que iam tomar.

O homem contou sua história a Watchman e então exclamou maravilhado:'"Irmão Nee, o Patrão Residente (li-mien tang-chia íih) não queria deixar-me tomar aquela bebida!" "Muito bem, irmão", respondeu Watchman. "Ou­ça sempre o Patrão Residente!"

Certo dia, em Maio de 1930, Watchman recebeu o cabograma de Pagoda Anchorage: "Margaret Barber pas­sou para o seu descanso, gloriosamente transportada pelo Senhor." Serene Loland, norueguesa, superintendente de enfermagem no Hospital de Fukien, descera apressada o rio para assisti-la durante o que devia ser sua última enfer­midade. Estava com sessenta e quatro anos. Da antiga equipe de sete irmãos, somente John Wang esteve presente no final; mas, Faithful Lucas e Simon Meek voltaram às pressas para unir-se a ele em proporcionar a ela um sepultamento apropriado na encosta acima do rio. Morrera qua­se sem sofrimento.

Enquanto recapitulava a vida de Margaret Barber, Watchman só podia dar graças a Deus. Muitas vezes, ficara perturbado com o isolamento dela em White Teeth Rock, preocupado porque, com o conhecimento vivo que possuía do Livro e do seu Autor, ela não era usada mais ampla­mente. Mas, os anos posteriores deviam provar o que já se tornava evidente, que muitos moços e moças promissores na obra evangélica deviam à instrução que dela receberam a sua riqueza espiritual. Em particular Wang Tsai (Leland Wang), atualmente em Hong Kong, movimentava-se am­plamente como evangelista entre as igrejas da Missão; e, no devido tempo, ia fundar na Indonésia a China Overseas Missionary Union [União Chinesa Missionária de Além-Mar). "Naqueles dias, quando me associei com a Srt.8 Barber", Watchman observaria mais tarde, "o Senhor usou-a de uma maneira muito real." Lembrava-se de um de seus hinos, que aprendera a amar:

Se o caminho em que viajo conduzir-me a uma cruz,

Se o caminho que escolheste levar à dor e à perda,

Permite que a compensação diária, seja, de hora em hora,

Comunhão sem sombra, bendito Senhor, contigo.

Sua preocupação era ver sempre que do lado dela nunca houvesse sombras; e quando ali chegou procedente de Foochow, a Bíblia muito manuseada que legou a ele, continha esta oração: "Ó Deus, concede-me uma revelação completa e ilimitada de meu próprio ser." E, na folha em branco dessa mesma Bíblia, havia escrito muito tempo atrás as palavras que ele, daí para a frente, faria suas próprias: "Nada desejo para mim mesma; tudo desejo para o Se­nhor."

CAPÍTULO 10

DESENCANTO

Durante dez dias, em Dezembro de 1930, Watchman Nee e John Chang gozaram de alguma feliz comunhão cristã com um visitante vindo da Inglaterra. O Sr. Charles R. Barlow, de Peterborough, era um crente associado com o "Grupo de Londres", dos Irmãos e suas viagens a serviço de uma firma britânica de engenharia trouxeram-no a Xangai. Após conversas com eles e com outros, observou em cartas que escreveu para o lar: "Alguns desses caros irmãos são muito sinceros e sedentos da verdade. Watchman Nee é, indiscutivelmente, o homem que sobressai entre eles. Ele está muito além de todo o restante. Conta apenas 28 anos, mas, tem boa educação e é possuído de acentuada capacidade. É um obreiro infatigável e lê muito. É, também, um grande estudioso de J. N. Darby e, evidentemente, tem sido muito ajudado por seus escritos." Para Watchman, este visitante satisfazia brevemente uma necessidade que havia sentido desde a partida de C. H. Judd — a necessidade de um ocidental maduro e sábio — e este não era missionário, mas, simplesmente "um amado colega cristão" em quem podia confiar como amigo. Fala afetuosamente da ajuda que recebeu dele. Dentro em breve, o Sr. Barlow foi convi­dado a falar a mais ou menos quarenta crentes, incluindo um pequeno grupo de estudantes universitários, em sua reunião costumeira, às 16 horas, diariamente. No domingo à tarde, esses números subiam para oitenta ou noventa. O relatório que apresentou aos seus amigos cristãos na Inglaterra era ardorosamente encorajador.

O que mais impressionou este visitante foi o conheci­mento que Watchman tinha do texto bíblico. "Ao obser­var", diz, "que ele não havia notado determinda expressão em qualquer parte do Novo Testamento, ele casualmente acrescentava: 'e eu conto completar a leitura do Novo Testamento uma vez por mês'." Não temos pormenores de seu plano de leitura do Antigo Testamento, mas, Faithful Lucas preservou uma impressão similar. Estando em Xan­gai com sua esposa, Eunice, alguns meses mais tarde, conta como Watchman os visitou tarde da noite com sua Bíblia na mão. "Aonde vai você pregar a esta hora tardia da noite?" perguntou Lucas. "A parte alguma", foi a resposta, "mas, para hoje ainda tenho de completar a leitura de alguns capítulos." É certo, também, que a diligência desses pri­meiros dez anos foi preservada nos muitos anos que ainda estava pela frente; e Witness Lee podia dizer dele muito tempo depois: "Nunca encontrei um homem tão bem versa­do nas Escrituras quanto ele."

Mais tarde, nesse ano, nas instalações ampliadas de Wen Teh Li, realizaram a segunda conferência de Xangai. Um observador da C. I. M. fala desses "jovens cristãos levando avante uma grande obra separada das Missões", que esta conferência durou doze dias e que passavam até quatro horas diariamente em oração. Huo-ping, numa breve visita a Hardoon Road, mais ou menos nesse tempo, escreve: "O que meu filho pregava era tão profundo que ia além da minha compreensão. Eu era orgulhosa demais para fazer perguntas, de modo que pouca coisa pude receber deles; mas, contemplando a vida que eles levavam, curvei-me até ao chão em sinal de respeito." Para esta ocasião, os hinos que, até agora, haviam aparecido apenas em forma de panfleto, foram corrigidos e publicados como Hsiao Chun Shih-ko (Pequenos Hinos do Rebanho).Muitas de suas 134 traduções e cânticos originais, cantados, muitas vezes, dis­cordantemente, mas, sempre com entusiasmo, deviam en­contrar franca aceitação nos lares e nas igrejas e levar suas ideias bíblicas a lugares distantes. Mas, a publicação teria um efeito colateral imprevisto.

Watchman sentia horror a rótulos denominacionais como anglicano, luterano, batista, com suas conotações nacionais, pessoais ou processuais e esforçava-se no senti­do de limitar-se aos simplíssimos termos bíblicos. Falava da vida cristã como "O Caminho" e dos crentes como cristãos; o lugar da reunião local era Salão da Assembleia da Igreja; o periódico era The Christian; o escritório de literatura era Casa Publicadora do Evangelho. Para a tradução de hinos, a fonte de Watchman havia sido o hinário dos Irmãos, Hinos Para o Pequeno Rebanho. Seu título, também, havia apelado para ele como bíblico, memorável, despretensioso e eficaz em chinês. Popularizou-se, contudo, muito bem; e dentro de um ano ou tanto, a congregação de Hardoon Road seria apelidada pelos adeptos da Missão de Hsiao Chun, "o Pequeno Rebanho". Embora o título do livro fosse rapida­mente mudado simplesmente para Hinos, o dano estava feito; o rótulo pegou. À medida que o trabalho de Watch­man se espalhava pela China, todos os grupos locais de crentes associados com o trabalho foram, daí para a frente, apelidados pelos observadores com um nome que seus membros deploravam e que eles próprios nunca emprega­vam: "as Igrejas do Pequeno Rebanho".

Mal havia terminado a conferência de Xangai quando irrompeu distúrbio na cidade. A ocupação japonesa das Três Províncias Orientais (Mandchúria) havia despertado a ira dos chineses que, agora, encontrava expressão num boicote que abrangia todo o país aos artigos japoneses. Em Xangai, os japoneses exigiram ação das autoridades mu­nicipais para conter esta onda; e, então, para proteger seus patrícios, desembarcaram soldados da marinha que cau­saram muito estrago. As hostilidades cessaram em Maio, mas, foi um breve sabor antecipado das coisas por vir.

Miraculosamente, a saúde de Watchman ia afinal me­lhorando. Deus havia levantado Sua mão e Watchman estava livre não só para ensinar a Palavra, mas, também, para empreender mais viagens. Foram anos de inundações devastadoras e de muita perda de vida na bacia do Yangtze; mas, nas muitas pequenas cidades ribeirinhas, a obra estava crescendo, bem como na capital nacional de Naking e em Hankow, rio acima. Todas essas cidades estavam incluídas em suas viagens. Noutra ocasião, visitou Peiping ("paz nortista", o novo nome da outrora capital, Peking) e aí teve seu primeiro contato amistoso com o corajoso pastor fundamentalista, Wang Ming-tao.

Em Tsingtao, sobre a costa de Shantung, encontrou o assim chamado Movimento dos Dons Espirituais (Ling En), que era muito ativo na Província. Via com cautela seu emocionalismo descontrolado e métodos extravagantes de despertamento; e, no verão de 1932, publicou em sua revista Revival uma série de artigos que distinguiam entre o batismo do Espírito divinamente dado e os efeitos secun­dários externos tidos como essenciais por alguns de seus expoentes. Cita com aprovação as observações da Srt.Barber: "Não há necessidade de que as pessoas sintam o poder que vem do Espírito Santo. Ele não é concedido para essa finalidade. O dever do homem é obedecer a Deus." No retiro de Chefoo, em Shantung, encontrou-se, também, pela primeira vez, com Witness Lee. Natural daquela cidade, Lee vinha de pais budistas e fora convertido em 1925 aos vinte anos de idade. Desde 1927, recebia a revista de Watchman e desenvolvia com rapidez o dom de pregar e de expor a Bíblia. Futuras circunstâncias deviam aproximar os dois num período crítico.

O efeito desta nova liberdade de movimento foi trazer novas pessoas em contato com o redator do pequeno jornal amplamente lido. Embora alguns vissem cautelosamente as reuniões de Hardoon Road como sectaristas, outros, nos novos círculos, em breve descobririam os extraordinários dons de Watchman para apresentar a Cristo. Em Tsinan sobre o rio Amarelo, capital da Província de Shantung, alguns da direção da Universidade de Cheloo costumavam convidar um evangelista ou professor de Bíblia, anualmen­te, para reuniões especiais. Cheloo era uma Universidade da União que atraía estudantes de muitas províncias e era notória por seu pensamento avançado e teologia liberal. Durante alguns anos, porém, um pequeno grupo do pessoal administrativo evangélico reunia-se semanalmente na casa do Dr. Thornton Stearns e sua esposa, Carol, a fim de orar por um reavivamento espiritual. Por ocasião das férias, levavam grupos de estudantes a um retiro nas colinas, para o qual convidavam como oradores os melhores líderes cristãos chineses e evangelistas disponíveis. O Dr. Stearns, da Missão Presbiteriana, Catedrático de Ortopedia na Faculdade de Medicina e homem muitíssimo humilde, tomava a liderança nesses arranjos.

Em Dezembro de 1931, o Dr. John Sung, de Hinghwa, teve oportunidade de passar por Tsinan durante uma viagem de pregações; e depois de uma reunião no lar dos Stearn na qual falou, cerca de quarenta ou cinquenta estudantes encontraram a Cristo dentro de poucos dias. O Espírito de Deus começou a operar entre o corpo estudantil na convicção do pecado e os Stearns, a quem vinham em busca de aconselhamento, tinham muita prática sobre quem convidar para o futuro Retiro de Primavera. A escolha unânime recaiu sobre Wang Tsai, mas, devido a compromissos em Java, não se achava disponível; então, um estudante de Foochow apresentou o nome de Watchman Nee como um homem que tinha mensagem satisfatória. Este pouco conhecido pregador de Xangai não fazia reservas de datas e dizia-se que era difícil de deixar-se submeter; mas, depois de orar, o Sr. Stearns escreveu convidando-o e ele sentiu-se livre para aceitar o convite.

Veio e Deus esteve com ele quando, durante uma semana no auditório da Faculdade de Medicina, proclamou o caminho da vida em reuniões excepcionalmente apinha­das de pessoas. O reavivamento por longo tempo esperado espalhava-se à medida que mais e mais estudantes encon­travam o Salvador. Entre muitos deles, a experiência devia tornar-se uma lenda, pois, o próprio céu parecia abrir-se para seus corações. Depois disso, um grupo de mais de uma centena de estudantes reuniu-se num belo local da mon­tanha na série de montanhas acima da cidade de Taian, tradicional sítio do túmulo de Confúcio. Estudaram a Bíblia e oraram e antes do fim, um grande grupo foi batizado numa lagoa fria formada por uma torrente da montanha, publicamente confessando a Jesus como Senhor.

Entrementes, o entusiasmo sentido pelo Sr. Charles Barlow durante sua visita a Xangai fora comunicado ao círculo de reuniões com o qual estava associado no mundo de fala inglesa. Seu relato criou sensação. Foi percebido entre eles que aqui na China estava uma obra original do Espírito de Deus — em seus começos, certamente, mas, em linha paralela com a deles. O companheirismo no qual a obra encontrava expressão parecia-lhes baseada na verda­de conforme a viam e refletia princípios que haviam herda­do de seus próprios começos um século antes. Por conse­guinte, resolveram enviar uma delegação a Xangai para encontrar-se com os irmãos chineses e, a partir de Maio de 1932, a correspondência com Watchman Nee e com os seus associados destinava-se a preparar o caminho para tal visita no mesmo outono.

Os chineses reagiram afetuosamente e foram feitos os arranjos para receber os visitantes em Hardoon Road nas reuniões de Novembro. Os oito hóspedes estrangeiros, seis homens e as esposas de dois deles, chegaram a Xangai no dia 23 de outubro e foram acomodados num hotel na Concessão. O Sr. Charles Barlow e um californiano que se juntou a ele em Vancouver traziam a boa vontade dos crentes da costa do Pacífico e da Grã-Bretanha; e além de outro casal inglês, havia também quatro delegados da Austrália. Ficaram muito comovidos pela calorosa hospi­talidade chinesa, à qual corresponderam com sincera afeição. Watchman sentiu-se adoentado por ocasião da chegada deles, mas, em breve estava em condições de participar nas duas semanas de conversações amistosas. Na primeira semana, os visitantes solicitaram ser dispensa­dos de partir o pão com os chineses no Dia do Senhor, enquanto oravam e debatiam, pesando cuidadosamente o que tinham visto e aprendido nas conversações, para que não houvesse alguma falha. Como podiam associar seus amigos em casa com algo que Deus poderia não aprovar? Mas, havia muita coisa para tranquilizá-los: a atitude de adora­ção e de obediência às Escrituras, as orações, a evidente autoridade dos irmãos, a mansidão e silêncio das mulheres — e sua decorosa cobertura na cabeça.

Havia sido planejado que uma semana de conferência deveria seguir-se às reuniões de domingo no dia 6 de Novembro e, para isto, quarenta irmãos representantes de lugares afastados estavam convergindo para juntar-se aos obreiros de Xangai. Além disso, havia algumas reuniões públicas. Watchman tinha escrito anteriormente ao seu pai pedindo-lhe que adquirisse e despachasse de Foochow duzentas cadeiras de madeira a $3 (dólares] cada uma para suplementar os existentes bancos sem encosto. Já havia escrito, ao recuperar a saúde, à sua mãe pedindo-lhe desculpas por havê-la tratado com frieza quando ele esteve tão doente e ela havia respondido com uma carta severa enumerando os crimes dele, esquecendo-se, ela admite, de suas próprias falhas como mãe. Agora, ela resolveu emendar-se. Estando a compra das cadeiras fora do campo de Nee Weng-hsiu, ela própria havia feito o pedido e confiado aos fabricantes, quando prontas, a entrega a um despachante. A esta altura estavam quase perdidas, quando um ganancioso fiscal da alfândega tentou ficar com as cadeiras apreendidas e embolsar uma taxa de 50 dólares. O marido dela conseguiu liberá-las, mas, uma vez no mar, ela teve de lutar contra cobranças impossíveis impostas pelo capitão do navio a quem John Wang havia convencido de transpor­tá-las como carga de convés. Então, fora da embocadura do Yangtze na manhã do 5.° dia, o navio ficou parado na neblina na passagem de Steep Island e ela perdeu as esperanças de entregá-las a tempo. Mas, com a companhia de dois amigos, orou publicamente a Deus pedindo que dispersasse a névoa, visualizando, diz, as cadeiras todas colocadas em posição em Hardoon Road. A neblina foi levantada, mas, então à chegada do navio no rio Whangpoo, a alfândega uma vez mais impediu o seu descarregamento no Bund. Tarde naquela noite, os irmãos tiveram de recupe­rá-las da praia de Pootung. Entretanto, na manhã seguinte, estavam todas no lugar quando começou a reunião e Huo-ping mesma ajudou a espanar o pó e dispô-las em ordem!

Agora, os visitantes estavam seguros diante de Deus de que nada havia para impedir que suas assembleias se identificassem com essas da China e haviam transmitido por cabograma seus sentimentos aos representantes em Vancouver e em Brisbane, "duas assembleias vizinhas". Em resposta, aprovada a comunhão deles com os irmãos chineses, agora na reunião vespertina do domingo 6 de Novembro uniram-se aos chineses na participação da Mesa do Senhor. Foi um momento de indizível alegria.

Na manhã seguinte, as reuniões da conferência especial prosseguiram em meio a felicitações mútuas. Os principais oradores foram Charles Barlow e W. J. House, tendo Nee como intérprete. Faithful Lucas estava com outros que vieram do sul; e havia muitos que subiram do Yangtze e do norte, incluindo dois irmãos por nome Gih, de Kiangpei, anteriormente pertencentes à Missão Presbiteriana onde eram conhecidos como "os Moody de Kiangsu do norte". "Alguns dos irmãos vindos de outras partes", observaram os visitantes, "são homens de valor, ouro puro. A obra está-se espalhando e eles têm muito para encorajá-los e muito para exercitá-los."

Diversos irmãos de Kiangsu presentes convidaram-nos a visitar seus grupos de igreja, mas, esta área do norte havia passado por distúrbios naquele mesmo ano e era grande o risco que seus convidados corriam de ser capturados por bandidos. Contudo, dois do grupo. W. J. House e C. R. Barlow, haviam manifestado o desejo de visitar o cenário dos começos da obra. Enquanto, pois, tomaram o navio para Amoy para uma reunião de diversos grupos naquela região, Faithful Lucas foi adiante para encontrar-se com John Wang e estender-lhes as boas-vindas a Foochow. Foi enfrentando um vento de monção que os visitantes, afinal, chegaram a Foochow onde foram recebidos por Huo-ping e seu marido em sua residência à beira-rio. As reuniões, ali, foram grandes, chegando a 250 almas e voltaram a Xangai muito animados e com seu senso de história enriquecido.

O relato que levaram para casa foi tão favorável que, na primavera de 1933, vieram convites para Watchman visitar a Inglaterra e os Estados Unidos naquele verão, levando consigo o Dr. Yu ou Faithful Lucas. Yu estava doente com tuberculose na ocasião e Lucas encontrava-se longe, mas, Watchman nada disse a nenhum deles de que estavam incluídos no convite. Tinha algum pressentimento de pro­blemas pela frente e pensou em si mesmo como o atalaia de seu povo? Seja como for, depois de orar com os irmãos, resolveu ir sozinho. A passagem para a Europa possibili­tava uma paragem em Singapura e ele interrompeu a viagem ali o tempo suficiente para visitar Sitiawan e fazer uma visita de cortesia aos pais Ling, um gesto que colocou seu selo sobre a paz que Deus havia recentemente posto em seu coração.

A longa viagem por mar significa tempo para repouso e estudo e ele chegou à Inglaterra no final de Junho, muito revigorado. Foi recebido por Charles Barlow, que o levou para sua casa de Peterborough. Visitou reuniões tão dis­tantes umas das outras como Escócia e Islington, Croydon e Ventnor e provou o calor do amor expresso dentro do grupo. Por toda parte demonstraram-lhe tremenda hospita­lidade, pois, sua vinda representava grandiosa novidade para os crentes deste grupo muito estrito e limitado dos Irmãos que não tinham, eles mesmos, nenhuma obra missionária. Foi convidado a falar sobre o trabalho e, naturalmente, a participar na Mesa do Senhor e às vezes ministrar a Palavra, embora, nesta última parte, seu inglês deve tê-lo limitado. Também teve longas conversas com homens experientes entre eles. Os crentes chineses eram considerados por seus hospedeiros como cristãos muito imaturos que necessitavam de muita assistência. Além do mais, ele próprio, embora contando trinta anos de idade, tinha a aparência de simples estudante; e com seu respeito nativo pela sabedoria e experiência, estava bastante pre­parado para ouvir conselhos. Ele os assombrou, porém, com o tipo de perguntas práticas que ele e seus irmãos em Xangai tinham de enfrentar regularmente, tais como "Que­ro ser batizado, mas tenho duas esposas; que devo fazer?" Aos amigos mais jovens falou despreocupadamente da regra simples chinesa para reuniões: "Não há Bíblia, não há refeição matutina!" Ou os regalava com histórias dos "demônios-tesouras" que abriam buracos nos guarda-chuvas de papel oleado para permitir a passagem da chuva. Mas, na maior parte do tempo, quando não estava envolvi­do em discussões, ficava silenciosamente ouvindo e obser­vando. Nunca deixou de respeitar a riqueza de conheci­mento espiritual encontrada dentro deste grupo, mas, ficava muito perturbado pela complacência que lhes permitia mais de uma vez ouvi-los dizer coisas tais como: "Existe algo no campo da revelação espiritual que nós, os Irmãos, não temos? Ler o que outros cristãos escreveram é um desper­dício de tempo. Que é que qualquer um deles tem que nós não temos conseguido?" Uma vez, numa conferência em Park Street, Islington, quando convidado a acrescentar seu comentário a uma longa discussão doutrinária a que ouvi­ra, deu vazão à sua crescente impaciência. Pondo-se em pé, com sua estatura de 1,80 m, braços abertos em toda a sua extensão, disse: "Meus queridos irmãos, vosso enten­dimento da verdade é vasto, mas, em meu país ele vos seria de pouco proveito" e, juntando o dedo indicador com o polegar, "se quando surgisse a necessidade não pudésseis expulsar um demónio!" Mais tarde, sentiu-se culpado de seu arroubo, mas, este refletia sua própria consciência da realidade do Invisível. E ao deixar a Grã-Bretanha, obser­vou com franqueza ao seu amigo Charles Barlow: "Seu povo tem luz maravilhosa, mas oh! tão pouca fé!"

Em suas viagens mais longas pela Grã-Bretanha, o Sr. Barlow ou alguém mais o acompanhava, como quando visitou Aldeburgh para ver o veterano George Cutting, autor do amplamente usado livrete evangélico, Segurança, Certe­za e Contentamento, que nessa data havia chegado a trinta milhões de exemplares. Certa vez, porém, pediu licença para ausentar-se durante uma semana a fim de visitar Londres a negócio, mas, durante essa semana, sem dizer nada aos seus anfitriões, deu uma breve fugida do círculo íntimo em que se movimentava. Naquele domingo foi ao Centro da Comunhão Cristã, em Honor Oak Road, no sul de Londres, para prestar culto com um grupo evangélico inde­pendente, que se congregava sob o ministério de T. Austin-Sparks, ex-ministro batista. Este amigo, a quem esperava encontrar, estava fora, no norte; mas George Paterson e outros deram-lhe uma afetuosa acolhida e desfrutou da comunhão e ministério da Palavra e recebeu com alegria o pão e o vinho.

Duas semanas mais tarde, terminou sua estadia em Inglaterra. Com esta única exceção, havia permanecido exclusivamente dentro do círculo íntimo de um único grupo de cristãos e não havia feito contato de espécie alguma com o campo mais amplo da vida e testemunho da igreja evangélica na Grã-Bretanha. James Taylor, de Brooklyn, N. Y., um homem mais idoso, cuja palavra por toda parte carregava peso quase pontifical com este "Grupo de Lon­dres" dos Irmãos e que havia estado durante algumas semanas em Londres, planejava agora acompanhá-lo de volta através do Atlântico. Taylor era um inquiridor habili­doso e penetrante e deleitou-se em encontrar Nee muito aberto e livre com ele sobre a obra chinesa, delineando suas condições locais e necessidades espirituais e pedindo muito conselho. Quando entraram no terreno doutrinário, porém, especialmente no campo da profecia, verificou que Nee nutria muitas ideias da segunda vinda de Cristo que não poderia aprovar e que num questionamento pos­terior só poderia considerar como erro flagrante." Che­garam a Nova Iorque, onde Nee foi recebido com o maior carinho e falou numa reunião em Westfield sobre o assunto do livramento do pecado, "que a maioria achou mara­vilhoso", mas, que, no juízo de Taylor, "foi defeituoso dou­trinariamente".

Entrementes, na Grã-Bretanha, um irmão idoso do gru­po teve oportunidade de ver-se sentado, num trem que ia para Glassgow, em frente de uma adolescente que lia com diligência a Bíblia. A conversa com ela trouxe à tona o fato de que ele adorava na reunião de Honor Oak Road. Ele indagou mais e soube no devido curso que um chinês muito agradável estivera ali no fim-de-semana. Alguém havia falhado em explicar os movimentos de Watchman? Resol­veu investigar. Naquela noite George Paterson recebeu um telefonema de um estranho: "O senhor conhece um chinês por nome Nee? Esteve em comunhão com vocês? Ele partiu o pão com vocês?" A cada pergunta respondia com um prosaico "Sim" e, então, o telefone foi desligado na outra extremidade da linha. "Alguém está com problemas", pensou.

Foi expedido um cabograma para Taylor, em Brooklin, mas, no momento Watchman estava em New Haven. Seu principal motivo para cruzar o Atlântico tinha sido passar alguns dias com Thornton e Carol Stearns, que estavam em casa gozando férias com a família, vindos de Tsian. Naque­le domingo — em desafio ao expresso conselho de Taylor — partiu o pão, como havia feito na China, com a família Stearns e alguns outros em sua casa. "Ele não admitiu violação de princípios", escreveu Taylor entristecido. Pres­sionado quanto à sua posição no assunto, Watchman, que no momento estava sob considerável tensão, declinou dizer ou escrever qualquer coisa até que se tivesse aconse­lhado com seus cooperadores em Xangai. Os fatos, confor­me Taylor os via, foram passados adiante para Vancouver, onde Nee devia comparecer a reuniões especiais.

Em princípio, as reuniões do "Grupo de Londres" esta­vam isoladas de todas as demais reuniões de cristãos. Em essência, qualquer pessoa de fora do grupo estava proibida de manter comunhão com qualquer pessoa de dentro, a menos que concordasse daquele tempo em diante a restrin­gir seus movimentos a reuniões dentro do grupo. Esta norma foi levada também às relações sociais comuns e mais tarde devia ser reforçada com crescente rigor por James Taylor Jr., até início da década de sessenta, quando o movimento estava agonizantemente rompido sobre este problema.

Em Vancouver, entretanto, Watchman foi recebido com o máximo carinho e convidado a falar nas reuniões pla­nejadas. Parece ter gozado de verdadeira liberdade, pois, pelo menos um jovem canadense encontrou o Senhor e ali, como também em Inglaterra, muitos ainda se lembram dele com saudade. Enquanto esteve ali, renovou, também, a camaradagem com seu caro amigo C. H. Judd, da China Inland Mission; e também visitou Lena Clarke que, havendo trabalhado 23 anos com a C. I. M. em Szechwan, havia renunciado à Missão em 1929 e agora devia voltar à comunhão com a reunião dos cristãos em Hardoon Road.

Durante a longa e tranquila viagem para casa através do Pacífico, como se para colocar seu selo sobre o modo como estava conduzindo seu servo, Deus deu a Watchman uma nova revelação de Cristo como sua vida. Durante longo tempo havia estado agudamente cônscio de uma falha em sua conduta na questão de agradar a Deus. Deixemos que conte, de novo, o fato em suas próprias palavras. "Quando era jovem cristão, várias pessoas elogiaram-me pela minha vida semelhante à de Cristo, mas, alguns anos depois descobri, para minha consternação, que meu génio, muitas vezes, estava tirando o melhor que eu tinha. Mesmo quando eu procurava controlá-lo de sorte que não se inflamasse bruscamente, estava fervilhando dentro de mim; e para aumentar minha aflição e desilusão, aqueles bondosos cristãos que me recomendavam pelas qualidades semelhan­tes às de Cristo que anteriormente os havia impressionado, não perdiam oportunidade de dizer-me como minha presen­te vida se comparava desfavoravelmente com o meu passa­do. Era tão humilde e tão paciente, diziam, tão gentil e amável — mas agora...! O pior de tudo era que suas críticas não eram infundadas. Podia tê-los superado de muito com minhas próprias histórias de fracasso. Mas, como se havia desenvolvido este estado de coisas? Qual era o problema?"

Diz que costumava pensar em Cristo como uma Pessoa à parte, deixando de identificá-Lo de um modo prático com a hoste de qualidades dignas de louvor, tais como mansidão, paciência, amor, sabedoria, santidade, as quais sentia for­temente faltar-lhe. "Por dois anos inteiros andei tateando nesse tipo de escuridão, buscando acumular como posses­sões pessoais as virtudes que achava deveriam compor a vida cristã (da mesma forma como antes de minha conver­são costumava acumular coisas mundanas) e não chegando à parte alguma no esforço. O problema era que havia estado acumulando coisas, coisas espirituais, e Deus inter­viera para aliviar-me delas a fim de abrir caminho para a vida de Seu Filho.

"E então, certo dia em 1933, a luz do céu brilhou para mim. Lendo de novo 1 Coríntios 1:30, de repente vi que Deus ordenou a Cristo que Se tornasse para mim em Sua ple­nitude. Que diferença! Oh, o vazio das 'coisas'! Retidas por nós fora da relação com Ele, são mortas, pois Deus não está buscando uma exibição de nossa semelhança a Cristo, mas, uma manifestação do Seu Cristo. Uma vez que vi isto, estava aí o começo de uma nova vida para mim. Ele próprio é a soma das coisas divinas e, assim sendo, era a resposta para mim a todas as exigências de Deus e isso, não como um assunto para a minha futura descoberta, mas, como um fato para minha presente aceitação. Minha vida diária como cristão resumiria-se, daí para a frente, na palavra 'receber'."

CAPÍTULO 11

NOVOS HORIZONTES

Lá na China aguardavam-no imensas tarefas. A cor­respondência entre os irmãos de Xangai e seus amigos de outrora no Ocidente devia arrastar-se dois agonizantes anos até sua triste conclusão, porém, ela não deve, entre­mentes, ter permissão para desviá-las da extensão do evangelho ou da instrução e treinamento dos servos de Deus. A força do trabalho de Watchman Nee reside no fato de que todo crente era um obreiro não-assalariado e todos os que se mudavam para uma nova cidade para fazer negócio ou a serviço do governo podia fazer do seu lar um ponto de oração e um novo centro de testemunho. A China estava abrindo depressa sistemas rodoviários e novas ferrovias e o rápido desenvolvimento dos serviços aéreos significava que viajar pelo país estava-se tornando cada vez mais livre. Fez palestras no Ano-Novo aos irmãos a quem esses novos campos se abririam, no sentido de orientar-lhes o pensamento sobre a formação da igreja. Havia observado muitas anomalias no Ocidente e estas o levaram a examinar novamente o Novo Testamento, onde via a confirmação do princípio simples que verificara operando satisfatoriamente entre seus amigos Exclusivos — que uma cidade ou aldeia deveria ter uma só igreja e não diversas.

Mas, estava inquieto. Por algum tempo desejara visitar as remotas províncias de Kweichow e Yunnan, ao sudoeste, a fim de adquirir um conhecimento de primeira mão das pessoas e de suas necessidades. Agora, na primavera de 1934, apresentava-se esta oportunidade.

Um homem chamado Ma aceitara recentemente o Se­nhor e por ocasião do seu batismo havia tomado o nome de Shepherd Ma (Ma Muh). Tinha uma empresa bem-sucedida centralizada no porto de Yangtze de Yochow em Hunan, com interesses que se estendiam pela província de Kwei­chow. Irmão muito franco, possuía um automóvel Ford e um espírito aventureiro, ao qual se acrescentava, agora, um zelo recém-encontrado pelo evangelho. Juntos os dois planeja­ram uma viagem até ao limite extremo da nova rodovia sulista. Watchman tomou o navio para Yochow a fim de juntar-se a ele na realização do projeto.

Carregando o automóvel com latas de gasolina e evan­gelhos, partiram para o circuito da grande tigela de arroz de Hunan — primeiro em direção ao sul até à capital provincial de Changsha e depois para noroeste até Chang-teh. Viajavam sem pressa. Shepherd Ma dirigia o carro, enquanto em cada travessia de balsa ou onde quer que se reunissem uns poucos transeuntes, Watchman erguia-se no carro estacionado e lhes pregava Cristo.

O rio Yuan, navegável, tem sido tradicionalmente a rota do comércio com o sudoeste; e a estrada que tomaram subia pelo amplo vale até Yuanling, quando as plantações de arroz em terraço davam lugar ao centeio e ao trigo nas encostas dos montes. Esta cidade jaz dentro de espantosa distância da base do 2.u Exército de Ho Lang comunista, em Sangchih, mas, tudo estava tranquilo enquanto galgavam a fronteira de Hunan. Aqui, em muitas cidades, havia postos avançados providos de pessoal missionário; mas, grande parte da região ainda não fora atingida pelo evangelho.

Kweichow era uma província de mudança rápida, visto que as ruas que até este ponto terminavam nas portas da cidade foram levadas para o campo e as estradas em contorno substituíram os caminhos íngremes que serpen­teavam através das montanhas. Havia obras rodoviárias arriscadas para manobrar e mesmo as superfícies aca­badas da estrada eram irregulares em extremo. Shepherd era muito míope e usava lentes grossas; e nas curvas fechadas, sem proteção, onde um declive íngreme aguarda­va qualquer movimento em falso, seus braços fraquejavam. Nessas ocasiões Watchman, com menor experiência de dirigir, mas, com nervos mais firmes, era obrigado a tomar a direção.

Em Kweiyang, capital provincial, havia um grupo de crentes reunindo-se numa casa onde foram bem recebidos e aí passaram alguns dias em companheirismo. Watchman falou-lhes diversas vezes e Ma ficou surpreso ao ouvi-lo dar uma palestra que examinava a História da Igreja, recheada de datas e nomes e números, sem consultar uma única nota. Aqui, porém, começaram a perceber quão incerto era o caminho que tinham pela frente. Longos trechos de estrada até Yunnan, diziam alguns, nem exis­tiam. Mas, haviam chegado até aqui; e agasalhando-se muito bem contra o frio, prosseguiram com determinação cada vez maior por entre as montanhas. Ainda havia neve nos picos, à medida que subiam cada vez mais entre azáleas e rododendros, sempre conservando sua escassa gasolina costeando nos declives. Mas, conta como o ritmo do motor do Ford ocupava sua mente e martelava nela os ensinos de Watchman nos pequenos postos de parada. Em altitudes mais elevadas, Watchman percebia que seu coração lhe causava frequentes problemas, dando a entender que sua prolongada enfermidade anterior cobrara seu preço. As chuvas de Kweichow estavam, contudo, dando caminho a fortes ventos de Yunnan quando chegaram a um ponto onde a gente risonha da tribo deu-lhe mais um longo empurrão sobre algumas obras rodoviárias. No fim, um engenheiro garantiu-lhes que eram, de fato, os primeiros viajantes de longo curso a chegar ali. Os risos, agora, venceram o frio que sentiam, quando começaram a longa descida para a planícia de Kutsing, em meio a fazendas e campos verde­jantes com arroz da primavera. Havia caminhantes uma vez mais e este último trecho da estrada para automóveis estava em boas condições. Mas, ao aproximar-se de Kun-ming, suas recentes tentativas de dar testemunho à beira da estrada foram desviadas pela curiosidade a respeito do veículo. Com a descoberta de que o carro tinha vindo pela estrada desde Hunan, imediatamente adquiriu fama.

Eles próprios, porém, tinham um especial interesse em chegar até aqui. Ao norte de Kunming, do outro lado do rio de Golden Sand (Areia Dourada) está o Tibete. Em Xangai, havia irmãos vindos de Yunnan a quem Deus estava cha­mando para evangelizar os tibetanos e Watchman deseja­va ver pessoalmente a situação. Uma viagem de diversos dias trouxe-os a um mercado nas montanhas, ao qual os tibetanos traziam suas mercadorias. Aqui, Shepherd recorda-se da extrema hospitalidade demonstrada, sempre rea­bastecendo sua tigeja antes que a tivesse esvaziado, en­quanto Watchman, ajudado por um intérprete, sentia as trevas espirituais do povo e a necessidade da mensagem da salvação.

Toda a viagem deles no sudoeste foi providencialmente oportuna. Ela teria sido impossível nos dois anos de guerra civil que se seguiu. No outono de 1934, os comu­nistas sob a liderança de Mao Tse-tung e de seu lugar-tenente Chu Teh, o vício do ópio transformado pelo marxis­mo, foram obrigados pelos exércitos de Chiang Kai-shek a fugir de sua base ao sul de Kiangsi. Desde 1929, esses dois haviam combatido com sucesso por um verdadeiro soviete camponês nas aldeias. Agora, expulsos pela força esma­gadora, começaram sua histórica jornada de seis mil milhas (quase dez mil quilómetros) — com mochila, baga­gem e arquivos — ao oeste para Yunnan, ao norte até à fronteira tibetana e ao leste, de novo, para Shensi. Outros grupos procedentes de Hunan, Anhwei e norte de Szech-wen fizeram longas jornadas semelhantes para juntar-se a eles. O movimento inteiro, conhecido pela história como a Longa Marcha, devia ser uma experiência crítica e formati­va na evolução do comunismo chinês.

Mas, bem antes desses acontecimentos, Watchman esta­va de volta à grande cidade comercial de Hankow onde parou para dar aos crentes uma série de estudos bíblicos sobre o Cântico dos Cânticos. Estes estudos deveram muito ao comentarista dos Irmãos, C. A. Coates e demonstram uma dívida para com esses escritores de que estava sempre preparado para reconhecer, quaisquer que fossem as tensões que pudessem afligir suas relações com os sucesso­res deles.

De Hankow, ele voltou para Xangai onde, no final do verão, aparece numa foto feliz com John Sung e Wang Tsai. Este encontro havia sido arranjado pelo líder cristão, K. S. Lee, com o elogiável objetivo de reunir numa só equipe os dons, métodos e visão panorâmica desses três homens tão diferentes. O encontro, porém, foi passageiro, cada qual seguindo de novo o seu próprio caminho. Wang Tsai discordava da confiança de Watchman em ministros não-assalariados da Palavra, bem como de sua independência das Missões para realizar a obra, o que, temia, só poderia trazer divisão e perda para a causa cristã. Mas, à luz de acontecimentos subsequentes, devia, anos mais tarde, falar com generosa aprovação da posição inflexível de Watch­man no que tange aos seus princípios.

John Sung e Nee, infelizmente, nunca acertaram os pon­teiros, embora cada qual tivesse o outro em elevada consideração e cada qual ceifasse onde o outro havia semeado. Sung, que viveu apenas dez anos depois disto, era um evangelista semelhante a um furacão, que alcançava resultados mediante uma declaração dogmática e apelo emocional. Um amigo descreve-o como "seguro de si, obsti­nado, constantemente saindo pela tangente, um homem que tinha em cada opinião uma convicção". Nee era, certa­mente, pregador mais talentoso; Sung, entretanto, era aquele a quem Deus usava a fim de arrebanhar multidões para o reino e o reavivamento que fluía de sua pregação espalhava-se como fogo na pradaria. Os convertidos de Sung, geralmente, permaneciam firmes, mas, ele deixava-os aos cuidados de outros. Nas palavras de um observador, "as ovelhas acordavam e estavam com fome; e pelo fato de não haver ninguém que as alimentasse, o ministério de ensino de Watchman era oportuno para preencher a lacu­na". Mas, no curso do tempo, Sung tornou-se francamente crítico de Nee, enquanto Nee, particularmente, apontava erros na imaturidade teológica de Sung e falha em prover para a permanência de sua obra.

Seguiu-se, agora, a terceira conferência de ensino de Xangai, na qual falou sobre a centralidade de Cristo nas Escrituras e na vida do povo de Deus. Nesta conferência, Witness Lee pôde estar presente, vindo de Chefoo, bem como crentes das cidades de Kiangsu e Shantung, onde as assembleias brotavam com rapidez desde a visita de Watchman em 1932. Os irmãos datam o começo da obra em três fases de quatro anos: Foochow, 1924; Xangai, 1928; o Norte, 1932.

A esta altura, uma figura inesperada e muitíssimo bem recebida entra de novo na história. Ao voltar da Inglaterra, Watchman soube que sua namorada dos dias escolares, Charity Chang, estava de volta a Xangai, tendo alcançado um grau de M. A. em Biologia na Universidade de Yen-ching. Todo este tempo havia permanecido a garota amante do prazer que conhecera, preocupada com as exterioridades da moda e do gosto; mas, agora frequentava diversas reuniões em Wen Teh Li e aí conheceu o Senhor. Em breve, estava pedindo o batismo e as irmãs mais velhas teste­munhavam que estava interiormente transformada, fato que, quando ele a encontrou, as próprias observações de Watchman o confirmaram plenamente. O encontro desper­tou, também, seus próprios sentimentos para com ela, sepultados de longa data.

Vendo isto, Faith, irmã de Charity, resolveu ajudar. Procurou Watchman, de volta uma vez mais de suas andan­ças. "Agora que Charity se tornou uma cristã sincera, servindo ao Senhor com firme propósito, você consideraria a possibilidade de casar-se com ela?" Perguntou. "Estou certa de que ela não faria objeções."

Mas, só depois de muita oração, concluindo afinal que era da vontade de Deus, ele rendeu-se aos impulsos do coração. Então, expediu uma carta urgente para seus pais em Foochow apelando para que o ajudassem nos arranjos do casamento. Huo-ping ficou em estado de pânico, lembrando-se do seu erro a respeito do noivado em Sitiawan; mas, foram para Xangai e aqui se defrontaram com uma série de boatos. A tia viúva de Charity, Chang Mei-chen, dizia-se, fazia forte oposição ao casamento, ressentida de que sua brilhante sobrinha se unisse a um pregador des­prezado. E havia o mesmo tipo de dúvidas na mente dos crentes que idolatravam Watchman e ficaram chocados de que ele, um homem de oração, pensasse em sexo e em família — e pior do que isso, que ele considerasse casar-se com uma beldade colegial de Yenching.

Mas, a mãe de Watchman foi encontrar-se com Chang Shui-kuan, tio de Charity e cabeça legal da família, que, para seu alívio, deu a aprovação. Então, ela convidou Charity para acompanhá-la a outra cidade e participar em reuniões especiais de evangelização. Durante uma semana, dormi­ram no mesmo quarto, vivendo e orando juntas; e chegado o tempo de voltarem, Deus dera-lhe confiança completa de que Charity era, de fato, a escolha divina para o seu filho. Nos começos de Outubro quase quatrocentos crentes se reuniram em Hangchow, capital da província de Chekiang, antiga cidade de beleza pitoresca situada em meio a íngremes montanhas e lagos esverdeados.  Philip Luan arranjou para realizar aqui uma conferência especial a fim de consolidar a obra nesta região muito receptiva. Desde o tempo em que Peace Wang visitou a área pela primeira vez para trabalhar entre mulheres, pequenas reuniões locais vinham crescendo em Chekiang oriental; e dentre os que agora se reuniam, estavam crentes de cidades tais como Fenghwa, Wenling e Chuhsien. Outros vieram de Soochow em Kiangsu e de muitos centros mais. Aqui, durante dez dias Watchman expôs a Palavra no que foi mais tarde lembrado como o "Vencedor da Conferência" e estava jubiloso por ter os seus pais presentes. O dia seguinte fora marcado para a realização do seu casamento, mas, tão moroso era ele para ajustar-se à ideia de ser noivo, que Faithful Lucas teve de arrastá-lo a uma loja de roupas de segunda mão de sorte que pudesse comprar vestimenta de casamento.

Assim, na tarde de 19 de outubro de 1934 — aniversário de casamento de seus pais — Ni To-sheng uniu-se em casamento cristão a Chang Pin-huei na presença de uma grande congregação de crentes. Deram graças a Deus, cantando o hino que ele havia escrito para ela dez anos antes; e, depois, seguiu-se a festa de trinta mesas com dez convidados em cada uma.

Então, veio a tempestade. De volta a Xangai, descobri­ram que a tia de Charity, Mei-chen, dera expansão à sua rabujice num ataque público contra Watchman, ataque que havia tomado a forma de uma publicidade de termos ásperos, apoiada em chinês erudito, num diário de alcance nacional. Como, perguntava, pôde este paupérrimo prega­dor roubar sua amada Pin-huei? Que possibilidade tinha de sustentar e muito menos satisfazer uma jovem tão culta? Se pudesse fazê-lo, devia ser de recursos estrangeiros que obteria o dinheiro. E houve um velado ataque aos seus princípios morais, ofensivo o bastante neste contexto prontamente agarrado pelos que desgostavam de sua in­fluência. Não só uma vez, mas, diariamente, durante uma semana, o ataque de âmbito nacional foi publicado, enquan­to folhetos na mesma linha eram impressos e distribuídos a mancheias nos círculos cristãos. "O que eu li era tão vil", observou um missionário, "que eu o queimei e depois senti necessidade de um banho."

Watchman ficou profundamente deprimido. No seu lar recolheu-se ao quarto e não queria ver ninguém. Uma missionária, de espírito forte, foi visitá-lo. "Ele me rece­berá", anunciou, "porque tenho da parte de Deus uma mensagem para ele" — e entrou. "Toda arma forjada contra ti, não prosperará", declarou ela; e "toda língua que ousar contra ti em juízo, tu a condenarás!" E Faith Chang veio e conversou com disposição mais leve num esforço de elevar-lhe o espírito. "Importa o que dizem?" Perguntou em tom insistente. "Você conquistou uma esposa segundo seu próprio coração!" Charity era, com efeito, uma alegria para ele. Falava um belo chinês e a mesma coisa se dava com seu inglês. Tinha um andar humilde com o Senhor e seria a maior ajuda para ele em seu trabalho. E, nisso, todos estavam de acordo: era muito bonita.

Em Novembro, viajaram para o sul a fim de participar nas reuniões especiais da conferência em Amoy, mas, seguiu-se um período em que ele estava afligido de proble­mas. A correspondência de Londres ia-se arrastando. Seus problemas cardíacos que haviam aparecido em Yunnan continuavam a repetir-se. E, em particular, tinha um proble­ma íntimo concernente a uma dotação pessoal com o Espírito Santo para o serviço — dotação que era, ao mesmo tempo, um senso de algo que falta em sua própria expe­riência e também alguma confusão mental acerca de dou­trina. Quanto ao problema doutrinário, Deus deu-lhe a luz que buscava enquanto estava fora durante um mês traba­lhando num lugar distante, bem longe do alcance de qualquer pessoa qualificada para responder às suas perguntas teológicas e quando, pois, em desespero valeu-se da ajuda da oração de alguns crentes aldeões extremamen­te simples.

E houve outros raios de luz para animá-lo. Um destes foi a volta de Thornton e Carol Stearns em Janeiro de 1935. A formação de um grupo "separatista" na cidade em seguida à visita que Watchman fez, em 1932, a Tsinan, havia difi­cultado as coisas para eles na Universidade de Cheloo e, por conseguinte, o Dr. Stearns havia renunciado e aceitara uma nova nomeação para ensinar em Xangai. Noutra ocasião, por mero acaso, Watchman encontrou-se com Li Kuo-ching, filho do médico de Fukien que em tempos passados havia falado fora de vez na aldeia pesqueira de Mei-hua. Fora para a Universidade de Amoy a fim de continuar os estudos e agora era piloto de aviação. Quando Watchman lhe perguntou se ainda seguia ao Senhor, res­pondeu: "Sr. Nee, o senhor pretende dizer que depois de tudo o que sofremos ali eu poderia abandoná-Lo?"

Mas, o longo intercâmbio com Londres e com Nova Iorque, doloroso como era, estava ajudando os irmãos de Xangai a formular com maior clareza suas ideias sobre as relações eclesiásticas. Os irmãos do Ocidente haviam acu­sado Watchman Nee de ter "comprometido a comunhão" estendida a ele pela participação na Mesa do Senhor (em Honor Oak e em New Haven) com cristãos que eram governados pelo princípio de que "qualquer pessoa que alega ser crente podia partir o pão sem levar em conta as associações religiosas ou de outra natureza em que ele estivesse envolvido". Buscavam, pois, "esclarecer os ir­mãos de Xangai quanto aos princípios da comunhão cristã e ajudá-los a julgar as ações de Nee". Aproveitou-se a ocasião, também, para chamar a atenção para os pontos de vista falhos de Nee sobre profecia.

O problema desagradável era o de separação de todas as demais associações cristãs antes de ser recebido à Mesa do Senhor. Com efeito, alguns que frequentavam as reu­niões chinesas conservavam, de longa data, seus vínculos com congregações da missão sem que levantassem quais­quer dúvidas até agora. Para os irmãos ocidentais, porém, este tipo de coisa não era tolerado e a imaturidade comparativa do movimento chinês não era desculpa. Os irmãos ofereceram-lhes um século de "verdade" escrita e, como disse James Taylor numa carta a Faithful Lucas, "Você está obrigado, perante o Senhor, a abraçá-la, tirar proveito dela e defendê-la com firmeza". "

A resposta final dos presbíteros de Xangai foi um humilde e benevolente apelo à razoabilidade cristã e à norma do Espírito Santo. A comprida carta que escreve­ram, datada de 2 de Julho de 1935, expedida de 36/38, Lane 240, Hardoon Road e assinada por D. C. Du, Y. A. Wu, W. Nee, e K. Y. Chang, contém a seguinte declaração de princípios:

"Devemos distinguir entre 'pecados' (quer mo­ralmente, quer doutrinariamente) que obstam a comunhão com Deus e 'pecados' que não o fazem. Sabemos definitivamente que pecados como adul­tério e descrença na vinda de Cristo em carne, certamente poriam o indivíduo fora da comunhão, mas, quanto aos outros 'pecados' — digamos aquele da 'má associação' e interpretação er­rónea da profecia — não impedem a comunhão com Deus.

"Permanece o fato de que muitos filhos de Deus pertencentes a diferentes sistemas, aos quais temos julgado inconvenientes para comu­nhão, estão tendo um andar mais íntimo com nosso Senhor do que nós.

"E é o Espírito - e só o Espírito - quem pode decidir a questão da conveniência de alguém para a comunhão.

"O motivo por que recebemos um homem é que Deus o recebeu (Romanos 14:3). Por isso, a ordem divina é: 'Acolhei ao que é débil na fé' (14:1). Devemos receber todos aqueles que Deus aco­lheu. Esta ordem é clara, decisiva e abrangen­te."

Este foi um apelo sincero para franca comunhão ba­seado na consciência do cristão despertado, mas, foi rece­bido com apenas um exclusivismo entrincheirado. Uma reunião representativa "de caráter de assembleia" foi convocada para 30 de Julho de 1935, em Park Street Hall, Islington, quando foi anunciada a ruptura formal com os irmãos chineses. Diversos dos que estavam presentes manifestaram um profundo choque para o seu melhor sentido; mas, foi uma decisão revestida de autoridade, amarrando por consentimento toda e qualquer reunião do "Grupo de Londres" por todo o mundo. A carta portadora desta decisão aos irmãos de Xangai estava datada de 31 de Agosto de 1935. Punha em dúvida a sinceridade do amor dos irmãos chineses por Cristo; acusava Nee de falta de probi­dade; e declarava que, se os princípios delineados tivessem sido revelados em 1932, a comunhão naquele tempo teria sido impossível. "Lastimavelmente, falhamos em nossa falta de cuidado santo em impor as mãos com demasiada rapidez sobre aqueles com os quais não estávamos suficientemente familiarizados. Não podemos caminhar convosco... Isto, é claro, aplica-se a todos os que mantêm vínculos de comu­nhão convosco."

Um dos signatários da carta era Charles R. Barlow, um homem profundamente pesaroso. Os chineses, também, ficaram num estado de choque com todo o episódio, porque foi profundo o desapontamento na esfera das relações cristãs e do amor ofendido.

Watchman estava com Charity em Chefoo quando a resposta chegou às suas mãos. Aqui, a Srt.a Elizabeth Fischbacher, muito requisitada como uma das oradoras missionárias dotadas, da C. I. M., estava realizando reu­niões reavivalistas na cidade.

Recentemente, chegara a conhecer Watchman, que, segundo já vimos, estava passando por um período de esterilidade espiritual; e havia falado com ela sobre algu­mas das inquietações de sua mente indagadora. Ainda sentia fome de uma nova experiência de Deus e, agora, vencera suficientemente suas reservas acerca de mulheres pregadoras a fim de comparecer às reuniões que ela pro­movia em Chefoo. Ela própria partilhava da predileção de Shantung por acompanhamento extático de pregação e oração; e quando seu inglês já não correspondia, orava e cantava no Espírito. Mas, havia verda­deiro poder em sua pregação e Watchman, agora, estava sob seu fascínio, respondendo ao apelo da Palavra e entrando naquilo que era para ele uma descoberta inteiramente nova da bênção divina. O certo é que, a partir de agora, ele encontrou um novo livramento que pôs fim a esta fase um tanto estéril de sua pregação. Telegrafou para Xangai nestes termos: "Encontrei o Senhor."

Para a conferência de Outono ali, trouxe uma mensagem do derramamento do Espírito de Deus, mensagem que levou muitos a uma experiência semelhante do poder divino. O efeito disto foi que durante um período de um ano ou dois uma onda de agitação espiritual e uma nova ênfase sobre essas experiências varreu em direção ao sul através das assembleias — grupos que até aqui tinham sido governados por uma abordagem intelectual que nunca permitia aos cristãos esquecer-se da Bíblia em favor de mero subjetivismo. Todavia, já era costume terminar as reuniões de oração com um breve período de orações simultâneas quando aqueles, cujas petições tinham ficado de fora por causa do limite de tempo, podiam descarregar suas cargas em Deus. Esta prática, que se diz ter sua origem com John Sung, poderia ser uma saída muitíssimo comovente para o Espírito Santo quando sob Seu controle, visto que a oração subia num crescendo e diminuía de novo até ao silêncio de contemplação num breve tempo. Mas, agora fora dada rédea a extremos de excitamento, com pulos, bater palmas, risadas, línguas desconhecidas que não traziam mensagem alguma aos ouvintes ou mesmo ao orador e um dilúvio de curas dramáticas, algumas indiscutivelmente reais, mas, não poucas eram mero engano.

No final de 1935, Watchman e Charity chegaram a Amoy onde, devido a uma dificuldade por causa de aco­modações, as reuniões planejadas da conferência especial tiveram, no último instante, de realizar-se em outro local. Em Tsin-kiang, entre aquela cidade e Foochow, o deão do Christian College, Lukas Wu, que recentemente havia en­contrado o Salvador ao servir de intérprete para John Sung, veio em socorro abrindo sua enorme casa para a confe­rência de dez dias a que compareceram quase quatrocen­tas pessoas. Watchman falou sobre a Vida Vitoriosa e sobre o Derramamento do Espírito Santo e houve, não obstante, mais um surto de bênção divina. Depois disso, a família de Wu formava o núcleo de outro grupo de adoração e testemunho, padrão que devia reproduzir-se em dias vindouros numa cidade após outra.

Witness Lee afirma que Watchman "nunca falou em línguas". Pode ser verdade, mas, não pode agora ser provado e em todo sentido é um argumento do silêncio. Por certo, cria nos dons menores do Espírito Santo concedidos à Igreja, dons de curar e de falar em línguas e de interpre­tação. "Tenho visto com meus próprios olhos", disse, "casos de cura divina instantânea. Não nos opomos a isto; nossa contenda é somente com os meios erróneos de curar." E também: "Alguns me perguntam se me oponho a falar em línguas. Certamente que não, embora questione as línguas que são obtidas através de meios fraudulentos." E para o escritor relatou de sua experiência uma ilustração notável de como em uma congregação de aldeia muito confusa, Deus havia usado este meio para trazer-lhes fatos desagradáveis que precisavam urgentemente enfrentar, mas, que a única pessoa informada estava sob promessa de não divulgar. Este tipo de coisa, afiançava, dava sentido e propósito ao dom.

Por outro lado, era igualmente vigoroso em afirmar que "nem todos falam em línguas" e seu ensino sobre o tema era sempre equilibrado. Na verdade, um antigo missionário da C. I. M. que alguns anos mais tarde compareceu às suas preleções sobre o Espírito Santo, dadas em Xangai, descreve-as como "o mais claro ensino sobre este assunto que já ouvi".

Alguns métodos de reavivamento, dizia Watchman, operavam como ópio espiritual. Viciar-se neles compelia meramente a uma dosagem cada vez maior. Elizabeth Fischbacher sentia-se culpada pela perda de freio que se seguiu no despertar desses eventos e abandonou totalmente a pregação pública, para descobrir, no devido curso, um ministério ricamente compensador através da pena dotada. E três anos mais tarde, quando o pêndulo oscilou de volta e o episódio havia seguido seu curso, Watchman observou numa conversação com K. S. Wong: "Verificamos, ao olhar em retrospectiva este período, que o ganho foi um tanto trivial e a perda muito grande."

 

CAPÍTULO 12

REPENSANDO

Em outubro de 1935, com os primeiros sobreviventes errantes da Longa Marcha, Mao Tse-tung emergiu em Shensi do norte para ocupar sua nova sede em Yenan como o indisputado líder do Partido Comunista Chinês. Sua façanha de resistência de um ano de duração devia tornar-se um elevado pico emocional nos canais do Partido. Alguns de seus espetaculares episódios já eram lendas do heroísmo e da invencibilidade comunistas: a fuga do cerco de Kiangsi, a travessia secreta do rio Yellow Sand, o forçamento sob fogo da Ponte de Iron Chains sobre o rio Tatu em Luting, a ascensão da Great Snow Mountain (Grande Montanha de Neve) e o pesadelo da travessia dos pantanais de Szech-wan. Sustentados de ponta a ponta pelas fórmulas políticas e pela determinação férrea, emergiram agora num ponto-chave na borda da planície da China do norte, caldeados por sua provação num núcleo disciplinado para operações futuras. Depois de longo tempo sob ataque militar quase contínuo, haviam adquirido uma autocerteza como comu­nistas chineses em seu próprio direito, não mais tendo de prestar contas à Rússia.

A tentativa de Chiang Kai-shek de exterminá-los havia, pelo menos no presente, falhado fragorosamente; e seu abandono no sul significava que o caminho estava afinal aberto para os irmãos de Xangai que haviam sentido o chamado para as fronteiras tibetanas de partir para Yunnan. No ano seguinte, ou pouco mais, seis dirigiram-se para lá. Entre os tibetanos depararam com uma resposta afetiva, mas, seriamente carentes de literatura. Folhetos e porções bíblicas na língua tibetana eram impressos, por­tanto, em Xangai e despachados via Hanói, onde, para dissabor de Watchman, o governo francês os confiscava. Fez arranjos, portanto, para que as chapas tipográficas fossem remetidas para Yunnan e a impressão feita no local. Só assim, depois de longa demora, o problema foi solu­cionado.

Em outros lugares na China, a expansão da obra evidenciava-se por dois fatores. Um era a crescente demanda entre os convertidos de lealdade da Missão, qualquer que fosse, pelas transcrições dos sermões de Watchman. A revista e os livretes de estudos bíblicos encontraram guari­da nos lares cristãos por toda parte, proporcionando alimento para muitos que haviam sido despertados espiri­tualmente pela pregação reavivalista, mas, agora não ti­nham nada para nutri-los. O dom de Nee de explicar as doutrinas cristãs em palavras simples satisfazia conside­ravelmente suas necessidades.

O outro fator era, conforme vimos, o uso espontâneo dos lares de crentes. Um grupo de oração surgia logo em seguida onde um crente passava a morar em virtude de transferência de negócio ou a serviço do governo; e, de imediato, este tornar-se-ia num novo centro de testemunho cristão, atraindo pessoas, que vinham do paganismo, mas, não poucas oriundas de várias ligações missionárias, for­mando uma comunhão no estilo da Igreja Primitiva. Eram homens e mulheres que se haviam voltado de seus pecados para o Salvador a fim de dar-lhe tudo o que tinham e eram. À medida que cada grupo crescia, eram escolhidos presbíteros ou anciãos (chang-lao) segundo os padrões do Novo Testamento para orientar suas atividades e fazer provisão para seus ministérios. Podia, no devido tempo, exigir instalações mais amplas; mas, seu local de reunião devia ser funcional e nunca monumental e não havia ideia de adquirir terreno para templo, ou mesmo salões de aluguel, que não brotasse da expansão da obra do Espírito Santo nos próprios crentes.

O movimento tinha, também, "apóstolos" (shi-tu, envia­do). Estes eram obreiros de tempo integral com uma comis­são itinerante para evangelizar os inatingidos e edificar os crentes. Podiam mudar-se para locais distantes, talvez alugando um salão público para algum novo empreendi­mento numa situação nova.

Isto significava que as atividades incluíam dois concei­tos: a igreja e o trabalho. O trabalho considerava (para empregar adjetivos em inglês que ele mesmo inventava) como "platafórmico" e as igrejas como "round-tablic" (isto é, participantes de uma conferência ou mesa-redonda). Para dificultar, se possível, novas divisões sectárias por motivos de doutrinas ou em torno de personalidades, as igrejas eram consideradas como unidades locais corres­pondentes geograficamente a áreas administrativas secu­lares (aldeias, cidades, municipalidades) um tanto pareci­do com o antigo sistema "paroquial" saxão. Além de ser de sustento próprio e promover sua própria divulgação, cada uma delas era localmente autónoma, ao passo que o tra­balho era frouxamente coordenado por regiões, com Watchman e alguns outros atuando como conselheiros dos apóstolos em suas áreas, treinando-os e sentindo-se res­ponsáveis, perante Deus, pelo fluxo de sustento financeiro. Quando um apóstolo se encontrava em qualquer situação da igreja local (mas, não quando engajado em trabalho mais amplo) sujeitava-se aos anciãos locais. Em 1938, Nee de­clarou que havia 128 desses "apóstolos" funcionando em serviço em tempo integral.

Toda a estrutura e o procedimento haviam crescido durante a década anterior por aplicação improvisada da leitura que faziam do Novo Testamento a situações à medi­da que estas surgiam. A obra ainda estava em proces­so de desenvolvimento e já se pensava nela como secun­dária para a vida e comunhão espirituais dos crentes. As preocupações primárias eram sempre a conformidade com Cristo e o testemunho de seu poder salvador.

A força do movimento reside na qualidade do seu poten­cial humano. Homens e mulheres uniam-se a ele de livre e espontânea vontade, sem a atraçâo de lucro associado tal como era oferecido, por exemplo, pelo sistema educacional da Missão. Conforme Watchman tem explicado, o que os chineses viram e os missionários levaram mais tempo para reconhecer era que, inteiramente à parte do aspecto es­trangeiro dos padrões missionários, haviam inevitavelmen­te oferecido nos primeiros tempos vias de promoção na igreja a homens que tinham começado a vida como criados dos missionários e que, a despeito da esplêndida dedica­ção de muitos deles, ainda assim constituíam na prática uma "classe" de cristãos sem probabilidade de inspirar estima entre os chineses mais cultos e intelectuais. Na esfera da liderança, o primitivo sucesso missionário pode­ria, dessa forma, no final de contas, ser autoderrotante.

Mas, aqui nas reuniões do "Pequeno Rebanho", as pes­soas encontravam-se como crentes para aprender a conhe­cer o Senhor e servi-Lo melhor; e algumas das assembleias começaram a mostrar uma elevada preponderância de homens educados, médicos, pessoal da universidade, em­presários, oficiais do exército. Dentre os estudantes que em Peking, em 1936, "compunham quase inteiramente a con­gregação regular do 'Lugar de Reunião dos Cristãos' na­quele centro educacional" havia "estudantes que figura­vam no rol de honra de Yenching, Ching Hua, Union Medicai College de Peking, Universidade de Peking e en­fermeiras em treinamento nos Hospitais Metodista e Pres­biteriano. Os médicos missionários diziam delas: 'Estão entre nossas melhores enfermeiras e, realmente, parecem possuir algo.'"

Um rápido exame da extensão da obra neste tempo mostra que dentro do movimento já havia mais de trinta igrejas locais na China, algumas sem dúvida muito peque­nas, juntamente com umas poucas entre os chineses de além-mar. Mas, o sentimento dos observadores acerca de sua divulgação era misto. Na província noroeste de Kansu, no princípio da década de 1940, uma aliança missionária viu motivo para propor que "quanto mais o movimento se distanciava de sua base, tanto mais falhava em distinguir entre amor sincero dos irmãos e certas expressões emo­cionais menos admiráveis". Sentia, bem como os outros, que seus adeptos podiam, com justiça, ser acusados de orgulho espiritual e que embora nas cidades costeiras o movimento florescesse entre a elite, ali, também, fazia "atrevidos esforços para prejudicar membros das igrejas estabelecidas e desviar até pastores, se fosse possível". Um batista inglês, escrevendo da província de Shensi, relata como "em 1942 um grupo de jovens ardorosos em Sian, que estudavam o Novo Testamento grego e liam Madame Guyon, deixaram as igrejas mais antigas para formar um corpo purificado chamado 'Pequeno Rebanho', o qual rebatizava os cristãos que se filiavam e se reuniam para o 'partir do pão' e para a pregação da Palavra todos os domingos. Eram fortemente anti-igreja e criticavam as diferentes denomi­nações da Igreja na China como adições estrangeiras, entretanto não vêem que sua ação em afastar-se da igreja estava erigindo outra denominação". E na província cos­teira de Chekiang, enquanto alguns missionários da China Interior podiam falar com afetuoso apreço do excelente ensino que ministravam e da verdadeira comunhão encon­trada entre eles, para outros, o rápido escoamento de crentes para suas fileiras saídos de entre as florescentes igrejas relacionadas com as Missões era causa de cres­cente preocupação. Para eles, Watchman era como um ladrão de ovelhas. Pouca dúvida existe de que neste tempo era um espinho na carne de muitos missionários.

Dos irmãos de Fukien, diversos já tinham ido para além-mar como obreiros e como testemunhas cristãs — Simon Meek em 1931 para as Filipinas; Daniel Tan para Singapura; Faithful Lucas para as índas Holandesas. Em Julho de 1937, a convite de Meek, Watchman visitou Mani­la e ali e em Baguio falou em reuniões de até cem pessoas durante quatro semanas, sobre a vida cristã vitoriosa, sobre a plenitude do Espírito Santo e sobre o companhei­rismo prático da Igreja.

Partiu, de novo, para Singapura exatamente quando a invasão total da China por parte dos japoneses começou com a tomada de Peking e assim estava ausente de Xangai quando no dia 14 de Agosto as hostilidades romperam ali. Aviões chineses desferiram um ataque contra a frota japo­nesa no porto de Whangpoo e duas cargas de bombas lançadas causaram morte em massa de seus próprios civis em uma loja de departamentos numa rua da vizinhança. Os marinheiros desembarcaram para fazer uma fortaleza do subúrbio de Hongkew, enquanto multidões de refugiados enxameavam a Concessão vindos de áreas circunvizinhas e erigiram "aldeias de palha" em cada lote vazio. Xangai permaneceu aberta desde o sul e, por esta rota, dentro de um mês, Watchman pôde ir ao encontro da esposa. O lar do casal estava numa região evacuada; mas, a esposa estava segura com as irmãs em Hardoon Road, embora ainda dentro do alcance do ouvido do combate que se travava em terra de Chapei, apenas uns poucos quilómetros ao norte. Não era a última vez que seus bens haviam sido pilhados; e quando voltaram para lá, deram por falta, dentre outras coisas, da Bíblia chinesa que havia dado à esposa como presente de casamento.

Satisfeito de que tudo estava bem, em breve saíra de novo, circundando a área de batalha para uma viagem subindo o Yangtze até Hankow. Aqui reuniu tantos obreiros a tempo integral quantos lhe foi possível convocar e ministrou-lhes um curso de palestras com discussão aberta nas mesmas linhas de uma conferência realizada no mês de Janeiro anterior, em Xangai. Nessas duas ocasiões, abando­nou, por exceção, sua ênfase sobre a vida interior do cristão a fim de lidar com exterioridades mais técnicas. Havia sido levado, conta-nos, a ver que as verdades coríntias são tão preciosas quanto as efésias, visto que o apóstolo que escre­veu as duas epístolas foi inspirado por um e mesmo Espírito e que os que estão familiarizados com as verdades efésias não podem permitir-se cometer os erros dos coríntios. Pôs-se, portanto, a cristalizar e a codificar os princípios práticos derivados da Escritura que juntos haviam elabo­rado e usado em situações vivas na conduta da obra e na formação de igrejas locais. Até agora, os obreiros tinham dependido de seu aconselhamento pessoal; mas, com o esta­do perturbado do país, achou que lhes devia definir mais claramente a posição alcançada. Completada esta tarefa, retornou, passando pelo campo de batalha, para Xangai, que em novembro estava totalmente sob o controle japonês, em que sobre cada casa e barraco e sampana tremulava uma bandeira do Sol Nascente para mostrar quem era o senhor. Arame farpado, sacos de areia e barricadas esta­vam por toda parte e os preços das mercadorias subiram. Em Dezembro, a capital, Nanking, caiu nas mãos dos invasores em meio a horrores sem precedentes. O governo nacionalista havia começado a sua longa retinida para o ocidente que devia terminar em Chungking.

Foram tomadas e destruídas notas completas de duas séries de preleções e isto levou, imediatamente, a um pedido para que fossem publicadas. Por conseguinte, com a ajuda literária de Charity e de Ruth Lee, Watchman preparou-as com urgência para impressão, de sorte que crentes e obrei­ros por todo o país pudessem partilhar os valores das duas conferências. Em Março de 1938, o livro estava impresso, publicado sob o título de JCung-tso Ti Tsai-ssu (Repensando a Obra). No Prefácio do livro, Watchman cita a observa­ção de Margaret Barber de que o "Espírito de Deus só opera ao longo das linhas de Deus". O livro é, com efeito, um exame bíblico das "linhas de Deus" no que tange à vida e expansão da Igreja conforme reveladas a esses homens especiais durante este período e neste ambiente histórico e nisso reside seu valor. "As verdades a que este livro se refere", escreveu Nee, "foram aprendidas e praticadas gradualmente durante os últimos anos. Numerosos ajustes foram feitos à medida que maior luz foi recebida e, se nos mantivermos humildes e Deus manifestar-nos Sua misericór­dia, cremos que haverá outros ajustamentos no futuro."

De seu punhado de amigos missionários houve, também, imediata pressão para que fosse publicada uma edição em inglês, mas, ele não estava convencido da sabedoria desta medida. Sendo seu primeiro título em inglês tão incaracterístico de seu ministério como um todo, parecia mera­mente um convite para mal-entendidos. Mas, de qualquer maneira, em sua busca de comunhão de homens mais idosos e mais sábios, agora tinha planos de acompanhar Elizabeth Fischbacher e duas outras missionárias do inte­rior da China numa visita à Europa. Desta vez, antes de partir, estava mais do que alegre por os médicos haverem apresentado um relatório absolutamente claro da condição de seus pulmões.

Levando consigo Charity até Hong Kong para ficar com os pais de Nee fora do alcance da guerra, viajaram pela Anchor Line; e na chegada a Clyde, em Julho, foi primeiro a Kilcreggan para encontrar-se com o Sr. T. Austin-Sparks. Até agora só se haviam correspondido, mas, Watchman tinha sido um grato leitor de sua revista devocional A Witness and a Testimony (Testemunha e Testemunho) e encontraram-se imediatamente em terreno comum. Viajaram juntos para o sul a fim de participar na Convenção Para o Aprofundamento da Vida Espiritual, em Keswick, Cumberland, onde as senhoras da C. I. M. se juntaram a eles. Ali, numa manhã de sol, foi à grande reunião missio­nária presidida pelo Rev. W. H. Aldis, diretor da China Inland Mission, em Inglaterra. Enquanto estava sentado com um orador japonês na plataforma, a devastação da guerra na China estava fresca na mente de todos; quando chegou a sua vez, conduziu a reunião em intercessão pelo Extremo Oriente em termos que, para muitos de nós de volta lá na década de trinta, foram uma revelação. Foi uma prece que poucos dos que tiveram o privilégio de estar presente esqueceram. "O Senhor reina; afirmamo-lo intrepidamen­te. Nosso Senhor Jesus Cristo está reinando e é Senhor de todos; nada pode tocar Sua autoridade. Forças espirituais é que saíram para destruir seus interesses na China e no Japão. Portanto, não oramos pela China, não oramos pelo Japão, mas oramos pelos interesses de Teu Filho na China e no Japão. Não jogamos a culpa sobre nenhum homem, porque são apenas instrumentos na mão do Teu inimigo. Estamos a favor da Tua vontade. Despedaça, ó Senhor, o reino das trevas, porque as perseguições contra a Tua Igreja ferem a Ti. Amém." Enquanto esteve em Keswick, falou aos candidatos à Missão sobre "As Qualificações Necessárias de um Missionário" e da Epístola aos Ro­manos, falou sobre "A Obra do Senhor Para Nossa Sal­vação: o Próprio Senhor Para Nossa Vida". Muitíssimo significativo foi o fato de que, no final da semana, tomou parte no vasto culto de comunhão unida da Convenção sob o lema "Todos um em Cristo Jesus", colocando, assim, publi­camente seu selo sobre a posição que ele e seus coopera­dores chineses haviam tomado três anos antes.

A seguir, Watchman viajou para Londres e para o Centro de Comunhão Cristã em Honor Oak Road, onde sua singular visita anterior havia precipitado tão agudamente o problema da comunhão aberta. De imediato, sentiu-se à vontade com o Sr. Austin-Sparks e com os outros respon­sáveis pela igreja. Fez desse lugar a sua sede provisória de trabalho e foi aí que o escritor destas linhas passou algumas semanas inesquecíveis com ele.

A igreja em Honor Oak tinha as portas abertas ao povo do Senhor e possuía uma clara visão missionária, mas, com ênfase também sobre a obra subjetiva da Cruz nas vidas cristãs que, no clima evangélico da época, era sentido como um tanto negativa e sujeita a desviar o ativo tes­temunho dos cristãos para uma ocupação por demais passiva com "coisas mais elevadas". Além do mais, como o próprio Nee, Honor Oak levava a culpa por um desvio dos missionários das Missões históricas na busca de um padrão mais primitivo ou "espiritual" da vida e do testemunho. Watchman havia, assim, de novo, escolhido nadar numa corrente ligeiramente afastada dos princípios evangélicos da corrente principal.

Aqueles de nós que, como resultado, desfrutamos por breve tempo de um monopólio de seu companheirismo e ministério, ficamos imensamente enriquecidos pela expe­riência. Era tão fácil conversar com ele e seu "back­ground" cultural oriental tornava tão estimulante a dis­cussão de nossa herança comum em Cristo. Quando falava em público, fosse nas orações matutinas ou dirigindo-se a uma reunião eclesiástica, seu excelente inglês competia com o encanto de seus maneirismos para fazer dele um motivo de alegria ouvi-lo. Mas foi o conteúdo de suas mensagens que nos cativou. Não desperdiçava palavras, mas, trazia-nos direto a lutar com algum problema da vida cristã que por muito tempo nos havia aborrecido; ou nos confrontava com alguma exigência divina que havíamos negligenciado. Porque, em muitas matérias, nós cristãos excedemos, conforme dizia encantadoramente, em "dotching the itchue" (evitar o problema). Exibia, também, o grande cuidado do pensador chinês na escolha dos termos que empregava e, muitas vezes, trouxe de volta novo signi­ficado aos nossos desgastados lugares-comuns evangélicos.

Além do mais, podia ver através de nós — e, vendo, ainda ser fiel. Isto devia-se sempre ao fato de que seu objetivo era exaltar o Cristo que amava. Dentro de um mês de sua estada entre nós, habilidosamente, mas, com óbvia preocupação, pôs o dedo bem em nosso ponto de perigo; e este, seguramente, era nosso orgulho espiritual. Deus havia-lhe mostrado através da experiência, disse-nos com amabilidade, que "Não julgueis, para que não sejais jul­gados" é, certamente, um princípio de seus atos como "Dai e dar-se-vos-á". Não admira, pois, que as notas de suas palestras dirigidas a nós, têm parecido, trinta anos depois, saltar de sua caderneta de notas, surrada, com fresca e surpreendente pertinência.

Naquele tempo, eu era um jovem recruta missionário, sé­rio, prestes a partir para a Ásia e com dois outros amigos desfrutamos longas e valiosas conversações com ele sobre tudo o que nos vinha à mente, desde finanças missionárias até o livro do Apocalipse. Nunca, em momento algum, fez a mais leve sugestão de que devíamos deixar, ou não filiar-nos a um empreendimento missionário estabelecido. O melhor conselho que me deu como mensageiro do Senhor numa cul­tura estranha foi que eu usasse (metaforicamente) durante os primeiros dez anos uma das placas-L da cartilha britâni­ca do motorista que tanto o deleitavam quando, pela primei­ra vez, as viu em uso. No devido tempo senti que, para um cristão, os dez anos que sugeriu deveriam estender-se in­definidamente.

Estávamos enfrentando exatamente naquele tempo a crise de Munique na Europa; e como hóspede estrangeiro na Grã-Bretanha, Watchman observava nossa ansiosa es­cavação de abrigos e distribuição de máscaras anti-gás e, então, o impulso de alívio emocional em face da "paz em nosso tempo" de Neville Chamberlain. Visto que não estava diretamente envolvido, provou, conforme disse, aquele tipo correto de desligamento que — em outro nível — o cristão deveria sentir como estrangeiro e peregrino neste mun­do. Mas, tinha suas próprias tristezas pessoais. Por volta desse tempo, chegaram-lhe notícias de Hong Kong de que Charity, que estava esperando um filho, havia sofrido um aborto. Quando sua própria carta chegou, esta era reve­ladora de bravura; mas, sabia quão profundamente ela deve ter sentido este golpe com ele ausente em viagem ao redor do mundo e escreveu-lhe da melhor maneira que pôde para consolá-la. Com efeito, tão logo estava em condições de viajar, a mãe levou-a numa tremenda viagem por caminho para Hanói até Kuming, a fim de visitar os crentes eva­cuados na província de Yunnan. Em realidade, Charity não pôde conceber de novo e os Nee não tiveram filhos.

Em Outubro, a convite do pastor Fjord Christenson, do Conpenhague, Watchman foi à Dinamarca para reuniões na Escola Internacional, em Helsingor ("Elsinore" de Hamlet) onde leu uma série de dez palestras sobre Romanos 5-8 intitulada "A Vida Cristã Normal". Estas, suplementa­das com outras sobre o mesmo tema, deviam mais tarde constituir o livro com esse mesmo título. Para Watchman, a "vida vitoriosa" era um termo que expressava desejo, usado amiúde pelos não-vitoriosos para o que, na verdade, era a vida cristã real. Os que "venceram", argumentava, são cristãos normais aos olhos de Deus; os restantes estão abaixo do normal! Dirigindo-se a Odense, Watchman fez uma notável palestra sobre as palavras-chave "sentar, caminhar, resistir", registradas em Efésios. Parece claro que encontrava, como acontece a tantos, muita liberdade de espírito enquanto esteve entre os dinamarqueses.

Quando chegou à Grã-Bretanha, havia planejado pas­sar no máximo quatro meses no Ocidente, voltando em Novembro via Estados Unidos. Contudo, a visita parecia incompleta sem uma troca mais plena de opiniões com seu novo amigo e conselheiro, T. Austin-Sparks, sobre o proble­ma do que via como "a realização prática do Corpo de Cristo". Quando chegou a Paris por via da Noruega, da Alemanha e da Suíça, recebeu uma carta de seus cola­boradores de Xangai, insistindo para que voltasse sem isto. Significaria a tradução para o inglês de seu Rethinking the Work. Felizmente, Elizabeth Fischbacher estava livre para ajudá-lo ali com uma colega, Phyllis N. Deck, para em­preender esta tarefa. Assim, durante dois meses, traduziu enquanto Watchman abreviou o texto, fez as correções e escreveu outro prefácio. Por fim, em Janeiro, terminado o trabalho do manuscrito, voltou a Londres para passar aqui outros quatro meses, fazendo de Honor Oak a sua base, durante cujo período foi cimentada uma amizade mutua­mente recompensadora com o Sr. e Sr." Austin-Sparks.

Aqui houve novamente reuniões, mas, não todo o tempo. Deleitou-se em provar a vida familiar inglesa; e onde antes havia sido um tanto formal, agora se descontrairia e brincaria de esconde-esconde com as crianças, ocultando-se facilmente da vista, vestido em sua roupa comprida, azul. Uma vez, depois de pregar com muita eficácia numa conferência plena, juntou-se a um grupo deles para um piquenique nas charnecas de Surrey e é lembrado por alguém como "engraçado ter por ali um 'irmão muito espiritual'!" No lar, ficava admirado de que não se levantassem todos sempre que a vovozinha entrava na sala e que, por outro lado, um adulto fosse a tal ponto de pedir desculpas a um cãozinho que tinha sido acidental­mente pisado. Quando saía de carro, com a frugalidade aprendida nos dias de Yunnan, insistia em desligar o motor do automóvel quando descia as colinas. Levava as crian­ças, também, para tomar refeições chinesas, mas, achava necessário fortalecer nossos brandos alimentos ingleses com molho de soja, do qual manobrava, de certo modo, para conservar um suprimento constante.

Tinha, é claro, liberdade de movimentos e em Sheringham, em Norfolk, procurou um amigo de Margaret Barber dos tempos de Norwich, D. M. Panton, cujos escritos tinha em alta conta e a quem procurou demonstrar seu apreço, diz-se, preparando dois ovos ao estilo chinês para o seu café da manhã. Noutra igreja local dos Irmãos Abertos conheceu o Sr. (mais tarde Sir) John Laing, engenheiro de estruturas, que se lembra de como Watchman graciosa­mente declinou a oferta de um donativo dos fundos oci­dentais para a sua obra. E, o mais feliz de tudo, encontrou oportunidade para um encontro particular de afetuosa re­conciliação com seu amigo de longa data dentre os Irmãos Exclusivos, Charles Barlow.

No mês de maio de 1939, antes de deixar a Inglaterra, a tradução inglesa de Rethinking the Work apareceu em Londres com a impressão Testemunha e Testemunho sob o título Concerning Our Missions e foi avidamente procurada por muitos como uma obra para os tempos. Este período, é preciso que seja lembrado, foi o apogeu das missões interdenominacionais, algumas de cujas instituições de longa data estabelecidas pareciam agora sacrossantas. Mas, já alguns missionários estavam começando a enfrentar honestamente a imprecisão embutida do sistema acerca do que fazer com os convertidos. Em alguns círculos, a opinião era ganhar terreno que só nas igrejas novas, vivas, pode­riam ser conservados os resultados de seus labores; e para esses leitores a forte ênfase de Nee sobre a igreja local responsável somente perante Deus veio para elas como um sopro de ar fresco. Mais ainda, sua distinção entre "as igrejas" e "a obra" — uma dedução razoável das Escritu­ras — parecia útil. Ademais, havia passagens no livro de tão evidente utilidade prática quanto seu lúcido capítulo sobre finanças.

Quando, como chinês, rejeitou vender no atacado a pletora de denominações ocidentais superpostas, os leito­res simpáticos à ideia deram assentimento quase unânime; mas, quando chegaram à sua estrita ênfase sobre "loca­lidade" — uma cidade, uma igreja, para todo o mundo — aí empacaram. Era uma possível inferência bíblica e nada mais que isso. Nenhum escritor do Novo Testamento afirma tal coisa como princípio; e, conforme ressaltou sagazmente um erudito estudioso da Bíblia, ao escrever a uma cidade que nos tempos do Novo Testamento tinha, provavelmente, um milhão de habitantes, Paulo não endereça sua carta "à igreja em Roma". Nee parecia estar pedindo aos crentes nas cidades ocidentais de muitos milhões que voltassem, de certa forma, aos números populacionais a fim de recuperar a prática do Novo Testamento.

Muitos haviam reconsiderado este problema durante metade de sua existência e mais — honestamente, humil­demente diante de Deus, com a Bíblia perante eles e com a evidência de crescente complexidade surgindo de séculos de novos começos. Estava ali, perguntavam, um modo de avançar para todos nós que não era em essência um recuo às condições sociais "ideais" da Ásia Menor ou da Ingla­terra saxónica? Assim, por exemplo, seu amigo, T. Austin-Sparks, havia preferido enfatizar o "Corpo" místico de Cristo e a liberdade do Espírito Santo de dar-lhe hoje uma variedade de expressões na terra, cada qual um "teste­munho" a favor do Cabeça que está no céu. "Para entender a Igreja, as igrejas, a ordem da Igreja, a obra da igreja", escreveu em seu próprio exemplar de Concerning Our Missions, "é necessário começar do ponto de vista inclusivo de Deus, que é Cristo. Conhecer a Cristo em todas as Suas partes e caminhos é conhecer o que a Igreja deveria ser. Tudo está 'em Cristo'."

Doze meses depois, em Xangai, encontramos o próprio Nee expressando à igreja opiniões um tanto semelhantes. "Nossa posição é que, em qualquer lugar, todos os que são do Senhor são, portanto, nossos porque nós mesmos somos Dele; e só os que não são Dele não são nossos. Se Hardoon Road vier a tornar-se um método de trabalho no qual a preocupação pelas igrejas locais dá margem a um mero conceito de "localismo", então, tenha Deus misericórdia de nós e o despedace, pois, Ele cessará de ter valor espiritual. Jamais devemos esquecer-nos de que todos em quem o Senhor tem liberdade são nossos Nele e que, em qualquer lugar, Ele não é mesmo uma igreja local espiritual, mas, o Corpo de Cristo que somos chamados a edificar!"

Mas, embora a compreensão e o calor do companheiris­mo entre os dois homens fossem profundos, neste problema particular usaram algum tempo para se sintonizarem. Não estavam em desacordo acerca do novo vinho, mas, a preo­cupação de Watchman era com o odre para contê-lo. Seu problema particular era de acomodar-se a um padrão sadio, divino, de expandir e, em grande parte, trabalho livre de tradição com o qual nos anos vindouros esperava ter de atracar-se. Mas, se no Ocidente não conseguiu todo o conselho prático pelo qual havia esperado, era preciso admitir-se que, no período em questão, o que buscava era, em toda parte, de abastecimento insuficiente.

Alguns meses depois de sua volta a Xangai, escreveu ao seu amigo palavras que expressam sua solidão como líder: "O Senhor sabe, com os irmãos aqui, devido à imaturidade deles, tudo o que eu digo é válido, a despeito de buscarem conhecer a mente do Senhor." A respeito do companhei­rismo, portanto, que em tão breve tempo havia crescido entre eles "o Senhor tem estado falando comigo", disse. "Como homem mais jovem, reconhecendo o senhor como irmão mais experimentado no mesmo testemunho, penso que necessito deste companheirismo de um modo muito real." Mas, na realidade, corresponderam-se apenas um pouco e ainda na China nunca apareceu, íntimo dele, um homem de sua própria estatura, chinês ou ocidental, a quem pudesse recorrer em tempo de necessidade. Pode, deveras, parecer-nos algo de trágico que as principais influências exercidas sobre ele tinham sido, amiúde, de mulheres — Dora Yu, sua mãe, Margaret Barber, Ruth Lee, Elizabeth Fischbacher — e que a limitação a que se impôs de seus estudos formais possa tê-lo privado da amizade estimulante e abrasiva de homens maiores.

CAPÍTULO 13

APOGEU

Conforme havia feito seis anos antes, Watchman plane­jou agora viajar para casa via Estados Unidos. Mas, quando fez as indagações em sua embaixada, insinuaram que os japoneses em alguns portos do Pacífico Ocidental estavam empregando inoculações compulsórias como meio de liqui­dar certos chineses que voltavam do Ocidente, de modo que resolveu que, depois de tudo, seria mais prudente percor­rer todo o caminho até o Whangpoo por navio britânico. A viagem via Bombaim e Colombo permitia uma parada muito breve na índia, mas, o mês de Julho veio encontrá-lo de volta em Xangai, para imenso alívio de Charity que se sentira desfalecida por sua segurança no Ocidente ameaçado pela guerra. Alegraram-se sobremodo por estarem juntos de novo. Alguns meses mais tarde, ele disse a um casal recém-casado que "o casamento é como sapatos velhos: mais confortáveis com o passar do tempo".

Chegou a uma cidade que era uma sombra do que fora; sua vida jovial silenciada sob as misérias da ocupação estrangeira, seu outrora próspero comércio estrangulado pelas pressões da guerra. Das áreas devastadas através do ribeiro Soochow, a pestilência passou para as concessões estrangeiras. Estas ainda se mantinham abertas pela presença de vasos de guerra britânicos, franceses e norte-americanos, mas, estavam agora atulhadas de refugiados carentes. À medida que Watchman, imperceptível em ves­timenta velha e chapéu de feltro surrado, entrava e saía entre os lares, encontrava uma calosidade de espírito mais trágica ainda do que as dificuldades predominantes; por­que, na luta para sobreviver, prevaleciam o egoísmo e o oportunismo desavergonhados, aos quais nem mesmo os fiéis pareciam imunes. "Verifiquei que muitos já se haviam endurecido para proteger-se", disse numa nota a um amigo, "e alguns têm até louvado ao Senhor porque não estão sentindo nenhum dos sofrimentos que ocorrem ao redor. Quanto a mim, tenho de confessar que sinto cada pedacinho deles; só que eu me apego ao Senhor para permanecer no Reino. O que vem acontecendo ao nosso redor é suficiente, mesmo que se tenha mil corações, para quebrar cada um deles. Mas, meu Pai é Deus! Nunca aprendi a amar tanto a palavra 'Deus' como hoje. Deus!"

Aparecera uma brecha entre os irmãos, por pouco tem­po, em sua ausência, mas, o vazio da pregação tinha sido pre­enchido por John Chang e mais particularmente pelo Dr. C. H. Yu, o oftalmologista. O Dr. Yu, de pequena estatura e com características delicadas e refinadas, era, também, musicista e, às vezes, acompanhava o cântico com o seu violino. Co­mo orador demonstrava dons promissores, pois, amava ao Senhor e era sensível à Sua Palavra.

Na primeira manhã de domingo de Setembro de 1939, Watchman pediu à igreja que orasse acerca da tensa situação na Europa. Pedindo que diversos irmãos se juntas­sem a ele em conduzir a congregação, "marchou para a presença de Deus, levando consigo a igreja", alegando que nada, senão a vontade divina, seria feito nesta crise. No final desta hora muito impressionante na qual muitos tomaram parte, concluiu: "Bem, Senhor, tu nunca podes dizer que tua igreja não orou!"

Tanto a reunião de oração de segunda-feira como o partir do pão no domingo à noite estavam agora sendo divididos entre diversos lares na cidade e, aqui, os crentes começaram a interceder fortemente com Deus para que pusesse um limite às incursões japonesas na Concessão. Para ajudar a clarificar-lhes o pensamento, portanto, Watchman deu, no começo de 1940, uma palestra "não aos chineses (ou britânicos ou norte-americanos) mas, a homens e mulheres em Cristo", sobre o tema do uso que Deus faz dos governos do mundo. Todo o trajeto desde Ciro, rei da Pérsia, até à Armada Espanhola, mostrou como a ordena­ção de Deus da história secular está essencialmente relacionada com o Seu próprio povo. "Devemos saber, portanto, como orar. Deve ser possível aos cristãos britânicos e alemães, chineses e japoneses, ajoelhar-se e orar juntos e todos dizerem amém ao que é pedido. Se não, há algo errado com a nossa oração. Podemos lembrar a Deus qual a atitude que os japoneses tomam para com Ele, mas, devemos também lembrá-lo de que na China os cristãos e missioná­rios têm muita intimidade com o Estado. Na última guerra europeia houve muita oração que desonrava a Deus. Não caiamos no mesmo erro. A igreja deve estar acima das questões nacionais e dizer: 'Nós, aqui, não pedimos nem vitória chinesa nem japonesa, mas, pedimos aquilo que for de vantagem à única coisa preciosa a Ti, o testemunho de Teu Filho.' Tal oração não se constitui de palavras vazias. Se a igreja toda orasse assim, a guerra logo seria solu­cionada à maneira de Deus."

O ensino da Bíblia em Wen Teh Li estava seriamente limitado pelas instalações ainda insuficientes. Uma idosa irmã levantou-lhes as esperanças ao oferecer um edifício grande e terreno por apenas 40% do valor corrente, mas, depois desejava ditar a forma que seu desenvolvimento deveria tomar; e quando os irmãos lhe apresentaram o princípio de que Deus mesmo deve guiá-los em como fazer o melhor uso de uma dádiva feita a Ele, a oferta foi retirada. Em vez disso, o andar de cima da velha estrutura foi remodelado para servir de escritórios e mais acomodação de hospedagem encontrava-se no Lane. No andar de baixo, as muitas colunas de madeira do espaço das três proprie­dades (mais tarde estendido para cinco propriedades) forçava várias adaptações da área do pavimento térreo para reuniões apinhadas de gente. O salão não tinha aquecimento e o soalho rangia atrozmente quando nele se andava.

Lena Clarke, que havia passado sete anos ali entre eles, descreve o cenário em 1940: No domingo de manha as multidões congregavam-se silenciosamente às 9:30 para ouvir a pregação da Palavra; as mulheres assentavam-se num lado e os homens no outro; o salão era mais largo do que comprido. Nos bancos, sem encosto, todos deviam sentar-se o mais próximos possível de modo que se fizesse o máximo uso do espaço, porque fora do edifício, nos três lados, mais pessoas se assentavam junto às janelas e junto às grandes portas duplas ou ouviam os altifalantes e existe até um transbordamento no andar de cima. Do mesmo modo que os pobres, os educados e ricos estão aqui: médicos misturam-se com operários, advogados e professo­res com puxadores de jinriquixá e com cozinheiros. Dentre as irmãs modestamente vestidas encontram-se não poucas mulheres e moças modernas com penteados e maquilagem segundo a moda, mangas curtas e vestimentas cheongsam atrevidamente abertas dos lados, feitas de seda de bom gosto. Crianças corriam de um lado para outro, cães pe­rambulavam por ali, camelos entram na pista, carros buzinam lá fora e o sistema de força é errático. Mas, domingo após domingo, a Palavra da Cruz era pregada fiel­mente. Pecado e salvação, a nova vida em Cristo e o propósito eterno de Deus, o serviço e a guerra espiritual — tudo isso é exposto e nada é retido. Recebem o mais forte alimento e o mais franco e direto desafio.

Com a volta de Watchman à pregação, uma multidão ansiosa sorvia todos os seus pronunciamentos. Em pé, ali em sua vestimenta azul-escuro, prendia-lhes a atenção com sua maneira gentil, seu raciocínio simples, mas, perfeito e suas analogias apropriadas. Ninguém jamais o viu usar quaisquer notas, porque lembrava-se de qualquer coisa que lia e podia reproduzi-lo. Para ilustrar um fato visualmente traçava um rápido esboço imaginário no ar (que um jovem operário podia reproduzir mais tarde num papel de cartaz) e se para esclarecer algum ponto narrava uma historieta pessoal, quase sempre era uma história contra si mesmo. Seu agudo senso de humor desferia frequentes ondas de gargalhadas pelo salão e "nunca se conseguia dormir em suas reuniões". Mas, do começo ao fim nunca se desviava do assunto. "O que importa", costumava dizer, "é a eficácia da palavra proclamada" e, infalivelmente, no final, havia deixado uma impressão clara e profunda na mente e no coração de seus ouvintes.

Charity sempre estava presente, tranquila e reservada, preferindo estar um pouco separada da multidão, mas, apoiando-o em tudo o que fazia. Sua irmã Faith (Sr.a Bao) estava, como as demais obreiras, mais ativamente envol­vida com o aconselhamento pessoal e, de igual modo, a segunda irmã de Watchman, Kuei-cheng (Sr.a Lin) que, sempre que podia, escapava de suas responsabilidades locais para prestar ajuda atrás dos bastidores às necessi­dades das irmãs. E sempre, também, às ocultas estava Peace Wang, grande, cheia de ânimo e de segurança e Ruth Lee, pequena e qual pássaro, de aparência sábia e infinitamente bondosa.

Na primavera de 1940 Watchman apresentou à congre­gação uma série de estudos práticos sobre Abraão, Isaque e Jacó, sob o título "Tratos de Deus com o Seu Povo", que era especialmente narrativo em suas seções posteriores. Com sua volta da Europa trouxe, também, à sua pregação sobre a Igreja uma nota mais "espiritual" ou mística. "A Igreja, os Vencedores e o Propósito Eterno de Deus" foi o tema de seu primeiro discurso da Conferência e esses foram seguidos por um curso ampliado sobre "A Igreja, o Corpo e o Mistério" para crentes e cooperadores. Witness Lee estava entre os presentes e voltou à sua congregação de Chefoo espiritualmente vicejante, grandemente enrique­cido. A fim de continuar com eles, devia dentro em breve rejeitar um atraente convite para treinamento bíblico nos Estados Unidos.

Esta ênfase espiritual, que não era totalmente caracte­rística de Nee, proporcionou sem a intenção de fazê-lo, um gosto entre as dedicadas missionárias que se haviam filiado a ele de novo, missionárias vinda do Ocidente, que, com outras, agora, procedentes de várias conexões em Xangai, constituíam um corpo crescente de simpatizantes estran­geiras. Algumas já haviam renunciado a suas Missões para agregar-se à obra de Nee e havia uma tácita expectativa entre elas de que outras lhes seguiriam o exemplo. Em Londres, nos idos de 1938, W. H. Aldis havia expressado a Nee sua "sincera esperança de que na sua volta a Xangai fosse possível haver comunhão maior e mais estreita no serviço entre você e os que estão associados com você e a C. LM." Esta esperança pode ter-se concretizado em certos casos locais, mas, não causa surpresa que em qualquer escala maior estava destinada ao insucesso. As diretorias de campo da C. I. M. e de outras missões continuaram a ver com cautela o trabalho de Nee, embora a razão principal para isto ainda fosse, talvez, a imagem dele como um ladrão de ovelhas de convertidos no campo.

Dos missionários, o Dr. Thornton Stearns havia sido, ultimamente, convidado a participar com os chineses como ancião da igreja, mas, à parte dele, infelizmente não havia homens estrangeiros associados com o grupo Wen Teh Li. Esta era uma falta grave, pois umas poucas das mulheres foram inquestionavelmente enlevadas com adulação de Nee como algo excepcional como homem de Deus. Para elas, não somente era a igreja em Hardoon Road a única expressão do Corpo de Cristo em Xangai; a única pessoa na China mediante a qual elas podiam descobrir a vontade de Deus era "nosso irmão". Viviam preocupadas com o "novo ensino" do eterno propósito de Deus de domínio para os seus filhos e viam tudo o que se relacionava com a mera salvação dos incrédulos como digressão deste ponto. O culto e o testemunho, a oração e a hora tranquila poderiam, com facilidade, nessas condições, ser meros "exercícios do homem natural". O que esta terrífica revelação do Corpo de Cristo exigia era o quebrantamento desse homem natu­ral por uma longa provação. Assim, "sente-se tranquilo e deixe Deus fazer tudo!"

Tais extravagâncias emprestavam apoio à acusação de que algumas pessoas deixavam suas missões e se sentavam em Hardoon Road nada fazendo. Qualquer que fosse o elemento de verdade nisto, a impressão dada era a de inércia paralisante, um medo de atuar para que não o fizessem "fora do Espírito". A atividade visível pela causa de Cristo parecia desprezada e abandonada em favor de algo concebido como mais elevado. Sobre tal evidência tem-se expressado que o efeito de Nee sobre os estrangeiros era em vão, mas, podia-se perguntar, ao contrário, se não era o efeito de alguns dos estrangeiros sobre ele que estava aberto a questionamento? Certamente, num ponto, confrontado com um influxo dos ocidentais, confidenciou aos Stearns temer alguns desses "evadidos" das missões e até discutiu com Thornton a formação de uma reunião separa­da para eles. E, em 1941, a dois jovens missionários, idealistas porém mal-informados, ansiosos por lançar-se de corpo e alma no trabalho de Watchman, seu conselho foi psicologicamente sadio: "Vocês tiveram momentos muitos difíceis e precisam de umas boas férias. Vão para a praia e procurem algumas crianças para lutar com elas!" — uma receita que se comprovou, ao mesmo tempo, oportuna e rapidamente curativa. A conclusão madura de um deles é provavelmente justa: que uma vez que aquilo que Hardoon Road representava para a China era cristianismo sem peias estrangeiras, com algumas notáveis exceções, era discutí­vel que os estrangeiros não se encaixavam neste contexto. Aqueles missionários que apreciavam o testemunho da "igreja local" no campo, muitas vezes, faziam o trabalho e o maior serviço permanecendo humildemente ao lado para orar sobre o assunto em suas crescentes dores enquanto permaneciam em suas missões.

Inércia espiritual nunca foi, em realidade, um aspecto do trabalho do "Pequeno Rebanho". Se alguns grupos, preocupados com seu crescimento em graça, faziam do estudo bíblico seu primeiro exercício, a maioria era deve­ras muito vigorosa em seu testemunho evangelístico e ex­tensão da obra. Apoiavam, também, com imaginativo acompanhamento dos convertidos, para cuja instrução Watchman forneceu agora uma série de questionários sobre os fundamentos da salvação. Mesmo as "camisetas do evangelho" de Foochow continuaram como característi­ca do testemunho nas ruas e nas aldeias. E em Wen Teh Li, um extenso trabalho de escola dominical das crianças, para o qual não havia espaço nos salões, prosseguia em grande parte sem ser notado nos lares. Os excelentes folhetos evangélicos de Nee já foram mencionados. Bem escritos e brilhantemente coloridos, convidavam a distri­buição e discussão de seus conteúdos. Os lojistas cristãos mantinham-nos prontos junto à caixa ou nos "stands" de exposição, como aquele que um visitante encontrou no meio de um comprido balcão de venda de artigos de vidro. As claras instruções de Watchman aos crentes sobre como apresentar os homens ao Amigo dos pecadores eram apoia­das por seu infatigável exemplo; pois embora Deus pudusse dar à igreja alguns para serem evangelistas, a instrução a Timóteo de fazer "o trabalho de evangelista" sujeitava a todos, no seu entender. Sua norma era testemunhar, no mínimo a uma pessoa por dia. Ficava emocionado, portan­to, ao descobrir como, quando numa viela de doze casas, uma criada se tornava crente, resolvia começar o trabalho com a criada da casa à sua direita e, havendo-a conquis­tado para o Senhor, havia continuado a trabalhar a viela toda até que, no momento em que a história lhe chegara aos ouvidos, seis criadas haviam encontrado o Salvador.

Muito embora esses fossem, por consenso geral, alguns dos melhores anos da igreja em Xangai, seu testemunho prosseguiu em face de uma assombrosa soma de críticas. Eram acusados de inconstância porque a disposição do salão e o caráter das atividades eram tão flexíveis e porque as reuniões especiais eram antecipadas com breve aviso quando havia um peso sobre o coração do pregador e não em alguma época óbvia fixada. De outro ângulo, havia ataques à doutrina de Watchman; e um respeitado missio­nário, embora reconhecendo que "muitos na China hoje se voltam para o Sr. Nee como mestre e líder em levá-los de volta às verdades do Novo Testamento", achava necessário publicar um ataque contra seu "grave erro" de usurpar o termo "apóstolo" para seus trabalhadores pioneiros e acusá-lo de "atrair multidões de discípulos para si". Um chinês que alegava estar por dentro do assunto publicou um folheto asseverando que Watchman tinha acesso a um constante fluxo de fundos estrangeiros com os quais susten­tava seu trabalho e atacando até mesmo sua integridade no uso desses fundos. Sua estatura de líder parecia apenas invocar o provérbio: "Aquele que levanta a cabeça acima das cabeças dos outros, mais cedo ou mais tarde será decapitado." Ou, em termos mais bíblicos, "todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos".

Em sua avaliação particular das Missões, a Aliança Cristã e Missionária ocupava o topo da lista; e, por algum tempo, esteve em condições muito amistosas com um de seus missionários, que, contudo, depois o desapontou escrevendo numa revista um artigo que o criticava e à sua obra, no seu entender, injustamente. Tinha, porém, sua própria filosofia acerca da autovindicação. "Se provei que estava certo, estaria provado que meu irmão estava errado; mas, que vantagem teria em provar que meu irmão estava errado?" Levando o assunto mais a sério, reconhecia que aquilo que fazemos para nossos irmãos no Senhor será a base com a qual Ele nos tratará nas coisas práticas. Se formos graciosos, Ele será gracioso.

Por este motivo, ele suprimiu seus sentimentos e, retirando-se da pregação, saiu das vistas de Chefoo durante algumas semanas. Ali, um amigo encontrou-o em profunda depressão e, sentindo-lhe a necessidade de livramento emocional, desafiou-o: "Você já experimentou louvar ao Senhor?" "Experimentarei", disse e saindo para a quadra de ténis e reunindo todas as forças de seus pulmões agora saudáveis, disse em alta voz: "Aleluia!" A receita funcio­nou e dentro em breve estava de volta à plataforma.

Alguém em Xangai dera-lhe um carrinho Fiat que pas­sava a maior parte do tempo numa garagem, mas, de vez em quando, esticava suas longas pernas no carro e saía a exercer seu ministério na companhia de algum cooperador. Certa vez, com Faithful Lucas, que tinha vindo da Malaia para uma visita, dirigiu o carro até Hangchow para desfru­tar o ministério de um jovem obreiro, Stephen Kaung, cujo dom como professor de Bíblia, todos concordavam, prome­tia muito para o futuro. Stephen e a esposa deviam, dentro em breve, ser enviados pela igreja para ajudar no avanço da obra em Singapura, por pouco escapando dali antes da invasão japonesa.

Havia, também, sinais felizes do cuidado pessoal de Deus para com eles. Certo dia, uma senhora convidou os Nee para tomar chá; essa senhora surpreendeu Charity ao entregar-lhe um pacote. Ela abriu-o e encontrou o presente de casamento de Watchman para ela, a Bíblia que havia desaparecido de seu lar depois das invasões japonesas. Esta era a história. Um missionário na China, falando numa reunião na Irlanda, havia exclamado durante sua palestra: "Se ao menos tivesse comigo uma Bíblia chinesa poderia expor esta passagem muito mais claramente!" Para sua surpresa, apareceu uma. "Como foi que você obteve isto?" Perguntou. O filho de um amigo, parece-me,havia estado nas forças inglesas na Concessão e, rendendo-se ao impulso de pilhagem, entrou na casa vazia e apanhou um livro. Na folha em branco leu em inglês: "A leitura deste livro o impedirá de pecar; o pecado o impedirá de ler este livro." Este livro deve ser uma Bíblia, pensou e guardou-a como lembrança. O missionário olhou para a inscrição e desco­briu nomes em chinês que reconhecia: "Charity, de Watch­man." Pediu e prontamente obteve permissão para devolvê-la.

Mamãe Nee, sempre a caminho, havia deixado o marido em Hong Kong com a filha mais velha, Kuei-chen (Sr.a Chan) e estava passando alguns dias com Watchman e Charity em Xangai. Embora, na igreja, fosse apenas uma das irmãs, ainda era a mãe dominadora no lar. Saía constantemente para pregar, orando pelos enfermos, tes­temunhando a qualquer pessoa, desde homens profissio­nais até viciados em ópio. Entretanto, agastava-se por causa do filho, preocupada, quando estivesse fora visitando, temendo que ninguém pensasse em dar-lhe nada para comer. Isto poderia ter-lhe causado aborrecimento, mas, no presente, havia chegado a um acordo com sua materna educação. "Às vezes pensamos haver nascido na família errada!" Havia dito aos seus cooperadores em Junho de 1940, "mas, Deus determinou de quem seremos filhos. José, com um trabalho especial para fazer por Ele, bem podia ter desejado irmãos diferentes; mas 'Deus', podia ele dizer, 'porque para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós'. Toda a nossa vida, do começo ao fim, e não meramente desde nossa conversão, é preparada por Deus para ajustar-nos ao cumprimento de seu mais alto propósi­to. Samuel, Isaías, Jeremias, Paulo, todos foram homens de Deus, preparados muito, muito antes de surgir a necessi­dade. 'Assim, pois, não depende de quem quer, ou de quem corre, mas, de usar Deus a Sua misericórdia'."

No Domingo, 7 de Dezembro de 1941, os japoneses atacaram Pearl Harbor em Honolulu. Às 8:00h da manhã seguinte, numa chuvinha gentil, como se o céu chorasse pelos cinco milhões de almas de Xangai, os japoneses afundaram as canhoneiras norte-americanas e britânicas ancoradas em Whangpoo e entraram e ocuparam as concessões internacionais e francesas. A ação foi rápida e completa. Barricadas de arame farpado bloqueavam as estradas, os automóveis eram requisitados para fins milita­res, as bicicletas estavam acima do seu valor, os ônibus desapareceram, os preços dos alimentos subiram vertigi­nosamente. À medida que a taxa de mortalidade crescia entre os refugiados, os armazéns tinham pilhas altas de caixões, visto que ninguém que morria na cidade podia ser levado para sepultamento. O crime cresceu rápidamente e os japoneses não se importavam com isso. O medo de sua terrível retaliação protegia-os.

No dia 18 de Dezembro de 1941, em Hong Kong, morreu repentinamente o pai de Watchman, vítima de um ataque cardíaco exatamente uma semana antes da ocupação da cidade pelos japoneses. Estava com 64 anos. Não muito depois, Watchman pôde viajar para lá e fazer os prepara­tivos do funeral. Ni Weng-hsiu havia morrido como um verdadeiro filho de Deus.

CAPÍTULO 14

RETIRADA

Uma vantagem que o pregador reavivalista desfruta é sua liberdade de ir-se embora, deixando a outros — e a Deus — o cuidado dos frutos de seus labores. Trabalhando como apóstolo, plantando igrejas e preocupando-se com sua edificação, Watchman havia assumido uma carga espiritual muitíssimo pesada, que causou pesado efeito sobre si durante esses anos de crise política e desmantela­mento das comunicações. O mais grave de tudo era a responsabilidade moral que sentia pelos jovens obreiros de tempo integral que, sem salário assegurado de nenhuma espécie, achavam-se espalhados por todo o país servindo fielmente à causa do evangelho. Suas próprias experiências iniciais em provar a Deus para suas necessidades práticas haviam-lhe dado alguma compreensão das provas que enfrentaram em seu custoso serviço para Deus. Conforme havia dito, depois de observar um deles passando por uma severa provação de fé, "manter nossa mão no arado enquanto enxugamos nossas lágrimas — isso é cristianis­mo". ' Assim, podia escrever a um colega: "Os assuntos das igrejas e as coisas desta parte do mundo, estão pesando fortemente sobre mim. Não estou flutuando, mas, vou tri­lhando confiante no Senhor."

Pode-se perguntar como este trabalho que se expande rapidamente, com cerca de duzentos obreiros de tempo integral, viagens extensas, um programa de publicações, prédios alugados e planos para adquirir propriedade era sustentado financeiramente. O princípio central era dar o dízimo da renda pessoal. Este não era, em tempo algum, legalisticamente obrigado, já que o "décimo" era visto como sinal de dar alguém a Deus tudo que possui; mas, o princípio de dar era ensinado e diligentemente praticado; e, como resultado, todas as igrejas eram de sustento próprio. Havia, porém, como vimos, distinção entre as igrejas com seu corpo de anciãos e a obra com seus cooperadores, que não respondiam necessariamente perante nenhuma igreja local. Esses obreiros, quando saíam para a abertura de novos campos com o evangelho, podiam envolver-se, além do sustento de suas famílias, em tais desembolsos como a contratação temporária de salões e a impressão de porções das Escrituras e folhetos. Podiam receber donativos das igrejas e de cristãos individuais e aprendiam a vida de fé: mas, para aconselhamento espiritual e sustento material eram, em certo grau, preocupação pessoal do próprio Watchman Nee. Quarenta deles eram, na prática, sua responsabilidade direta. As finanças da obra eram trata­das, portanto, como um fundo separado das ofertas da igreja, controladas por ele e por dois ou três cooperadores mais velhos.

Os chineses têm um pendor especial para o comércio e as Boas-Novas salvadoras haviam trazido para a igreja mui­tos negociantes bem-sucedidos. Alguns destes expressaram seu amor ao Senhor em financiamento generoso da extensa expansão do trabalho. Numa penetrante palestra sobre "o mamom da injustiça", proferida neste período, Nee mos­tra como, se o Egito deve ser "espoliado", em favor de Deus, nosso dinheiro deve ser trazido, não enviado, através da fronteira que divide a moeda do mundo da moeda de Deus; isto é, nós mesmos devemos cruzar essa linha. Por conseguinte, não desestimulava o emprego secular, antes seguia as instruções de Paulo a Tito: "Quero que, no tocante a estas cousas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras." "Quanto aos nossos, que aprendam, também, a distinguir-se nas boas obras, a favor dos necessitados, para não se tornarem infrutíferos."'

Mas, com a anterior ruptura do comércio de Yangtze pela ocupação japonesa da costa marítima oriental, muitos interesses comerciais chineses foram prejudicados e na medida que dependia destes, toda a estrutura financeira da obra do Senhor tinha sido afetada. Duas vezes numa época crítica, logo depois de sua volta de além-mar, Watchman havia recebido donativos da Grã-Bretanha para o trabalho. Agora, com o rompimento de hostilidades entre o Japão e os Estados Unidos, a inflação dsparou e o comércio na concessão quase paralisou. Qualquer liberação e movimen­to de fundos para empreendimentos cristãos tornaram-se quase impossíveis. Era assim que agora via muitos desses jovens leais "apóstolos" e suas famílias passando fome, fisicamente enfermos e financeiramente privados de recur­sos. Os membros comuns das igrejas não estavam em melhores condições e, dessa maneira, nem eles nem ele dispunham de fundos sobrando com os quais vir em socorro deles.

Acontece, assim, que a história de Watchman Nee dá uma volta inesperada e uma volta que alguns possam achar fora de propósito. Desalentado em face deste cres­cente problema, durante alguns meses havia buscado em Deus uma solução. Agora, nos começos de 1942, deu um passo para o qual estava certo de que Deus o havia guiado, mas, que devia suscitar grandes interrogações nas mentes de alguns dos seus amigos.

Seu irmão George, portador de um diploma de bacharel em Ciências no campo da Química, obtido na Universidade de S. João, havia-se estabelecido como químico de pesquisa com seus laboratórios próprios. Também havia constituído em Xangai uma companhia farmacêutica manufaturadora e distribuidora, a Irmãos Nee, na qual alguns membros da família tinham participação. Não estava prosperando, por­que George era, antes de tudo, professor e cientista e não um homem de negócios. Watchman viu, contudo, que havia aqui algo com potencial. Conquanto não tivesse caráter militar, poderia, entretanto, permanecer viável porque satis­fazia a uma necessidade de tempo de guerra.

Já em 1938, enquanto estava em Londres, Watchman havia buscado conselho para seu irmão quanto a obter licença para a fabricação de sulfanilamida. Agora, concebeu a ideia de financiamento de uma companhia associada para a fabricação de drogas sintéticas de alta qualidade, empregando a experiência do irmão como químico e rever­tendo os lucros excedentes para a obra do Senhor. Assim, nasceu a China Biological and Chemical (CBC) Labora­tories, com sede em Xangai, na Kiaochou Road, n. ° 9. Para o cargo de gerente convidou C. L. Yin, de Hong Kong, que anos antes como jovem paciente no Sanatório de Kuling havia rejeitado o seu testemunho, para, mais tarde, ser capturado para o Senhor por John Sung. Para começar, como presidente da diretoria, Watchman deixava as coisas com a administração e meramente mantinha um olho vigi­lante sobre o projeto, usando uma vestimenta de estilo moderno para comparecer às entrevistas de negócios e depois voltava à roupa informal e ao velho chapéu de abas largas para visitar os santos.

Mesmo seus amigos mais íntimos estavam perplexos diante de sua aparente mudança de direção. Faithful Lucas conta como na companhia de David Tan e de Philip Luan fez uma visita ao lar simples de Villas Yu-Hua, n.° 13, onde moravam Watchman e Charity; e, enquanto estavam senta­dos na sala quase desaquecida com as cortinas de "black-out" e as janelas empastadas de tiras antiestilhaços, fez a pergunta que muitos andavam querendo fazer: Por que você deixou a obra de Deus para entrar no comércio? "Estou fazendo meramente o que Paulo fez em Corinto e em Éfeso", respondeu. "É algo excepcional e toma-me apenas parte do tempo. Dou uma hora por dia para treinar os representantes da companhia; depois disso, faço a obra do Senhor." E os representantes eram seus sobrecarregados "apóstolos" que foram estimulados, agora, a mesclar seu testemunho do evangelho com seu emprego remunerado. Mas, quando pressionado, acrescentava com ar pesaroso: "Sou como uma mulher que perdeu o marido e deve sair para o trabalho a fim de prover para as necessidades financeiras."

Significativamente, porém, admitia mais tarde uma ra­zão contributiva de menor importância: seu enfado provi­sório. Como homem brilhante, talvez se sentisse cercado de medíocres, faminto de estímulo de intercâmbio com mentes mais atiladas. Seu problema, então, pode ser reconhecido como o pecado medieval da acídia, "um desdém pelo exercício sagrado, um ódio à profissão de alguém... tão peculiar que quando os salmos estão sendo cantados, leva a vítima a interromper o versículo com um inoportuno boce­jo". Sua reação, portanto, a princípio de rebelião e no devido tempo de firmeza na adversidade, pode ser interpre­tada à luz do remédio de Chaucer: "Contra este pecado pútrido da acídia e contra seus desdobramentos, há uma virtude chamada fortitude. Esta virtude faz que as pessoas empreendam tarefas duras e angustiantes por sua própria vontade, com sabedoria e raciocínio."

Mas, em breve, seu novo sistema de vida começou a suscitar perguntas entre os quatro anciãos da igreja do Xangai, Chu Cheng, Tu Cheng-chen, Dr. Yu, e um outro não mais nomeado. A imagem que tinham dele tornara-se embaçada e, agora, era aos olhos deles um renegado, ou mudando a metáfora, um homem que lança mão do arado e olha para trás. Como podia, perguntavam, tal homem servir para ministrar a Palavra? Já no final de 1942 pediram-lhe que parasse de pregar em Wen Teh Li, embora seja possível que o Dr. Yu, homem sensível, objetasse, porque ele próprio retirou-se, em seguida, da pregação. Watchman ficou abatido e não sabia o que fazer. "Eu o invejo", disse a C. L. Yin enquanto sentados saboreavam um saco de suas amadas laranjas de Fukien. "Você é livre para fazer o que lhe apraz na fábrica e se depois sai e diz algumas palavras na reunião, o aclamarão como um irmão muito zeloso. Ninguém o questionará. Mas eu? Vinte e quatro horas por dia desejam saber exatamente como gastei meu tempo. Sou um homem marcado."

O choque para os crentes comuns causado pela ação de seus anciãos foi muito severo e, como é natural, despertou especulação de que havia motivos mais sérios para a medida tomada do que os apresentados. Pessoas maldosas apontavam para os seus almoços de negócio com gente do mundo, o tipo de pessoas a quem, no passado, seu testemu­nho tinha sido frutífero. Uma vez que os irmãos responsá­veis permaneciam silenciosos, achava que todo o seu testemu­nho era posto em dúvida; entretanto, por causa dos muitos trabalhadores que dependiam dele, não se achava com liberdade de abandonar o curso que havia adotado. Não há evidência alguma de que nos dois anos seguintes os anciãos lhe tenham feito qualquer observação. De sua parte, lembrava-se da mansidão de Margaret Barber em face de suas próprias tiradas e, mais uma vez, não fez tentativa alguma de vingar-se; mas, aceitou a ação deles como disciplina da parte de Deus que a seu próprio modo se justificaria.

Compreensivamente, Charity que era ativa em ajudá-lo no negócio, desde logo não apreciava esta atitude. Certo dia, ouviu Watchman responder a um chamado telefónico em que a voz na outra extremidade da linha continuava em alto volume. Watchman simplesmente ouvia tudo, respon­dendo de vez em quando: "Sim... sim... obrigado... Obrigado." "Quem era?" Perguntou, quando ele desligou o telefone. "Era um irmão dizendo-me tudo o que eu faço de errado." "E você era culpado de tudo isso?" Perguntou. "Não", respondeu. "Então por que você não lhe deu uma explicação em vez de simplesmente dizer 'obrigado'?" Exclamou com impaciência. "Se alguém exalta Ni To-sheng até ao céu", foi a resposta, "ainda é Ni To-sheng. E se alguém o rebaixa até ao inferno, permanece, Ni To-sheng." Deus era justo e para Nee isso era suficiente. Sabe-se que uma de suas características era ministrar ajuda financeira secreta a alguns dos irmãos que lhe faziam oposição.

Nos primeiros meses de 1943, os japoneses haviam preparado seus campos de internamento ou Centros de Assembleia Civil e, para esses locais, os estrangeiros foram os primeiros levados em fornadas. Watchman fez tudo quanto pôde por seus amigos, apresentando-se ponderadamente com artigos que provavelmente seriam de valor nos dias difíceis que tinham pela frente e estava muito preocupado com o Dr. Stearns que estava no hospital e, de fato, doente demais para ir com a família para o campo de concentração. No dia 16 de Março, na noite anterior em que Elizabeth Fischbacher e Phyllis Deck deviam entrar para o campo de Lung-hua, ao sul da cidade, os Nee as receberam em seu pequeno lar com o único fogão e as cortinas ver­melhas e pretas. Durante uma refeição simples, oraram a Deus, proclamando juntos Sua fidelidade; então, as senho­ras voltaram muito tarde, à noite, para sua casa no Bedford Terrace, 17. Achando que havia deixado a chave dentro, Phyllis Deck subiu, como às vezes faziam, até um ponto do telhado para alcançar uma janela dos fundos e enquanto o fazia, sofreu um derrame e caiu morta. Uma das mais sensatas e piedosas missionáias amigas da obra mor­reu, dizem, ainda sorrindo.

Para a C. B. C. Watchman havia cunhado o nome chinês "Sheng Hua Drug Manufacturing Company", entesourando-o, como um expediente de vendas, numa inteligente parelha de versos que proclamavam a eficácia das drogas. Além de produzir antibacterianos básicos como mercu­rocromo, começaram a fabricar sulfatiazol, sulfaguanidina, concentrados de vitamina B e Yatren. Naturalmente, havia problemas que não tinha previsto; e as exigências do projeto logo começaram a fazer incursões contra o seu tempo, pois, numa empresa você não é dono de si mesmo. Havia ciúmes comerciais e competição feroz com outras grandes empresas, cada qual lutando para oferecer o primeiro resultado de uma nova droga. Havia queixas dos acionistas e acidentes resultantes de sensibilidade às injeções de vitamina B. Além do mais, o negócio de família era um elo fraco, que o colocava sob suspeita porque reivin­dicava como distribuidora a primeira fornada de um novo produto. Seus dons de organização e de conciliação foram convocados para lidar com o que seria, em qualquer tempo, uma operação delicada, agravada agora pelas condições da guerra. Como resultado, Watchman estava frequente­mente fora de Xangai.

Ora, havendo feito arranjos, com seu irmão George, para o fluxo de remessas aos obreiros, planejava uma ausência mais prolongada. Com os exércitos japoneses avançando para o ocidente contra a fortaleza de Chiang Kai-shek, era, entretanto, possível a um civil chinês, usando viagem aérea e escolhendo a rota, cruzar a frente da guerra. Partiu de Chungking, de onde relatórios já haviam chegado a Xangai dizendo do despertamento espiritual nas províncias ainda livres. Ali, as ótimas universidades de refugiados e os mais astutos especuladores comerciais e bancários estavam trazendo o extremo ocidente rapidamente para o século vinte; e como não fazia parte dos planos de Watchman comercializar drogas com o exército japonês, começou a investigar linhas alternativas de distribuição nas áreas onde era maior a necessidade. Nisto foi muito bem-sucedidoo, logo obtendo contratos do governo que, aos poucos, elevaram a C. B. C. de uma das menores para um lugar entre os maiores atacadistas importadores e fabricantes de produtos farmacêuticos da China. Devia passar mais de dois anos em frequentes viagens entre Xangai e Chungking, onde alugou uma pequena residência e Charity juntou-se a ele, tendo o jovem Samuel, irmão dela, interesses comer­ciais em Szechwan. A reunião de crentes na cidade havia aumentado pelo influxo de cristãos deslocados e estava prosperando sob o ministério de Stephen Kaung que, com a esposa Mary, haviam escapado via índia da ocupação japonesa de Singapura. Watchman dispôs-se a ajudar alguns dos irmãos refugiados com emprego na indústria farmacêutica. De tempos em tempos, pregava a Palavra com clareza e vigor como de costume e, em 1945, deu uma série de palestras sobre as Sete Igrejas da Ásia, equiparando-as com as subsequentes fases da história da igreja e fê-lo de tal modo que reforçou suas próprias opiniões a respeito do lugar especial da igreja local na estratégia missionária de Deus.

Assim, em seu duplo papel, estendia-se intelectualmente como nunca antes e tirava proveito disso; mas, seu organis­mo, frágil nas melhores das vezes, começou a mostrar sinais da tensão imposta sobre ele. Durante algum tempo, as exi­gências da empresa eram tão grandes que pouca força lhe restava para realizar mais trabalho direto para o Senhor. Stephen Chan, filho de sua irmã mais velha, estudante na Universidade de Fu Tan, encontrou-os ambos, certo dia, num restaurante de Chungking, em 1945 e achou que nessa época Watchman estava tão sobrecarregado de cuidados seculares ao ponto de correr perigo de perder sua velha paz de espírito. Evidentemente, era tempo de efetuar uma mudança.

Entrementes, em Xangai, as reuniões de Hardoon Road continuaram a lutar, por algum tempo, com a diminuição de membros e, então, em parte por desestímulo e em parte para evitar filiar-se à União Religiosa patrocinada pela Potência Ocupante, haviam-se dispersado totalmente para reunir-se nos lares dos crentes. Esta era, também, uma sábia precaução. Os japoneses haviam instituído um complexo blo­queio de barreiras rodoviárias em cada quarteirão da cidade que, mediante um sinal, imediatamente seriam fechados durante horas ou mesmo dias. Em casos de severa represália, podiam até permanecer fechados durante se­manas, causando indizível sofrimento, visto que ninguém podia sair do quarteirão em que estava preso. Como os demais grupos cristãos em Xangai, portanto, a igreja de Hardoon Road sobreviveu, se assim se pode dizer, em casas particulares onde aqueles a quem o Espírito movia, assu­miam a liderança que podiam.

Mas, a guerra de oito longos anos arrastava-se para a sua conclusão. Um avanço final japonês em direção ao sul a partir de Hankow, dividindo a China em duas, quase pôs a pique o governo de Chungking; e, então, o Japão, com suas próprias ilhas domésticas pesadamente bombardeadas e as forças terrestres dos Estados Unidos preparadas para a invasão, aceitou no dia 16 de Agosto de 1945 as condições dos aliados para capitulação. O armistício com a China foi assinado em Nanking no dia 9 de Setembro.

Com as viagens já não constituindo mais um risco, Watchman deixou Chungking. Por ocasião do Natal, estava em Hong Kong e logo chegou de volta a Xangai, mas, ainda não para pregar, nem ainda para uma igreja restaurada. Os santos estavam em necessidade espiritual, mas, perma­necia confuso pelos rumores que o cercavam. Foi sugerido que havia malversado os fundos da igreja, ou alternati­vamente, que havia colaborado com os japoneses. Mesmo os seus íntimos colegas admitiam uma inquietação acerca de seu emprego secular. Evidentemente, ele próprio não poderia interferir. "Eu deixei isso", disse a um amigo, "nas mãos de Deus."

Nos meses que se seguiram, começou, silenciosamente, a fazer planos para desligar-se da C. B. C. Havendo dado satisfação aos acionistas, ele e George, conforme concor­daram, puseram de lado um grande acúmulo de lucros a fim de transferi-los para o trabalho e para futura provisão aos trabalhadores. A seguir, viajou para Foochow, onde a casa da família em Customs Lane, 17, em Nantai, ficara vazia. Havia um grande jardim e edifícios exteriores que adapta­ria idealmente como centro de treinamento de obreiros.

Como cabeça da família, agora, tomou providências para reocupá-la e, com a ajuda de Charity, pô-la em condições para uso do Senhor.

De volta aqui, nas redondezas onde passou a infância, buscou ajustar seu pensamento com jejum e oração e com as Escrituras abertas diante de si. Através de todos esses anos difíceis, não havia cessado de estudar a Palavra e de planejar com antecedência a expansão do evangelho. A confusão em Xangai exigia que aguardasse tranquilamente para ver como Deus Se moveria. O fiel Dr. C. H. Yu havia retornado à pregação ali e, em face das vantagens, estava lentamente atraindo os crentes, apelando para eles com fundamento na permanência de Cristo a que se reconcilias­sem uns com os outros. O progresso, porém, era pate­ticamente moroso. Algo mais parecia necessário.

Watchman começou a pensar em seu amigo Witness Lee. Atrás das linhas japonesas em Shantung, as condições da guerra não tinham sido tão duras e as reuniões nas cidades costeiras haviam crescido rapidamente em núme­ros. Particularmente, era o que acontecia em Chefoo onde Lee estivera pregando a Palavra com grande poder e notáveis resultados. Agora, nos meados de 1946, Watch­man escreveu de Foochow, apresentando-lhe as necessi­dades de Xangai e apelando para ele no sentido de vir em socorro deles. Achando que Deus confirmava isto em seu coração, Lee mudou-se com a família para Nanking e daqui como base, entregou-se à atrasada tarefa de recuperação nessa cidade e em Xangai.

A mensagem que trazia reforçava a do Dr. Yu. O Cristo vivo que habitava neles era a esperança de unidade do seu povo, do mesmo modo como era sua fonte de vida. Mas, Lee era ativista; e onde Watchman, como profundo estudioso da Bíblia, havia lançado fundamentos doutrinários, o tem­peramento mais volátil de Lee introduzia algo do excitamento e do fogo de Shantung. Isto trouxe lucros imediatos e numa questão de meses a confiança foi restaurada e o povo estava afluindo, de novo, para as reuniões, que logo cres­ciam como bola de neve.

Lee era enérgico e autoritário, prosperando em grandes números e tinha um pendor para organizar as pessoas. Este dom, agora, pôs a funcionar na situação confusa de Xangai. No começo de 1947, os números crescentes que compareciam estavam agrupados numa base distrital; e o padrão que se desenvolveu nos próximos doze meses era o seguinte: Duas vezes por semana reuniam-se em Wen Teh Li como a "igreja em Xangai" às 10 horas na manhã do Dia do Senhor para o ministério da Palavra (sendo o primeiro domingo de cada mês para evangelização e os demais para edificação); e, no sabádo à noite, para camaradagem. Três vezes por semana, reuniam-se como chias, ou "famílias", em quinze locais separados para o partir do pão na noite do Dia do Senhor, para oração terça-feira à noite e para instrução dos novos crentes na noite de sexta-feira. Além disso, havia uma reunião evangelística na noite de quarta-feira, centralizada em quatro chias. Os anciãos perma­neciam incumbidos da supervisão geral de toda a igreja, mas, cada chia tinha um irmão líder e uma irmã líder com diversos outros designados "diáconos em treinamento", para ajudá-los com a carga de deveres e instruir os indagadores.

Logo se verificou que as pessoas tendiam a perambular de um distrito para outro, de modo que, em Junho de 1948, foram distribuídas por seus distritos com a obrigação de obedecer aos seus guias e ser submissos para com eles e tinham de solicitar permissão para mudar. Nesta data, também, devido aos números crescentes, o problema da assistência pastoral tornara-se agudo. Os grupos que variavam de 40 a 200 crentes nas chias foram, portanto, subdivididos de novo em seções ou pais de uma média de 15 pessoas, amiúde abrangendo os que moravam na mesma rua ou viela, com duas pessoas responsáveis por cada pai para observar o comparecimento dos crentes nas reuniões e cuidar de sua condição espiritual. Este sistema conservou alguns valores descobertos durante a dispersão da igreja sob o domínio japonês, a saber, a intimidade de reuniões menores nas quais mais pessoas podiam participar na oração e na discussão e o desenvolvimento de dons espi­rituais nos que eram obrigados a assumir a liderança. Convém notar que não havia reuniões de homens ou de mulheres, nem reuniões especiais para estudantes ou para outras classes do povo, visto que a igreja não tinha classes. Mas, a existência de mulheres pregadoras dotadas parece ter criado um problema. De vez em quando, arranja­vam-se reuniões de mulheres, mas, um jovem cristão na reunião de Cantão lembra-se de um dia encontrar homens levantan­do um grande lençol branco em toda a largura do salão. Perguntou para que era aquilo e disseram-lhe que Ruth Lee e Peace Wang estavam visitando a igreja local. Visto que não deviam pregar a homens, os irmãos não tinham outra alternativa senão sentar-se atrás do lençol e ouvir, dali, as suas mensagens!

Evangelização não era tarefa apenas do pregador, mas, de toda a igreja. Todos os crentes eram treinados como "conselheiros". No final de uma pregação do evangelho, cada um virava-se e aconselhava a pessoa que estava sentada ao seu lado, anotando seu nome e endereço, fazendo-lhe perguntas, deixando-a falar e, se possível, mas, sem pressão, fazê-la orar, invocando o nome do Senhor — pois, às vezes, nesse mesmo ato seria salva. Os missionários que viam isto em ação ficavam compreensivelmente im­pressionados.

Nas noites de sexta-feira, havia exposição da Palavra especialmente destinada aos que haviam crido recente­mente. Em 1948, Watchman foi solicitado a fornecer cin­quenta e duas lições de instrução sistemática em funda­mentos da fé cristã, variando desde justificação pela fé até princípios práticos de vida eclesiástica. Essas lições eram acompanhadas por cada líder de grupo de Xangai e chegaram a ser amplamente usadas na maioria das igrejas. O curso do ano era praticamente obrigatório para os que alimentavam sérias intenções com Deus e os ausentes eram acompanhados diligentemente e recebiam as lições pessoalmente em casa, ficando, assim, em dia com o estudo. Se alguém ia ao Senhor em busca de salvação, logo sabia o que isso significava.

O efeito de tanta organização enérgica significava, porém, que algo da primitiva liberdade no Espírito come­çava a perder-se. Um sistema de relógio de ponto logo devia ser introduzido nas reuniões que, juntamente com um índi­ce completo de endereços, emprego, família, etc., dos cren­tes significava que sua fallha de comparecimento poderia ser prontamente observada. A Mesa do Senhor estava "cercada" e a pessoa era formalmente apresentada e usava um crachá com o seu nome. Já não podia ser aceita simplesmente mediante seu testemunho de que nascera de novo e amava ao Senhor. No passado, a Mesa tinha sido sempre um lugar onde a consciência e a convicção do Espírito Santo recebiam um papel pleno no coração do homem. Agora, porém, seu desligamento das outras cone­xões cristãs e o compromisso com as igrejas do Salão da Assembleia eram cuidadosamente examinados em primeiro lugar. E o conselho de Watchman a um irmão em 1940: "Não espere que o Espírito Santo faça a mesma coisa em Tsingtao como faz em Xangai: Dê-lhe liberdade", logo devia dar lugar à arregimentação imposta por uma forte mão autoritária no centro do trabalho. Witness Lee foi cuidado­so, é claro, a renegar ao conceito de "organização", explicando que, à semelhança de um copo que contém água potável, esses arranjos eram meramente os vasos para comunicar fatos espirituais. Mas, exortava todos na igreja a serem submissos. "Nada façam sem primeiro perguntar", insistia. "Desde a Queda, o homem faz o que lhe agrada. Aqui há ordem. Aqui há autoridade. A igreja é um lugar de disciplina estrita."

CAPÍTULO 15

VOLTA

No decorrer dos últimos anos da guerra, o Partido Comunista Chinês vinha conduzindo, desde suas sedes nas cavernas de loesses de Yenan, uma campanha franca contra a potência de ocupação. Um dos legados de sua Longa Marcha de 1935 tinha sido o desenvolvimento de perícia técnica em guerrilha baseada na mobilidade e ausência de bases fixas. Isto havia posto em operação efetiva para confinar os japoneses às cidades e estabelecer estreito contato com aldeões chineses que estavam atrás de suas linhas. Tinham aplicado com êxito sua política agrária de reforma da terra em áreas consideráveis ao redor do rio Amarelo e muito disto permanecia em vigor após a vitória aliada.

A segunda consequência da Marcha havia sido o surgi­mento de Mao Tse-tung como líder indiscutível e ideólogo cujos "pensamentos" eram, agora, estabelecidos como diretrizes infalíveis quando o Partido considerava sua política ambiciosa para o futuro. E o terceiro legado era uma impressionante autodisciplina que reunia os elementos dís­pares do P. C. C. numa força unificada, frugal e abstêmia em seu estilo de vida em contraste com o luxo dos dirigentes do Kuomintang de Chiang e totalmente convencidos da validade de seus alvos. Como resultado, enquanto no decorrer das hostilidades, muitos empresários e intelectuais chineses preferiram emigrar para Chungking e para o sudoeste, os pensadores mais idealistas, ansiosos por uma limpeza total da desordem e da corrupção internas do país, tinham ido para Yennan em busca de inspiração. Soube-se, assim, em Xangai, que no noroeste estava um impressionante corpo de homens com planos clarividentes para o futuro.

Desde o fim da guerra e da volta de Chiang Kai-shek a Nanking, a desconfiança entre o governo nacionalista e o Partido Comunista desenvolvera-se numa hostilidade que mesmo a hábil e sincera diplomacia do general George C. Marshall não conseguira acalmar. O extremo ódio de Chiang pelo P. C. C. levou-o, uma vez mais, a lançar uma campanha maciça de exterminação que devastou grande parte da área onde a reforma da terra havia criado raiz; e, em Março de 1947, havia até capturado Yennan. Por um momento, os nacionalistas pareciam haver triunfado. Mas, foi uma vitória vazia, porque a ética da guerrilha comunista alcançou sucesso, em grande parte, sem sentido. Os exérci­tos de Mao Tse-tung haviam meramente saído do caminho e estavam, com efeito, posicionando-se para dar um salto.

Nos corações daqueles que tinham responsabilidade nas igrejas do Salão da Assembleia, era muito grande a preocupação ocasionada pela prolongada ausência de Watchman Nee dos seus ministérios. Já em 1946, Witness Lee havia desafiado os anciãos de Xangai: "Estavam no Espírito quando tomaram a decisão de rejeitá-lo? E qual foi o efeito? Podem dizer que trouxe vida?" "Não", haviam respondido pesarosamente a cada pergunta. O remorso caiu entre os colaboradores e sua paciente busca para um recuo está bem expressa por um deles em Abril de 1947. "O caso do irmão Nee foi uma ferida mortal para nós e as palavras não podem traduzir até onde vão as consequên­cias. A acusação de que colaborou com o inimigo é intei­ramente infundada e muita coisa mais que se disse não foi com base em fatos reais. Isto era obra do diabo e demons­tra nossa própria deficiência espiritual naquela época, mas, esperamos ter aprendido a lição. As objeções á sua volta ao nosso meio foram eliminadas gradualmente. Está prepa­rado e há um crescente desejo de sua volta. Os irmãos aqui, em Xangai, visitam-no repetidamente em sua casa e, por meio de tal camaradagem, os corações se unem e as barreiras são derrubadas. De modo que estamos aguardan­do o momento exato."

Watchman também estava contente por esperar. "O tempo", disse a um amigo, "é servo de Deus." A seu pedido, dois empresários cristãos dispuseram-se a aliviá-lo de suas restantes responsabilidades na fábrica de produtos quími­cos e, em Abril, estava livre para dirigir-se de novo a Foochow, expressando, antes de partir, sua disposição para voltar à igreja em Xangai a qualquer momento. Em Fukien, como em qualquer outro lugar, os missionários voltavam a aglomerar-se em torno de seus postos e de seus rebanhos espalhados, mas, o número de pessoal estrangeiro era menor do que antes. As missões possuíam, portanto, pro­priedades de férias em número supérfluo no posto da montanha de Kuliang, ao leste da cidade. Duas delas eram cabanas de pedra, espaçosas, para esse fim, protegidas com muros contra tufão nos lados que faziam face para o oceano. Watchman comprou-as para usá-las como centro de treinamento de longo prazo para obreiros masculinos e femininos.

Aqui, no verão de 1947, um pequeno grupo de obreiros vindos de Fukien, de Chekiang e de outras partes, incluindo seu velho amigo de escola, K. H. Weigh (de partida de Hong Kong) juntou-se a ele para um intensivo curso de estudos. Numa série inicial de dez palestras, Watchman retornou ao seu ponto de partida espiritual, os princípios básicos de sua mensagem acerca da Cruz. Amplamente lidas deste então sob o título de The Release of the Spirit (Liberação do Espírito], relacionam-se com o princípio de "quebranta­mento" como condição para liberação do poder divino e com as palavras-chave de Jesus: "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto." Formavam uma base apropriada para um novo começo. Isto, porém, não era tudo. Em Xangai, Deus havia-o usado grandemente em reuniões recentes para estu­dantes recém-convertidos numa universidade nacional. Agora, em Foochow, alguém alugou para ele o grande salão da missão norte-americana e imensas multidões vinham da área vizinha para ouvir o ex-aluno de Trinity. Deus parecia estar de novo colocando Seu selo sobre o testemunho evangelístico do Seu servo.

Lá para o fim do ano, Witness Lee, que ainda agora concentrava suas energias sobre Xangai e Nanking, rendeu-se à pressão e fez uma visita às igrejas locais nas províncias sulinas batidas pela fome, terminando, em Feve­reiro de 1948, com uma série de reuniões em Foochow. Terminadas estas, ele e os que com ele estavam, dentre os quais estava Peace Wang, dirigiram-se a Watchman, em sua casa de Customs Lane, Nantai, em busca de conselho. Desde a vitória dos Aliados, o trabalho mais amplo fora deixado à sua própria sorte e Lee observara, com preocu­pação, a fraqueza e isolamento de seus obreiros espalhados. Aprovava vigorosamente o programa de treinamento de Watchman e aguardava, ansioso, a oportunidade de discutir mais com ele os métodos revolucionários de evangelização que ele próprio se sentira livre para desenvolver no norte ocupado pelos japoneses.

As igrejas nas cidades costeiras de Shantung haviam crescido em tamanho durante os meados da década de 1940 e Lee havia concebido o plano de evangelização por migração, embora não haja certeza se esta ideia se originou dele ou da observação de Watchman da notável frutifica­ção do movimento migratório do período de guerra para o sudoeste. Certamente, por motivos de população e de comércio, os chineses emigravam a todo instante, ao norte através da Muralha para a Manchúria e ao oeste para Sinkiang, ao sul e ao leste para o Oceano do Sul. "Agora", disseram os irmãos responsáveis em Shantung, "temos vastas reuniões aqui na costa e não é conveniente e nem compensador manter pioneiros solitários indefinidamente nas regiões distantes. É melhor que um grupo inteiro de crentes saia de Chefoo e se estabeleça como unidade eco­nómica do sustento próprio numa área não evangelizada. Que se tornem, ali, um núcleo de vida e testemunho cristãos."

Como precedente, encontraram em Atos a declaração de que "Naquele dia levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém e todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judeia e Samaria. Entrementes ..., iam por toda parte pregando a palavra." E de novo: "Então, os que foram dispersos..., se espalharam até à Fenícia, Chipre e Antioquia... anunciando o evangelho do Senhor Jesus." "Por enquanto", disseram os irmãos, "não temos perseguição nenhuma; mas, mesmo sem perse­guição, podemos seguir o exemplo deles e dispersar-nos."

Lee fez um estudo da matéria e, com cuidado, elaborou os pormenores. Grupos de famílias selecionados quanto a pessoal e representando um perfil conveniente de artes e profissões — jardineiros, sapateiros, professores, enfer­meiras, barbeiros — foram escolhidos e cuidadosamente preparados para a aventura. (A profissão de barbeiro era popular. Exigia pouco equipamento e oferecia amplo raio de ação para testemunhar." Todos esses davam-se à igreja e esta lhes supria as despesas de viagem e três meses de sustento no destino. No fim desse período, esperava-se que se sustentassem no novo ambiente.

Na primavera de 1943, dois grupos deixaram a igreja de Chefoo, um de trinta famílias que tomou a direção norte para a Manchúria e outro de setenta famílias para as cidades ocidentais até à ferrovia de Paotou através de Shansi para Sui-yuan, muito além da Muralha. Alguns membros desses grupos sofreram sérias dificuldades e o esquema não foi um sucesso total. Além do mais, como resultado deste plano, em 1943, o próprio Lee caiu sob suspeita dos japoneses por atividades de espionagem e enfrentou, com coragem, um mês de interrogatório com fla­gelação e o "tratamento de água". Não obstante, houve verdadeiros frutos espirituais resultantes da experiência migratória. Uma carta de Outubro de 1944 ao Dr. C. H. Yu em Xangai, de um irmão Sun da assembleia de Swatow, que escrevia de uma cidade situada nos braços superiores do rio Amarelo, conta como começaram as reuniões ali no dia 5 de Dezembro de 1943, com um núcleo de sete irmãos e três irmãs e, então, continua relatando o batismo, no dia 19 de Fevereiro de 1944, de seis homens que haviam crido recen­temente. "Não havia instalações internas para batizá-los, mas, estavam tão ansiosos por obedecer ao Senhor que simplesmente não podiam esperar. Assim, a única coisa possível era romper o gelo do rio que tinha uma espessura de sessenta centímetros. Os dias eram extremamente frios, mas, no dia escolhido, de súbito a temperatura subiu vinte graus. Montamos uma tenda móvel à beira do rio e ninguém ficou congelado ou doente." No dia 2 de Março realizaram o segundo batismo de quatro irmãos e uma irmã, agora com 66 anos, que normalmente nunca saía de casa no inverno com medo de apanhar resfriado. Desta vez, a dificuldade era maior por falta de água sob o gelo, e tiveram de procurar, rio abaixo, um lugar mais profundo. De novo, não houve efeitos prejudiciais, mas, apenas grande alegria; e a carta terminava com palavras de exortação aos crentes de Xangai. E este foi apenas um dos muitos centros conhecidos onde nova vida começou a brotar por esses meios.

Agora, em Fevereiro de 1948, no lar de Watchman em Foochow, analisavam a aplicação dessas experiências ao cenário de confusão que Lee havia encontrado no sul. Não podia, uma região como Kwangtung ou Fukien, propunha Lee, ser melhor evangelizada por esforço coletivo de um centro tal como Foochow?

Watchman estava de acordo. Jerusalém, ressaltou, era um centro assim. O método de Deus era concentrar seus obreiros ali, salvar muitas almas, estabelecer uma igreja e, depois, dispersá-los de modo que fossem para a Samaria e até aos confins da terra. "O que vimos em Hankow, em 1937, concernente ao capítulo 13 de Atos e o princípio de os apóstolos saírem de Antioquia, era certo quanto a isso; porém, o livro de Atos não começa no capítulo 13, mas, no capítulo 1. Nossa falha nesses poucos anos está em que não temos tido nenhuma estrutura da obra correspondente ao princípio imperante em Jerusalém. Deveríamos concentrar colaboradores para o ministério em centros regionais até que as igrejas locais estejam plenamente estabelecidas e, daí para a frente, transferir comunidades inteiras para outras partes — a não ser que o Senhor prepare uma perseguição para dispersá-los".

De certo modo, isto veio como um raio de luz nova para todos eles. Tinham vindo a ele, diz Lee, buscando restaurar a comunhão, mas, por intermédio dele Deus, deu-lhes algo mais. Do mesmo modo que antes chegaram a ver as igrejas num contexto estritamente local de cidade por cidade, agora viam, de novo, a obra neste ambiente geográfico amplo. Isso significaria para os "apóstolos" ou obreiros o fim da empresa individualista. "Nós colaboradores então presentes", diz Lee, "de livre e espontânea vontade re­nunciamos ao nosso trabalho e nos decidimos por Foochow como nossa Jerusalém e ponto de partida." Estavam pre­sentes, também, diversos dirigentes da congregação local em Tsin Men Road, de Foochow. Estes convocaram todo o seu grupo de irmãos e irmãs para o dia 3 de Março, quando "formalmente transferiram a igreja e nós, colaboradores, formalmente a recebemos". "Dessa maneira", diz Lee, "o trabalho e a igreja em Foochow tiveram um novo come­ço." Esta declaração parece uma inversão surpreendente da anterior insistência de Watchman sobre a completa dependência das igrejas locais do controle apostólico (isto é, obreiro). É a partir deste ponto, com efeito, que o autoritarismo mais arrochado se faz sentir por todo o movimento, para evidenciar-se em anos posteriores nas igrejas fora da China. Mas, inicialmente, este gesto da parte dos presbíteros de Foochow foi, talvez, na maior parte, um ato generoso de reconciliação para com o próprio Watch­man, depois de vinte e quatro anos de exclusão de sua comunhão.

Lee era o portador, também, de um convite conciliatório dos anciãos ou presbíteros de Xangai. Pediram a Watch­man que conduzisse uma Conferência em Hardoon Road no mês de Abril e ele achou que podia aceitar. Ali chegado, encontrou sessenta obreiros de toda a China e mais trinta anciãos e outros da igreja local de Xangai à sua espera. Incluíram alguns de Shantung que tinham visto a reforma agrária comunista em operação bem de perto e que não alimentavam ilusões quanto à hostilidade das células do Partido à fé cristã.

Watchman retirou-se a um lado, antes de tudo, com os anciãos de Wen Teh Li e na presença de Deus fez plena confissão de suas próprias falhas em anos passados. Com este ato de reconciliação, restaurou-se plenamente a co­munhão. Dentre os cooperadores, foi agora recebido de volta num ambiente novo. Algum tipo de hierarquia fora estabelecido entre o alto escalão que lhes dava uma ordem de antiguidade, expressa por uma fila de cadeiras, na qual a cadeira n. ° 1 foi, por unanimidade, reservada para ele. Isto, também, pode-se ver como, em parte, talvez, um gesto de confiança nele, mas, o slogan "Curvar-se à autoridade” devia, com efeito, tornar-se novo e, para muitos, um aspeto muito perturbador da obra a partir de agora. Para nós, hoje, parece inteiramente fora de harmonia com seus ensinos passados e jeito de trabalho que nos maravilha se fosse possível originar-se (como uns poucos têm pesado) numa mudança de mente no próprio Nee, ou se, em qualquer época quando era espiritualmente vulnerável, perdesse o equilíbrio pelo entusiasmo de outros.

Todos os presentes estavam, agora, preparados para rededicar-se à cooperação com Deus na muita comentada invasão migratória da China interior. Watchman esboçou-lhes o que lhe ia na mente. "Quando Deus dispersou o povo por meio da perseguição, havia alguns milhares de crentes em Jerusalém e havia um movimento constante para fora. Entretanto, quando Paulo voltou a Jerusalém, havia os mesmos grandes números de crentes. Não devemos perma­necer estacionários, mas, sair e deixar espaço para outros, porque serão acrescentados tantos quantos os que saem. Hoje, a China tem cerca de 450 milhões de habitantes (atualmente, 1988, ultrapassa a casa de um bilhão — N. do T.) e apenas um milhão de cristãos. Demos a todos o mesmo treinamento e, depois, enviemo-los para fazer a obra e veremos a Igreja proclamando o evangelho por toda parte. Não precisam esperar pela perseguição. Se por persegui­ção ou não, o dever deles é sair. Para muitos de nós, metade do nosso tempo já se foi. A metade restante deve ser gasta em tomar um curso direto. Se não formos fiéis, o Senhor escolherá outros que sigam este caminho; mas, isso tomaria, no mínimo, outros vinte anos. Devemos poupar esses vinte anos para Deus." Como primeira prioridade enfatizou de maneira especial a região noroeste não evan­gelizada. "Creio", concluiu, "que dentro de breve tempo a China toda pode ser ganha para o evangelho. Demos tudo o que temos para realizar isto."

Daí para a frente, dirigia-se à congregação apinhada de gente, dentre os quais muitos esperaram longo tempo para ouvi-lo; e uma de suas primeiras mensagens baseava-se nas palavras de Jesus: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." O efeito foi explosivo, antes de tudo, na volta para o Salvador de um grande número de homens e mulheres até aqui não comprometidos com Ele. Nesse mês, nada menos que duzentos novos convertidos foram batizados e incorporados na igreja. O local de reunião que comportava somente quatrocentas pessoas foi ampliado para acomodar mais de 1.500 crentes, com pessoas sentadas nos degraus de escadas e nos salões atrás do edifício ou em pé na ruazinha. Foram feitos planos urgentes para a aquisição de terreno a fim de nele construir-se um novo e maior salão de reuniões.

Já se sabia que Watchman havia transferido toda a empresa C. B. C. para a igreja. Na euforia predominante e na pressa de consagrar-se a Deus, muitos começaram a trazer ofertas em dinheiro, pequenas e grandes e a deposi­tá-las nas ofertas da igreja para a extensão da obra. Outros vinham com substanciais donativos em espécie. Já havia crescente desilusão com os altos impostos, com a inflação descontrolada e o caos económico promovido pelo corrupto governo nacionalista; e isto havia produzido em muitos uma revulsão do mundo e de seus caminhos. Havia, pois, aqueles que transferiam todos os negócios — tipografia, fábricas de tintas e que tais — como donativos para uso da igreja. Tal doação de riqueza da parte dos cristãos não tinha sido vista até aqui na China. Era o capítulo 4 de Atos a repetir-se com todas as suas energias e, também, com espaço de sobra para seus possíveis absusos — como quando, por exemplo, as famílias não eram unânimes numa ação tomada. Todavia o slogan "Dai a Deus" foi passado de uma cidade costeira para outra com poder reavivalista e muitas bênçãos espirituais acompanhavam a recente con­sagração de vidas ao Senhor Jesus.

O problema, contudo, foi que a partir de agora as igrejas alcançaram uma prosperidade material sem para­lelo. Começaram a comandar extensos fundos e a operar empresas (pois mesmo a própria C. B. C, em vez de ser passada adiante, fora retida pela igreja) justamente numa época quando a palavra "capitalista" devia tornar-se um termo de opróbrio e quando, num regime sem nenhum conceito de Comissão de Beneficência, a mera posse de riqueza suscitaria imediata suspeita. O processo para reforma ideológica do movimento parece quase, por este desenvolvimento mal-concebido, ter sido presenteado numa bandeja, já feito, ao Partido Comunista.

Agora foi retomado em Foochow o programa de trei­namento. Em meados de junho de 1948, mais de cem jovens colaboradores, procedentes de várias cidades, reuniram-se para isto no grande retiro da montanha Kuliang. Simon Meek e Lucas Wu de Manilha e Faithful Lucas estavam entre os convidados de além-mar; e uma missionária com vinte anos de experiência, Joy Betteridge, também esteve presente. Uma palavra de boas-vindas para juntar-se a eles tinha sido mesmo estendida via Samuel Chang na reunião de Chengtu a dois jovens pioneiros, Geoffrey Buli e George Patterson que no momento se dirigiam à fronteira do Tibe­te. Em Abril, Watchman escreveu a um amigo no Ocidente: "Sim, penso que a China tem necessidade de missionários. Mas, para que sejam úteis como bênçãos divinas, deviam aprender a sujeitar-se e a ser um só corpo com as assem­bleias locais. À medida que os irmãos aqui estão aprenden­do a ver a autoridade de Cristo como Cabeça do Corpo e a pôr fim aos caminhos independentes, minha esperança é de que os irmãos do exterior procedam de igual maneira. Estamos quase 'estragados' por bênçãos em toda parte, por isso, enviem-nos todos os que vocês puderem dispensar."

O vale arborizado de Kuliang, muito acima do mosteiro budista de Boiling Spring, comandava uma extensa vista do Estuário do Min desde Pagoda Anchorage até ao oceano e era um ambiente ideal para preparação espiritual. Aqui, o grupo acomodou-se para estudo longo e disciplinado. Watchman e Charity possuíam uma cabaninha, adornada de flores, onde ele esperava em Deus e punha em ordem os pensamentos que havia amontoado nos anos de sua retira­da e comparativo silêncio. Sua produção nos meses que se seguiram foi imensa e cobria temas tão variados quanto as qualificações de um obreiro cristão, o ministério da Palavra de Deus, os princípios da autoridade espiritual, o problema da doença, as prometidas cinquenta e duas lições para crentes novos, os negócios da igreja local, os novos prin­cípios de extensão da obra do evangelho e como estudar a Bíblia. A princípio, todos os domingos, Faithful Lucas fazia a longa viagem até Nantai e voltava para partir o pão com a igreja local, caminhando pesarosamente pelos intér­minos degraus de pedra com sua vista de verdes campos de arroz, aldeias de marrom avermelhado e os antigos muros negros da cidade de Foochow. Por fim aproximou-se de Watchman, que ainda estava evidentemente incerto de onde ficava com todos os obreiros reunidos. Sinceramente, assegurou-lhe que tudo estava deveras bem e obteve sua concordância de que podiam encontrar-se para a Mesa do Senhor num pequeno salão de oração na aldeia localizada no topo de Kuliang, no meio de seus campos em forma de terraço.

Quando Watchman se dirigiu aos obreiros, foi como se comportas há muito tempo sob pressão se abrissem. Anda­va para cima e para baixo, com as mãos para trás, simplesmente falando o que lhe vinha do coração. Após as palestras, dava oportunidade para perguntas e suas respos­tas eram valiosas — nunca evasivas, mas, sempre francas e relacionadas com o ponto em questão. Todas as manhãs ha­via uma sessão destinada a testemunhos pessoais em que um obreiro falava durante meia hora, depois do que os ou­tros eram convidados a fazer crítica. E, finalmente, Watch­man faria um resumo para benefício de tal pessoa. Todo o programa de treinamento era conduzido sob um forte senso de urgência. O futuro político da nação era uma incógnita. Em seu primeiro editorial de Maio a uma revista de Xangai, The Ministry [O Ministério), Watchman havia escrito: "Estes dias são muito mais críticos do que tínhamos ima­ginado."

No norte, a captura de Yennan pelos nacionalistas no ano anterior havia-se comprovado uma vitória vazia. As duras brutalidades que infligiam sobre aldeões inocentes a quem haviam "liberado da reforma agrária" é que consti­tuíam a sua ruína. Tais atos expunham seus breves ganhos à erosão pelas guerrilhas comunistas que operavam habil­mente por trás de suas linhas para conquistar as afeições dos camponeses. No final de Junho de 1947, Mao Tse-tung teve condições para lançar unidades de seu Exército de Libertação do Povo numa contra-ofensiva através de Honan que, em Setembro, havia penetrado até ao vale do Yangtze. Outras unidades foram transferidas para o leste e para o norte. Nos começos de 1948, a Manchúria foi separada da China e no mesmo Outono, muitas cidades de Honan e de Shantung haviam caído sem luta. Disciplinadas e bem conduzidas, as tropas comunistas tinham fé ilimitada em sua causa. As forças de Chiang, por contraste, estavam desanimadas em virtude de auto-repugnância, ignorância de seu mister e tirania de cima e estavam perdendo com rapidez qualquer vontade que tivessem tido pela luta civil. Em breve, regimentos e até mesmo divisões estavam deser­tando ou rendendo-se sem combate quando a disciplina e a lealdade ao seu Generalíssimo decaíram.

Foi contra este pano de fundo de incerteza que o programa de treinamento de Kuliang avançou obstinada­mente. Nos meses de inverno houve uma pausa para revisão e para uma conferência de obreiros em Hardoon Road. Watchman e seus colegas encontraram Xangai per­turbada pela fome e pela angústia económica, pela inflação galopante, roubalheira e violência da plebe. Os severos controlos e repressões da polícia tornavam a vida arrisca­da, e muitos de seus cidadãos, agora, ansiavam pela paz a qualquer preço.

Em Wen Teh Li, Watchman participou no ministério da Palavra sob condições de grande solenidade e viu que o povo atendia cada pronunciamento seu. A igreja passou muito tempo em oração, pedindo a Deus que controlasse os acontecimentos de tal maneira que as portas permaneces­sem abertas para o evangelho. Ele próprio discutia em reuniões reservadas com seus obreiros e anciãos, tornando conhecida a sua convicção, alcançada depois de muita oração, que no caso de uma reviravolta do governo para o P. C. C, deveria permanecer em Xangai. Havia lido Marx e Engels e estava certo de que os comunistas se comporta­riam de maneira muito diferente dos japoneses e que as condições para o testemunho cristão sob o maoísmo seriam intensamente difíceis. A igreja já não podia ser livre para servir o Senhor, mesmo no sofrimento e podia enfrentar eliminação total. Mas, sua vocação pessoal era para servi-Lo na China e levar Cristo ao povo chinês. Chiang e seus ministros podiam bater em retirada, mas, não a igreja de Deus. Aos poucos obreiros presentes, disse: "Quando os mais velhos caem, vocês mais jovens devem continuar avançando." Acrescentou ainda sua recomendação de que, se as circunstâncias obrigassem a um movimento de popu­lação além-mar, Witness Lee devia estar preparado para ir com sua família e trabalhar pela divulgação do evangelho entre a dispersão chinesa. Lee concordou em trazer este plano perante o Senhor. Depois, o grupo de treinandos regressou a Foochow para retomar seus estudos na monta­nha Kuliang.

 

CAPÍTULO 16

ESCOLHA FIRME

No dia 31 de Janeiro de 1949, o Oitavo Exército Co­munista entrou na cidade de Peking, que estava indefesa. Em Abril, os exércitos de libertação agruparam-se na lamacenta margem norte do Yangtze de três quilómetros de largura. Quase meio milhão de soldados do Kuomintang foram deslocados ao longo da margem sul que tinham pela frente, apoiados por uma poderosa marinha e pela força aérea. No entanto, quando no dia 20 de Abril Mao Tse-tung e Chu Teh deram a ordem de cruzar o rio e libertar o sul, as flotilhas de barcaças de fundo raso, de balsas e de sampanas atravessaram quase sem oposição. Nanking, a capital sulista das últimas três décadas, rendera-se às realidades da situação.

Watchman já havia telegrafado de Foochow dando instruções a Witness Lee para mudar-se com a família de Xangai para o novo campo de trabalho em Taiwan. Tam­bém havia mandado Charity com um pequeno grupo de senhoras para Hong Kong. Lucas havia partido para Sin­gapura e Meek e Wu para Manilha. Com o Exército de Libertação do Povo avançando rapidamente para o sul, capturando uma média de três cidades por dia, ficou de­cidido interromperem prematuramente o curso de treinamento em Kuliang. Os obreiros desceram para Foochow e os que vieram do norte foram para as cidades onde pudessem espalhar-se rapidamente e assim voltar às suas igrejas. Witness Lee acabava de chegar para relatar a situação de Xangai antes de voltar a Taipei. O novo salão de construção leve em Nanyang Road, 45 estava, disse, completo e comportaria quatro mil cadeiras. As cinquenta e duas Lições Para Novos Crentes estavam no prelo. Havia muita pressão económica, mas, as reuniões continuavam vivas e estavam provando a fidelidade de Deus de novas maneiras.

Em Maio não havia dúvidas de que Xangai estava prestes a cair e Watchman sabia que devia voltar para lá. O exército de libertação que entrou na cidade no dia 25 de Maio era impressionante em extremo — disciplinado, bem alimentado, bem vestido em seu uniforme verde-oliva, per­feitamente doutrinado nas convicções comunistas e condu­zido por oficiais que viviam e se vestiam com tanta simpli­cidade como os soldados rasos. Para alívio de todos, não havia pilhagem nem violência, indício da limpeza social que devia seguir-se. Durante um breve tempo, Watchman reas­sumiu o cuidado da igreja com estudos bíblicos semanais e instrução para os obreiros e ajudantes sobre uma ampla variedade de assuntos e necessidades. Além disso, ele separou tempo para uma nova fase em sua própria edu­cação. Fazia tempo que assimilara o esboço da doutrina marxista e entendia bem seu caráter anti-religioso. Tinha bom relacionamento, também, com diversos membros do Partido na cidade, convictos, mas, até aqui secretos, um dos quais, 16.° tio de Charity, morava perto de sua casa. No presente, encontrava-se com este homem várias vezes para conversar, com o objetivo de descobrir quais eram os futuros planos do Partido com vista aos grupos religiosos. Previa colisão entre as autoridades e os crentes de um modo geral sobre certos problemas da vida e do caminhar cristãos e o P. C. C. bem podia comprovar-se hostil ao programa da igreja de evangelização de âmbito nacional.

Mas este foi o período de lua-de-mel que durante dois anos seguiu-se à Libertação. Os membros do Partido obser­varam silenciosamente os cristãos, procurando descobrir os líderes de influência e dotes e conquanto aparentassem indiferença, faziam seus cálculos para o futuro. Assim, o tio de Charity fez afetuosas promessas para ajudar Watch­man, pessoalmente garantiu-lhe que se ele permanecesse em Xangai não seria molestado e nada havia que temer. É provável que Watchman, à semelhança de muitos outros, fosse enganado por aqueles oficiais do Partido que julgava fossem homens razoáveis com os quais se podia transacionar.

Naquele verão, quando Xangai sofreu a fúria de tufões e de inundações, o coração do vale de Yangtze caiu nas mãos dos comunistas com a captura da metrópole Wuhan. Em Outubro, os nacionalistas haviam perdido Cantão e Kwei-yang e Chungking caíram um mês depois. No dia 1.° de Outubro de 1949, foi proclamada em Peking a República do Povo da China, com Mao Tse-tung como Presidente e Chou En-lai como Primeiro-Ministro.

Durante essas semanas, Watchman aproveitara a opor­tunidade para visitar Taiwan a fim de encorajar Witness Lee e o punhado de cooperadores que o haviam acompa­nhado até lá. Os muitos refugiados estavam desalentados pelas severas dificuldades de moradia e de emprego, mas, nos poucos dias que passou ali, Watchman reuniu algumas centenas para reuniões e formou-se o núcleo de uma nova igreja em Taiwan que, sob a direção de Lee, devia prosse­guir de força em força.Exaurido, porém, de suas forças e oprimido pelos muitos cuidados, Watchman continuou viagem e foi para Hong Kong a fim de juntar-se a Charity em Diamond Hill na península Changsha de Kowloon. Enquanto esteve ali, realizou uma série de reuniões para jovens e viu os começos de reavivamento nesta igreja local que até aquele momento não florescia.

Watchman regressou a Xangai nos primeiros meses de 1950 durante cujo período, no dia 6 de Fevereiro, aquela cidade foi pesadamente bombardeada pelos aviões nacio­nalistas baseados em Taiwan. A usina geradora de eletricidade foi atingida e durante algum tempo a luz, a força e a água corrente foram severamente racionadas. De volta uma vez mais a Hong Kong, incumbiu dois homens de temperamentos opostos, James Chen e K. H. Weigh, de trabalhar juntos para a causa do Senhor. Ajudou-os a estabelecer planos para conseguir um local em Observatory Road, Kowloon, para reunião de uma nova igreja.

Nesse mês de mo de 1950, Witness Lee veio estar com ele ali a fim de relatar sobre o desenvolvimento em Taiwan e foi-lhe assegurado que voltaria para lá e continuaria a obra. Antes de despedir-se pela última vez, Witness tentou sinceramente dissuadi-lo de regressar a Xangai. "Mas o irmão", protestou Watchman, "gastou tanto tempo para edificar a igreja ali. Posso abandoná-los agora? Não per­maneceram os apóstolos em Jerusalém sob condições exatamente iguais?" Com a experiência de Lee do que o P. C. C. havia feito nas comunas de Shantung, revisaram pois, seus próprios planos recentes para a extensão do evange­lho e discutiram como, talvez, os cristãos viviam comunalmente como igreja visível podiam desfazer as suspeitas e garantir a continuidade da obra. Mas, de novo, em sua última noite, Lee amorosamente renovou seu apelo pessoal a Watchman. "Se você voltar", disse, "esse pode ser o fim." Watchman, porém, havia recebido um telegrama dos anciãos de Xangai, falando de seus problemas e apelando para que voltasse em breve. Peace Wang, que se achava presente, acrescentou seu apoio ao apelo que lhe faziam. "O Senhor preside aos dilúvios; como rei presidirá para sempre", lembrou-lhes. Não obstante, Lee levou-o a um lugar à parte ainda uma vez mais a fim de fazer-lhe um sincero apelo pessoal. Afinal, Watchman exclamou: "Minha vida não importa. Se a casa estiver ruindo, tenho filhos lá dentro e devo sustentá-la, se necessário com minha ca­beça."

Para provar sua lealdade ainda mais, acabam de che­gar notícias de sua terra natal, em Swatow, de que sua mãe, Lin Huo-ping, foi chamada à glória. Mesmo assim, sua resolução não esmoreceu e deu instruções à sua irmã mais velha, Sr.a Chan, de atender às providências do funeral enquanto partia para as províncias do norte. Foi, em parte, para dar suporte a um movimento de evacuação de crentes para Hong Kong que havia incentivado anteriormente e, em parte, para levar a cabo o que os irmãos controladores da empresa farmacêutica (presidida por Witness Lee) haviam concordado em realizar, a saber, sua entrega a uma empresa operadora da Manchúria.

De regresso a Xangai, chamou Charity para juntar-se a ele aí e logo depois falou aos obreiros sobre "remir o tempo porque os dias são maus". Admitiu as oportunidades desperdiçadas no passado e prosseguiu: "Nenhum servo de Deus deveria ficar satisfeito com as realizações pre­sentes. Aquele que se contenta com o que é, não passa de um perdedor de oportunidades. Creio que aquelas que Deus nos está dando agora estão muito além de qualquer coisa que possamos conceber. Todos os dias, Deus nos está dando oportunidades e quem pode avaliar o agregado? Estamos hoje a 7 de Julho de 1950. Remir o tempo é apegar-se, hoje, às oportunidades que Deus nos designou para hoje. Quando a igreja sepulta um talento, há uma grave perda. Achamos que, pelo fato de o lugar de reunião em Nanyang Road ter sido alcançado, podemos acomodar-nos pelo resto da vida. Efetuamos nossa pregação e dez ou vinte almas são salvas e pensamos que o resultado foi bom. Mas, se a intenção do Senhor era que conquistássemos mil almas em um dia, então novecentas almas se perderam! Quando Deus atua, atuemos nós também. Tão-logo a porta se abre levemente, entremos, porque o problema com as oportunidades é que não esperam por nós." E prosseguiu, sugerindo que houves­se grupos inteiros de crentes cristãos em outros movi­mentos, tais como a "Família de Jesus" (Yeh-su Chia Ting), sedeado em Shantung com seus princípios de viver comu­nal, a quem na presente crise podiam recorrer em comu­nhão. "Podemos aprender deles", disse, "porque estão adiante de nós na forma de possuírem todas as coisas em comum; mas, quanto à verdade da Igreja, não há dúvida de que podemos servir-lhes de ajuda. Se esta for de verdade a oportunidade de Deus, não a percamos."

Parece claro que Nee acreditava que algum grau de cooperação com o novo governo, nas linhas do capítulo 12 de Romanos, fosse a um tempo possível e necessário, dependendo, é claro, de como a cláusula na Constituição fosse aplicada no sentido de garantir liberdade de religião. As igrejas do Salão da Assembleia recebiam circulares, mostrando aos crentes a urgência de não emigrarem, mas, de permanecerem na China por amor ao Senhor. Deviam estar preparados para abrir mão do conforto material e, como bons cristãos e bons chineses, cooperar sinceramente para as obras públicas como construção de estradas e meios de irrigação. Somente não deviam atuar em conflito com a Bíblia nem negar o seu Senhor.

Isto funcionou bem no início, mas, algum conhecimento do marxismo-leninismo deveria tê-los advertido de que as primeiras impressões são ilusórias. A política comunista é relativa, condicionada por três coisas — tempo, lugar e circunstância — e quando qualquer dessas se altera, a política pode mudar também. As atitudes podem, portanto, alterar-se numa noite e não existe tal coisa como o Partido cumprir uma promessa.

Em algumas cidades costeiras percebeu-se que o pró­prio tamanho das reuniões podia expô-los à crítica e isto encarecia de novo a necessidade de dispersão por amor ao evangelho. Na província de Chekiang diversos grupos de voluntários haviam, pois, disposto de seus haveres e aban­donado suas raízes, mudando-se para áreas despovoadas de Kiangsi. Aqui haviam estabelecido assentamentos agrí­colas para trazer a terra de volta ao cultivo. Construíram suas próprias casas simples, barreadas e desde o princípio viveram uma vida comunal rigorosa governada por uma rotina estrita que dava muito tempo para as devoções pessoais e grupos noturnos de edificação nas coisas espiri­tuais.

Tinha havido muito entusiasmo em relação a esta mudança, especialmente quando conquistaram uns poucos comunistas para o Senhor. "Nosso dia chegou", pensa­ram. Mas, em Junho, a política agrária de Reforma da Terra, bem testada, tornou-se lei. No ano seguinte, ou tanto, ao passo que as cidades gozavam de alguma calma, as aldeias eram sublevadas por reuniões de massa, jul­gamentos populares (e em alguns casos execuções) de pro­prietários de terras e camponeses ricos e a redistribuição de terra entre os camponeses e trabalhadores pobres. Todo o demais trabalho chegou a um ponto morto e todas as igrejas do país foram fechadas enquanto perdurou a situa­ção. Os migrantes cristãos não ficaram isentos das reu­niões de reeducação e luta e de uma deliberada perversão de seus motivos. No devido curso iam verificar, como verificou a Família de Jesus, que não eram menos suspeitos entre os comunistas por fazerem a coisa certa por motivo errado do que por não fazerem absolutamente nada.

Os missionários que viviam em Hunan nesta ocasião descrevem como sua congregação se dispersou e estavam a ponto de partir e foram corajosamente favore­cidos por um irmão de um grupo do "Pequeno Rebanho" que havia ultimamente migrado para a região. A despeito dos perigos, estava dirigindo as reuniões à luz de um lampião quebrado (que puderam substituir por um melhor). A polícia chegou e disse-lhe: "Você não pode levar avante os seus serviços", ao que replicou: "Temos de fazê-lo, vocês bem sabem! Nossa Bíblia diz que não devemos parar de congregar-nos." — "Então, se vocês devem, podemos frequentá-las?" — "Certamente que podem!"

E um missionário em Chekiang escreveu, logo depois de partir, acerca das condições naquela província. "A in­fluência do 'Pequeno Rebanho' permeia o país. Começou a lançar uma nova e forte ênfase sobre a evangelização. Jamais teve nenhuma filiação com missões estrangeiras e este é um grande bem na Nova China. Não se dará o caso de que este movimento seja um instrumento especialmente preparado por Deus para o tempo presente? É estreitamen­te unido, posto que moderado e adaptável em matéria de organização; é inteiramente nativo, profundamente espi­ritual e com agradável fervor missionário." Uma carta recebida um ano ou tanto mais tarde falava da possível união dos diferentes grupos de cristãos na cidade e comenta: "Isto significaria uma união sob a liderança do 'Pequeno Rebanho' e é, talvez, a melhor provisão contra as dificuldades do momento."

No decorrer de 1949, quase todos os missionários com visão evangélica haviam tentado permanecer em seus pos­tos de vanguarda na esperança de continuar seu testemu­nho sob o novo regime. Mas, em Maio de 1950 realizou-se uma série de reuniões, à maneira comunista, tarde da noite em Peking entre o "Premier" Chou En-lai e três líderes protestantes, liderados por Y. T. Wu, da A. C. M. de Xangai, que durante dez anos havia sido membro do Partido, secretamente. A finalidade era elaborar um Mani­festo Cristão Para as Igrejas Protestantes, das quais Chou tratava os três como líderes representantes e membros fundadores de um novo movimento cristão cujos princípios, agora, com toda demonstração de cordialidade, ditava para eles. A "Direção do Esforço Para o Cristianismo Chinês na Construção da Nova China" que emergia exigia que a igreja em todas as suas atividades aceitasse a lide­rança do Governo do Povo. A cooperação no Programa Comum do Estado, de reforma, devia ser o preço da liber­dade religiosa. Chou praticamente ordenava a demissão do pessoal estrangeiro e a recusa de fundos estrangeiros. Não havia Leighton Stuart, o missionário-chefe da Universidade de Yenching, servido como embaixador dos Estados Unidos junto a Chiang Kai-shek e não eram todos os missioná­rios imperialistas?

Os homens convocados para esta conferência formavam a Comissão Preparatória do que chegou a ser conhecido como "Oposição à América, Auxílio à Coreia, Movimento dos Três 'Self de Reforma da Igreja de Cristo na Chi­na." Seu objetivo era tornar a igreja autónoma (self-governing), de sustento próprio (self-supporting), onde a partícula "self" era a antítese de "imperialista". Respon­deria perante o Departamento de Assuntos Religiosos, estabelecido sob a Comissão de Cultura e Educação, de formação ateísta, em Peking. Seu moto era: "Ame seu país; ame sua igreja" com uma evitação deliberada de ofender o nome de Deus. Seu periódico Tien Feng (Vento Celestial) tornou-se rapidamente o órgão oficial e finalmente o único publicado de comunicação cristã.

Nos meses que se seguiram houve um esforço de ampli­tude nacional para obter assinaturas ao Manifesto Cristão aprovado por Chou En-lai e com sua publicação na impren­sa secular no dia 23 de Setembro, imediatamente evi­denciou-se que o trabalho dos missionários, no futuro, seria gravemente restringido, senão impossível. Na verdade, a presença deles no campo estava-se tornando um estorno para as igrejas chinesas sobre as quais exercia toda a pressão para filiar-se ao Movimento dos Três "Self". No decorrer do ano de 1951, ocorreu a evacuação quase total dos que haviam regressado após a Guerra Japonesa com tão elevadas esperanças. A associação entre cristãos chi­neses e estrangeiros, que já durava um século, foi assim cruel e abruptamente rompida.

Não poucos missionários de passagem por Xangai ou retidos na cidade aguardando permissão de saíde frequentavam as reuniões de Nanyang Road e saíam enriquecidos, encorajados pelo novo acesso de zelo evangelístico do movi­mento e comovidos pelo próprio calor da personalidade de Nee e de sua sustentada utilidade na exposição da Bíblia. Um desses visitantes observou: "Percebe-se que em sua maioria os serviços cristãos são úteis em algum ponto, mas, os cristãos são úteis de ponta a ponta?" Mais ou menos por este tempo, Leslie T. Lyall convidou Watchman Nee para encontrar-se com diversos colegas da C. I. M. em seu apartamento, para analisar o futuro. Como deveriam ocupar-se no intervalo antes que fossem solicitados a voltar? "Traduzam para nós alguns comentários realmente sólidos como os de Dean Alford", foi a resposta. "Temos tão pouco nessa categoria e necessitamos muito deles. E voltem como anciãos de ensino nas assembleias; não de novo como evan­gelistas. A evangelização no futuro deve ser tarefa dos crentes chineses."

Um pastor chinês que frequentava o salão de Nanyang Road mais ou menos nessa época ouviu Watchman falar durante uma semana inteira sobre Romanos 1:1. "Cada noite proferia um sermão diferente, de destacada qualida­de; mas, quando colocados todos juntos, tem-se uma tese longa e bem composta. Era simplesmente maravilhoso."

No dia 1 de Janeiro de 1951, apresentou â igreja uma mensagem de Ano-Novo sobre o significado da bênção de Deus no milagre dos pães. Uma das últimas que dele temos, vale a pena registrar aqui a sua essência. "Todo serviço depende da bênção de Deus. Podemos ser muito conscienciosos e muito diligentes; podemos crer em Seu poder e podemos orar a Ele para que o manifeste, mas, se faltar a Sua bênção, então toda a nossa consciência, toda a nossa diligência, toda a nossa fé e toda a nossa oração é vã. Por outro lado, muito embora cometamos enganos e muito embora a situação que enfrentamos seja de desesperança, desde que tenhamos a bênção de Deus haverá produção e frutos.

"Consideremos o milagre dos pães e dos peixes. O ponto não era a quantidade do material em mãos, mas, a bênção que repousava sobre ele. Mais cedo ou mais tarde temos de reconhecer que o que conta não é volume de nosso tesouro ou o número de nossos dons. É das bênçãos do Senhor somente que o homem deriva seu sustento. Um dia, nossos próprios recursos, nosso poder, nosso trabalho cansativo, nossa fidelidade, tudo isso nos proclamará sua vaidade. O tremendo desapontamento dos dias futuros nos revelará nossa total insuficiência.

"Esta lição não se aprende com facilidade. As espe­ranças de muitos ainda se concentram, não na bênção do Senhor, mas, nos poucos pães que têm nas mãos. É tão deploravelmente pouco o que temos em mãos e, ainda assim, continuamos contando com esse pouco; e quanto mais contamos com ele, tanto mais árduo se torna o trabalho. Meus irmãos e irmãs, os milagres derivam da bênção do Senhor. Basta que ela esteja sobre os pães e eles se multiplicarão. Onde repousa a bênção, milhares são ali­mentados: onde está ausente a bênção, muito mais do que 'duzentos denários' é insuficiente para alimentá-los. Re­conheçamos isso e cessaremos de perguntar: 'Quantos pães temos?' Não haveria necessidade alguma de manipu­lar e nenhuma necessidade de evadir; não haveria necessidade de sabedoria humana e nenhuma necessidade de discursos louvaminheiros. Deveríamos poder confiar na bênção de Deus e esperá-la. E deveríamos, muitas vezes, verificar que, mesmo onde tínhamos coisas malfeitas, de certo modo tudo estava bem. Um bocadinho de bênção pode transportar-nos sobre uma grande dose de dificuldade.

"Que é 'bênção'? É a atuação de Deus onde nada há que explique sua operação. Por exemplo, calcula-se que um centavo deveria comprar algo do valor de um centavo. Mas, se você não pagou seu centavo, então você não tem base para cálculos. Quando cinco pães proporcionam alimento para cinco mil e ainda sobram doze cestos de pedaços, isso é bênção. Quando o fruto do seu serviço está fora de toda proporção em relação aos dons que você possui, isso é bênção. Ou, para ser um tanto extremo, quando, levando em conta seus fracassos não deveria haver fruto algum resultante de seus esforços e ainda assim há fruto, isso é bênção. Muitos de nós só esperamos resultados propor­cionais ao que somos em nós mesmos, mas, a bênção é fruto que está fora de toda correspondência com o que somos. Não é apenas a operação de causa e efeito, pois, quando contamos com a base do que invertemos, meramente barramos o caminho para que Deus opere além do que contamos. Se, por outro lado, pomos nossos corações na bênção do Senhor, verificamos as coisas acontecerem totalmente fora de alinhamento com nossa capacidade e que ultrapassa até mesmo nossos sonhos.

"Uma vida de bênção", concluiu Watchman, "deveria ser nossa vida normal como cristãos e uma obra com a bênção de Deus deveria ser nossa obra normal. 'Provai-me nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida'. Aqui, em Xangai, no começo de 1951, esta é ainda a palavra de Deus."

CAPÍTULO 17

FECHA-SE A ARMADILHA

Durante dois anos, as vias públicas da cidade de Xangai brilhavam com procissões de trabalhadores e jovens por­tando bandeirolas e grandes bandeiras de seda vermelha. Ao som de tambores e cânticos de slogans, os dançarinos Yang-ko requebravam e faziam piruetas diante de maciços retratos do presidente Mao. Mas, nas ruas e vielas estava em processo a organização intensiva. Comités revolucioná­rios da vizinhança haviam sido organizados; e havia cons­tante inspeção dos lugares de trabalho e dos lares, todos dando informação sobre todos. A intimidade humana foi invadida pelo zelo de células treinadas em doutrinação, enquanto preparada para agir segundo a informação rece­bida estava a polícia municipal regular, com a polícia secreta de atalaia nas sombras atrás delas. Havia "ca­çadas de tigres" para investigar e destruir tigres capi­talistas maus que se apoderavam da riqueza do povo. Viver como cristão em tais circunstâncias exigia fé e coragem de uma ordem mais elevada.

As cartas no começo de 1951 falavam de ampliação do ministério de Watchman, mas, havia outros quefazeres, também, que reclamavam sua atenção. De 16 a 21 de Abril, o Premier Chou En-lai convocou uma conferência de 181 líderes de igreja para abrandar o alarme causado pelo súbito corte de fundos de além-mar. Um edital publicado em Dezembro havia, entrementes, exigido que todos quan­tos recebiam subsídios estrangeiros registrassem os detalhes das fontes, das quantias recebidas e das condi­ções de seu uso. Watchman teve de comparecer a esta reunião, como observador representativo de um grupo de igrejas de "auto-governo, sustento próprio, e autopropagação". Na verdade, haviam recebido contribuições nas ofertas dadas à igreja de missionários visitantes, bem como donativos esporádicos vindos de além-mar para a obra do evangelho; mas, não havia exigência de que fossem regis­tradas como instrumentos de imperialismo. Estava ali por desígnio do governo "pelos benefícios recebidos através da experiência".

Em Xangai, as reuniões puderam continuar "quase como de costume" e todos os colaboradores estavam trabalhan­do urgentemente para remir o tempo. Mas, 27 de Abril foi o Sábado Negro em Xangai, com prisões de muitos milhares de intelectuais e outros, seguidas por um programa de reforma de pensamento dos escritores. Bem poucos cristãos estavam entre os que foram presos e "alguns cooperadores estiveram em servidão e sofreram pelo Senhor; mas, a maioria está segura e passa bem. Estão, apenas, todos sob julgamentos".

No dia 2 de Maio Tien Feng publicou uma citação à igreja cristã na China para tomar parte em reuniões de acusação. Exercia-se forte persuasão sobre congregações inteiras para engajar-se em autocrítica e reforma. "Propa­gue bem, acuse minuciosamente" era o slogan. Só isto os qualificaria para filiar-se à Igreja da Reforma dos Três "Self". Deviam denunciar publicamente e expurgar os "ele­mentos imperialistas e seus basbaques" escondidos dentro de suas próprias fileiras e liderança. Mostrou-se a alguns grupos quem dentre os seus líderes deviam acusar; outros recebiam ordens para descobri-los por si mesmos. L. M. Liu, secretário da A. C. M. publicou um artigo sobre "Como Realizar Uma Acusação Bem-Sucedida", apelando para o capítulo 23 do Evangelho de Mateus como precedente e insistindo com os cristãos para que vencessem suas ini­bições comparecendo às reuniões políticas e aprendendo delas. "Muitos cristãos têm a antiga ideia de 'estar acima da política'; portanto, devemos realizar reuniões de acusa­ção para educar todo o mundo... Realizar uma grande reunião de acusação bem-sucedida é uma das importantes tarefas que toda igreja deve fazer bem para apagar a influência do imperialismo."

Para mostrar o caminho, o Movimento dos Três "Self" organizou uma enorme reunião no domingo, 10 de Junho, para a denúncia pública de missionários cristãos. Foi realizada no estádio da pista de corrida de cães em Xangai. "Acusadores", cuidadosamente escolhidos e representando importantes grupos cristãos, falaram a um auditório nu­merosamente composto de congregações de igreja. Com discursos ensaiados e toda mostra de indignação e ódio, vilipendiaram seus irmãos em Cristo, tanto figuras mis­sionárias do passado como ex-colegas. Todo o desempenho destinava-se a trazer descrédito, não meramente às nações que enviam missionários, mas, a longo prazo, ao próprio cristianismo. E o não comparecimento de qualquer cristão à reunião era cuidadosamente notado. Dessa forma, o movimento ganhou impulso à medida que os cristãos se voltavam uns contra os outros nesta forma de perseguição autodegradante e ai daquelas igrejas que se postassem à margem do exercício! Insistindo na sua intensificação ainda mais, Tien Feng pôde anunciar, no dia 11 de Agosto, que haviam sido realizadas sessenta e três grandes reuniões de acusação desde o mês de Maio. As igrejas cristãs esta­vam-se acomodando ao nicho preparado para elas na nova sociedade, na qual os Três "Self" ultimamente deviam significar controle pelo Estado, dependência financeira do Estado e a propagação alinhada com a ideologia do Es­tado. Não admira que as cartas em Julho relatassem: "As assembleias encontram-se, agora, numa situação dificílima e de maneira especial os que arcam com responsabilidade, como o irmão Nee", que mais uma vez foi declarado enfermo no seu regresso.

Entretanto, o Governo do Povo pressionava com seu programa altamente bem-sucedido de limpeza moral com vista a eliminar o crime e a prostituição bem como todas as formas de corrupção. Reivindicando ser o povo e governar em seu nome, o Partido buscava realizar em amplitude nacional o que os missionários haviam tentado, homem por homem e, ainda assim, não usando legislação, mas, persunsão popular. Em Novembro de 1951, o Estado instituiu duas campanhas éticas que deviam ocupar o país nos meses vindouros, a San-Fan ou "Três Antis", de oposição ao suborno, à evasão de impostos, ao roubo da propriedade do estado, ao trabalho desleixado e furtar os segredos eco­nómicos para especulação privada no campo dos negócios. Cartazes por toda parte chamavam o público a Arrepender-se e Confessar e houve uma onda de acusações e falsas denúncias e um surto de suicídios. Isto era um indicador do que jazia à frente; e como se a sublinhá-lo, Watchman fora notificado de que a transferência da Sheng-Hua Drug Manufacturing Company (C. B. C.) para seus adquirentes em perspectiva estava suspensa por or­dem do governo, estando pendente um inquérito relativo ás suas contas e pagamentos de impostos.

A edição de 30 de Novembro de Tien Feng, órgão oficial cristão dos Três "Self", publicou um artigo escrito por um membro da congregação do Pequeno Rebanho em Nanking, intitulado "Revelação da Organização Secreta e Ações Obscuras da Igreja de Tsi-Tang Road", que dizia: "Sou um crente que desde o princípio pertence à Igreja de Tsi-Tang Road (em Nanking) e considerei-a como a mais pura das assembleias até que fui doutrinado com relação ao Movi­mento de Reforma dos Três 'Self´, quando vi com clareza que lugar vil é ela. Há muito tempo vivo enganado, mas, hoje defendo o amor da pátria e o amor da religião; e com emoções de ilimitada ira, exponho sua professada 'espiri­tualidade'. A fim de ocultar a verdadeira natureza anti-revolucionária deste movimento, os que se acham em cargos de responsabilidade em Tsi-Tang Road afirmam persistente e enfaticamente que é uma 'igreja local'. Para dizer a verdade, temos sido totalmente desencaminhados. Desde seus primórdios tem estado sujeita à assembleia de Xangai e é estritamente controlada por Watchman Nee. É um sistema organizado de âmbito nacional e caráter oculto. Watchman Nee tem um sistema emaranhado e secre­to para controlar 470 igrejas em todo o país, Xangai como base administrativa; Xangai governa-as indiretamente através de 'igrejas centrais', estabelecidas em cidades grandes como Peking, Hankow, Tsingtao, Foochow, etc. O controle sombrio e misterioso que Watchman exerce sobre as igrejas vai muito além da esfera da religião. Para facilitar seu controle totalitário, dissemina veneno anti-revolucionário e domina o pensamento dos membros da igreja. Desavergonhadamente se denomina 'apóstolo de Deus'!"

A um grupo de obreiros que desejava saber que ação Watchman tomaria na sua autodefesa, relatou sua expe­riência quadriforme de ser disciplinado pela mão amorosa de Deus: sua excomunhão em Foochow em 1924 e o reavi­vamento que se seguiu; sua grave enfermidade durante a difícil escolha entre o papel de pregador popular e a menos atrativa busca do testemunho cristão através da igreja local; seu afastamento do ministério durante a Guerra Japonesa e o enriquecimento espiritual com o qual havia retornado; e agora este ataque contra ele e por via de consequência contra todos. Sem dúvida, em toda crítica havia algum elemento de verdade. Mas, por que retaliar, concluiu, quando toda vez que a reprovação do Senhor se comprovara tão instrutiva, seu castigo se revelava tão espiritualmente frutífero?

Acima de tudo, insistia, "quando somos deprimidos por más notícias, damos passagem, não à depressão, mas, ao Senhor. Naturalmente, estamos deprimidos, pois o cristia­nismo é um paradoxo: 'temos este tesouro', mas, o temos 'em vasos de barro'. O que conta para Deus é a qualidade do tesouro e não o vaso que o contém. Deus não remove nossa fraqueza; em vez disso, deposita ali a Sua força. Nisso reside a glória do cristianismo, em que nenhuma fraqueza humana necessita limitar o poder divino".

As células comunistas estavam agora frequentando Nanyang Road e tentando provocar exigências de que a igreja organizasse suas próprias reuniões de acusação. Afinal, no começo de 1952, sob extrema pressão da sede dos Três "Self", foi convocada uma reunião na qual era permitido a dois de seus representantes dirigir-se à assem­bleia. Suas falas acusando membros da igreja de serem im­perialistas causou um silêncio desnorteante. Ninguém falou apoiando. Por fim, alguém teve coragem de dizer: "Não é verdade que Paulo contava todas as coisas como perda por amor de Cristo? Não deveríamos nós, portanto, contar até mesmo nosso honrado Governo do Povo a mais verdadeira perda para que pudéssemos ganhar a Cristo?" Nesta célula, plantada na reunião, ouviu-se: "Watchman Nee ordenou às mulheres que cubram a cabeça em oração. Isto é despotismo!" Destinada a ser inflamatória, a acusação foi como um tiro que saiu pela culatra contra o acusador. Os irmãos exigiram saber quem foi o "penetra" que havia apresentado o problema. O porta-voz dos Três "Self" levantou-se e anunciou: "Obviamente, vocês não estão preparados para a auto-reforma e necessitam de treina­mento nesta área. Ponho o próprio Sr. Watchman Nee incumbido de reeducar vocês."

Todos na igreja viam agora que estavam em dificuldade. Sem dúvida, os companheiros viajantes haviam sofrido um revés, mas, aguardariam sua vez. Watchman, depois de re­considerar as coisas com Charity e com seus colaboradores e anciãos, dedicou-se a uma única coisa — a preparação de material bíblico para os crentes. Ruth Lee e suas assisten­tes começaram a anotar tudo o que tinha para dar. A um grupo de jovens, por exemplo, falou extensamente sobre as provas da existência de Deus. Havia séries, também, de caráter prático — sobre Cristo como a justiça, a sabedoria e a glória de Deus para o crente e sobre o poder de Sua ressurreição. Mas, não era isso que fora ordenado. Agora, pois, havia novas exigências do governo — desta vez, para que deixe Xangai. Problemas financeiros de importância na indústria farmacêutica com a qual a igreja ainda estava engajada exigiam sua presença em Manchúria. Assim, a pressão para aproveitar a oportunidade intensificou-se ao ponto de desespero. Toda a equipe trabalhava o dia todo e entrava pela noite, expondo e registrando a Palavra do Senhor, até que no mês de Março, estavam dormindo apenas duas horas por noite.

Afinal, já não era possível resistir por mais tempo ao ultimato do Estado. Deu uma última palavra de exortação aos seus amados irmãos e irmãs em Cristo, acrescentando: "Diga-lhes em Hong Kong que dissociem da igreja toda empresa secular." Com pesar despediu-se de Charity. Então, com profundas apreensões, partiu para Harbin. Esta foi a última vez que os crentes ouviram falar dele até sua acusação formal em Janeiro de 1956.

Em seu qinquagésimo ano foi preso na Manchúria pelo Departamento de Segurança Pública no dia 10 de abril de 1952; e no seu primeiro inquérito, ou em Harbin ou em Peking, foi acusado de "tigre" capitalista ilegal que havia cometido todos os cinco crimes especificados na campanha Wu-Fan contra práticas comerciais corruptas. Foi avisado de que a Sheng Hua Company seria obrigada a pagar uma multa de 17.200 milhões de yuans em moeda antiga (equi­valente a quase um milhão e meio de dólares norte-americanos). Não aceitou esta acusação injusta nem tinha dinheiro para pagar tal multa. Assim, permaneceu na prisão e, no devido tempo, o Estado confiscou a Compa­nhia.

Inicialmente, em todos esses casos, as condições da prisão eram severas em extremo — sem, é provável, vio­lência física real, mas, com ameaças, alimentação pobre, privação de sono, animais ou insetos daninhos e uma constante e impiedosa drenagem da resistência física. Sua Bíblia, é claro, foi confiscada de imediato. Nenhuma comu­nicação era permitida com pessoas de fora.

Diz-se que lhe foi oferecida a oportunidade de resta­belecimento como figura cristã pública se conduzisse seu imenso séquito em harmonia com o Governo do Povo dentro da Igreja da Reforma dos Três Self. A experiência de outros neste período deixa claro que, se era tão procurado assim, tentativas ferozes eram feitas para reeducá-lo em aquies­cência na neurose nacional — uma supina renúncia a toda liberdade de pensamento. Temos ampla documentação dos métodos de reforma do pensamento então em uso: as longas horas de interrogatório por interrogadores que se reve­zavam, as preleções políticas, o exame vigilante feito por guardas implacáveis, a ocupação de sua cela por "colegas estudantes" convencidos e convertidos; e a estridente "amargura de falar" das reuniões de luta do grupo. Ne­nhuma mudança de coração ou confissão digna de uso ocorreram, deixando entrever o poder guardador de Deus. Mas, foi exigido dele que escrevesse e reescrevesse a crónica de sua vida em detalhe interminável, pois, a partir desta, parte por parte, o processo-crime contra ele seria formulado e ele seria confrontado com "evidência" composta por um processo de repetição amortecedora da mente.

Houve precedentes. Já em Fevereiro de 1952 uma confis­são precisamente do tipo que eles buscam obter de Nee fora extraída à força, depois da prisão, de Isaac Wei, filho do fundador da nativa Igreja do Verdadeiro Jesus, trazendo os adeptos desse grande grupo a caminhar com o Estado. No mesmo ano, a Família de Jesus, invejada por seu sucesso comunal, mas, vulnerável em virtude de sua situação rural, havia sido tratada pela alternativa, isto é, dissolução obrigatória e a desgraça de seus líderes com "condena­ções" de espionagem, atividade contra-revolucionária e vida licenciosa. O Partido não toleraria, na China, um "centro de trevas" onde a coisa certa era feita por aquilo que, aos seus olhos, era o motivo errado. Se não se pudessem provar vínculos "imperialistas" num movimento verdadeiramente nativo, seus líderes deviam ser denuncia­dos como criminosos comuns. E este, pois, era o destino reservado para Watchman Nee.

Entrementes, com sua retirada do cenário, as cercas foram provisoriamente baixadas pelos representantes dos Três Self. Os anciãos das assembleias do "Pequeno Re­banho" por toda parte tiveram a promessa de uma boa acolhida incondicional se filiassem o constante fluxo de igrejas a esta "corrente de montanha que, quanto mais flui, tanto mais clara e mais ampla se torna". "A porta ainda está aberta", foi-lhes dito, "e estamos estendendo mãos amigas, esperando que chegue o dia quando habitaremos juntos em união." Com Watchman fora do seu alcance, não tinham nenhum forte conselheiro espiritual a quem recor­rer; e de um em um, todos capitularam, a maioria deles, muito em breve, a lamentar o passo dado.

Na cidade de Wuhan, para citar um único caso, a congregação do "Pequeno Rebanho" havia-se filiado ao Movimento dos Três Self já no começo de 1951 e havia-se subme­tido ao receitado programa de "aprendizagem". Mas, então, um de seus pregadores, Ho Kuang-tao, levou-os de novo a sair. As acusações da polícia relatam-no como tendo dito: "Nós nos retiramos do movimento puramente por motivos de crença religiosa, pois, o crente e o não-crente não podem estar sob o mesmo jugo." Daí para a frente, os anciãos declinaram de receber ingressos de cinema e outro mate­rial de aprendizagem do Departamento de Assuntos Reli­giosos e acolhia friamente seus representantes enviados para relatar à igreja a política religiosa do governo. Muitas outras igrejas locais seguiram-lhe o exemplo e, em 1954, Ho convocou uma conferência em Wuhan, dos pregadores dos lugares de reunião de toda a China central, estimulando-os na fé e mostrando-lhes a urgência de conduzir suas con­gregações com independência ao Movimento Patriótico dos Três Self e orar por aquelas igrejas que ainda não se haviam retirado. Nos quatro anos que se seguiram à prisão de Nee, muitas igrejas poriam de novo seus pés espirituais neste caminho e a igreja em Xangai retirou-se do Movimento no final de 1955. Como consequência, tra­riam ira sobre suas próprias cabeças.

Mas, nesse ínterim, a obra em Nanyang Road continuou, de certo modo, a avançar com influência e poder. Os cultos de adoração puderam continuar e até, durante um ano ou dois, reuniões evangelísticas especiais no feriado de Ano-Novo. Devido à geral incerteza da vida, as oportunidades para testemunho pessoal eram maiores do que nunca antes. A livraria da igreja continuou com o fluxo de publicações, a maior parte agora anónimas, mas, reconhe­cíveis como exposições bíblicas de Watchman.

Na primavera de 1952, após um curso obrigatório de doutrinação marxista de todos os estudantes, houve um notável despertamento cristão em duas faculdades e mui­tos estudantes nasceram de novo. Isto levou a uma série de conferências de verão e de inverno que continuaram por diversos anos usando o salão de Nanyang Road como ponto de reunião; e novas comunidades cristãs vieram a existir em todas as faculdades de Xangai, não excluindo, diz-se, a Escola de Estudos Políticos. Dar graças à hora das refeições servia, para os estudantes, como meio de reconhecimento. Oração disfarçada como conversação entre dois ou três com a cabeça curvada num espaço aberto podia passar sem ser percebida e a pausa de três quartos de hora imediatamen­te após a doutrinação semanal política de massa, dava uma oportunidade, com as células desprevenidas, de uma apressada reunião mais ampla. Aqui, com risco de suas futuras carreiras, alguns oravam em voz alta, o que nunca haviam feito sem um Livro de Oração e ocorreu aquele verdadeiro ocumenismo sob pressão que, afirma um deles, "Watchman Nee sempre havia suplicado". Este padrão de reaviva­mento repetia-se por toda a China.

Julho de 1955 viu o ataque público no Diário do Povo contra o pregador fundamentalista, Wang Ming-tao, de Peking. Este verdadeiro Daniel era grandemente amado pelos estudantes que compunham nove décimos de sua congregação; e uma tentativa de recusa na forma de reunião de acusão dez meses antes havia falhado com um movimento denominado "Opor-se à Perseguição de Wang Ming-tao". Sua revista, Spiritual Food Quarterly (Alimento Espiritual TrimestraJ) sempre leal às Escrituras, ainda estava em circulação e era de muita influência. Watchman Nee respeitava-o como homem de Deus, embora não dedi­casse tempo para a sua igreja, o que comparava a uma "casa a meio caminho" à beira da estrada (pan-lu liang-ting), um lugar de refrigério numa viagem, mas, não o ponto de destino.

Wang Ming-tao havia repelido firmemente as aberturas dos Três Self e, do ponto de vista do Partido, o problema era que, como pregador independente que não servia nem dirigia uma organização, era difícil enquadrá-lo em qual­quer acusação "criminosa"; assim, seria preciso buscar impli­cações políticas somente em seu testemunho cristão. Estas foram encontradas no corajoso panfleto que escreveu em Junho de 1955, intitulado Seremos Firmes por Causa de Nossa Fé. A história de sua prisão no dia 8 de Agosto era contada por toda parte. Uns poucos de seus antigos mantenedores dispuseram-se a cair nas graças do Partido acusando-o de intenção traiçoeira. Com sua prisão e subse­quente "confissão" forçada, estava eliminado mais um ponto de reunião cristã. O campo, agora, estava limpo para que irrompesse a principal tempestade.

CAPÍTULO 18

PROVAÇÃO

Na quarta-feira, 18 de Janeiro de 1956, teve início, no Salão da Assembleia da Igreja em Nanyang Road, uma série de reuniões convocadas pelo Departamento de Assuntos Religiosos, nas quais a congregação toda devia estar presen­te. Doze dias consecutivos de reuniões, durante o dia todo, sendo que os crentes podiam faltar ao trabalho para frequentá-las.

Nessas reuniões, itens tirados da lista de acusações de crimes a serem apresentados contra Nee e os seus associa­dos eram progressivamente dadas a conhecer aos crentes, que eram incentivados a expressar suas opiniões. Acusa­ções de intriga imperialista e espionagem, atividades contra-revolucionárias hostis à política do governo, irregulari­dades financeiras e geral licenciosidade tinham sido acu­muladas num indiciamento que preenchia 2.296 páginas. O objetivo deste exercício preliminar era preparar os mem­bros da igreja, fornecendo-lhes dados e suscitar-lhes a indignação que os incitasse a uma reunião de acusação de massa a realizar-se no fim do mês. Foi dada oportunidade aos anciãos e às irmãs mais velhas, já informados do que deles se exigia, de admitir sua própria cumplicidade e levar a igreja a uma denúncia de Watchman como inimigo do povo. Dois anciãos fizeram declarações que foram consideradas insuficientes. O Dr. C. H. Yu, Ruth Lee e Peace Wang declinaram fazer qualquer acusação.

No domingo, 29 de Janeiro, o caso de Watchman veio para audiência sumária perante a Corte de Segurança Pública de Xangai. A audiência foi breve e em particular. A acusação era que desde que se escondera no Lugar de Reunião Cristã em Nanyang Road havia feito intrigas contra-revolucionárias sistemáticas contra o Governo do Povo. Seus crimes foram arrolados sob cinco títulos. Ele e seus cúmplices haviam apoiado o imperialismo e o regime na­cionalista; haviam-se oposto aos movimentos populares; haviam corrompido a juventude; haviam sabotado a pro­dução; e o próprio Nee havia atuado licenciosamente. As acusações foram lidas e só era permitido responder Sim ou Não. Não se permitia nenhuma explicação. Ele negou a única acusação realmente substancial, a de espionagem e de sabotagem. Quanto às demais, diz-se que permaneceu em silêncio. Terminada a audiência, o processo foi enca­minhado à Suprema Corte para julgamento, com forte recomendação para usar de severidade.

Naquele mesmo dia, o Dr. Yu e as duas mulheres foram levados em custódia, juntamente com alguns outros; e na semana seguinte, mais trinta obreiros e irmãos responsáveis pelo trabalho foram presos na localidade, enquanto uma varredura simultânea das igrejas por todo o país recolheu cerca de mil homens e mulheres importantes através do movimento. (Mais tarde, as estimativas elevaram-se ao dobro.) Todos desapareceram de vista e suas esposas e filhos, proibidos de visitá-los, foram deixados sem sustento.

No dia seguinte, segunda-feira, 30 de Janeiro, a prome­tida reunião de acusação realizou-se no Salão da Assem­bleia. Foi convocada pelos chefes dos Departamentos de Segurança Pública e de Assuntos Religiosos e estiveram presentes um total de 2.500 pessoas, incluindo, provavel­mente por ordem todos os pastores protestantes e todos os membros da igreja de Nanyang Road. Presidiu-a Lo Chu-feng, Presidente do Departamento de Assuntos Religiosos de Xangai. As acusações eram, agora, proclamadas publica­mente em detalhe e apoiadas por uma exibição de foto­grafias e outras "provas" documentárias. O resumo dessas provas, que veio a seguir, foi compilado dos relatórios oficiais de várias fases nos procedimentos do mês.

Já nos idos de 1941, alega-se, Nee engajara-se em trans­mitir à Força Aérea Norte-Americana e aos agentes de Chiang Kai-shek informação sobre os movimentos do Exérci­to Comunista e planos secretos. O verdadeiro propósito de sua última visita a Hong Kong na primavera de 1950 fora o de relatar sobre o sucesso do bombardeio nacionalista da usina de eletricidade e do abastecimento de água da Xangai no dia 6 de Fevereiro e incentivar mais desses atos. Havia, também, informado os emissários de Chiang a respeito da epidemia de esquistossomíase entre unidades do Exército de Libertação em Kiangsu e Chekiang e aconselhado o despejo de caracóis infestados de larva nos rios e lagos de Chekiang, juntamente com a retenção de matérias-primas necessárias à fabricação de drogas curativas.

Nee foi acusado, também, de ser um capitalista ilegal que havia feito extorsões no comércio farmacêutico. Sob a cobertura de sua Sheng-Hua Drug Manufacturing Company, havia importado matérias-primas e, mediante suborno dos fiscais do imposto, evadido aos regulamentos do câmbio exte­rior que cobrem tais negócios. Deste modo, havia furtado da nação cerca de 17.200 milhões de yuans (moeda antiga). De Julho de 1950 a Agosto de 1951, sob a cobertura da mesma companhia, "havia furtado segredos de estado" fazendo vazar notícias para as empresas privadas de que o Governo do Povo estava colocando pedidos para fins militares e passando adiante detalhes de procedimentos técnicos secretos. Além do mais, fora, indiretamente, culpado de sabo­tagem. Os incêndios e explosões nas tinturarias de Xangai durante 1955 e no corrente mês de Janeiro de 1956 foram atribuídas ao fato de ter, cinco anos antes, destacado para essas fábricas cristãos treinados por ele para a tarefa de longo prazo de destruir a produção.

Nee era, revelou-se depois de tudo, um lacaio dos imperialistas. Havia deixado de registrar os Lugares de Reuniões Cristãs como missão estrangeira subsidiada sobre o especioso motivo de que eram puramente chinesas. Todo o tempo vivia ocultando seus negócios imperialistas. Desde 1921 havia, em realidade, recebido donativos e legados para a obra, dos missionários, dos Irmãos Exclusivos, do Centro de Comunhão Cristã em Londres e de doadores individuais além-mar. Mais ainda, quando a China Inland Mission retirou-se do país "transferiu para Nee" muitos templos, confirmando, dessa maneira, que "eram um em pensamento político".

Desde bem antes da Libertação, Nee havia "levado a cabo sob a capa de religião atividades contra-revolucionárias bem planejadas e organizadas contra a nova socieda­de". Assumindo o papel de fundador dos Lugares de Reu­niões Cristãs e auxiliado por sua panelinha de reacionários escondidos ali, havia montado seu "plano de emergência" para a China, dirigindo sessões de treinamento para todos os oficiais da igreja. Nessas reuniões, através de preleções, sermões e reuniões de discussão, perseguia suas atividades subversivas. Havia incitado os cristãos a opor-se à grande empresa de libertação nacional instruindo-os a jejuar e a orar para que, assim como o exército de Faraó pereceu no mar Vermelho, Deus afogasse o Exército de Libertação do Povo no rio Yangtze. Em 1951, havia incitado os cristãos em todos os Lugares de Reunião a assinar seus nomes aber­tamente atacando a reforma da terra. Mas, antes de ser introduzida, tentara levar avante uma "reforma da terra" de sua iniciativa, entregando à sua própria igreja as extensas propriedades que tinha em Foochow. Isto não passava de uma cobertura para suas atividades crimino­sas. Mesmo agora, sua influência prejudicial está sendo sentida.

Numa época quando, sob a competente liderança do presidente Mao, a China dava os primeiros passos no brilhante caminho da construção socialista, os associados de Nee estavam ensinando que esses eram o que a Bíblia chama de "os últimos dias". Haviam desmoralizado a vontade do povo atribuindo, por exemplo, ao juízo de Deus o desastre da inundação de Wuhan no verão de 1954. Desestimulavam os cristãos de participar nas grandes reuniões de autocrítica e de acusação sobre a base de que o cristianismo estava acima da política e até ensinavam que era uma honra ser reprovado nos exames escolares em estudos políticos.

Deu-se grande importância ao aconselhamento dos jo­vens cristãos, muitos dos quais, diz-se, Nee e seus segui­dores corromperam com seu conselho pernicioso. Para alguns jovens, haviam ajudado a arranjar casamentos ou, em outros casos, aconselhavam contra um determinado par­ceiro e nem todos estavam satisfeitos. 0 promotor citou uma cujo marido "revelara-se ser um agente de espionagem agora preso pelo governo". Outros jovens e mulheres haviam sido engodados a entregar-se ao treinamento para servir o Senhor, "apenas para receber trabalho difícil e humilhante". Pior ainda, haviam sido desencorajados a juntar-se ao Exército Voluntário do Povo e, dessa maneira, Nee representava uma ameaça ao Movimento de Ajuda à Coreia e Resistência aos EE. UU. Citando 1 João 2:6, havia ensinado que os jovens não deviam amar o mundo. (Uma transcrição de seu ensino sobre este tema pode ter sido usa­da como prova.) Neste conselho, alegava-se, estava sendo claramente desonesto, visto que o que realmente amava era o desacreditado mundo do banditismo de Chiang Kai-shek.

Nee e sua panelinha haviam dado guarida a muitos agentes do Kuomintang: trabalhadores no rol da resis­tência, generais do exército, senhores de terra fugitivos e havia-os absorvido nos Lugares de Reunião Cristã como pregadores, anciãos e diáconos, onde tinham sido empre­gados por ele em atividade subversiva planejada com muito cuidado. Em 1950 tinham sido instruídos a acobertar-se em trabalho produtivo e sobrepujar até os não-cristãos em seu suposto zelo por tais projetos de Estado como obras ro­doviárias; mas, o objetivo exclusivo era, desta forma, "fazer avançar sua trama oculta de emergência". Diversos desses "trabalhadores da resistência" foram nomeados nas acu­sações: "Chen Lusan, ex-chefe de polícia e bandido contra-revolucionário; Lu Shih-kuan, cujas mãos estavam mer­gulhadas no sangue do povo; Li Yin-hsin e muitos outros" (claramente alguns deles empregados do estado naciona­lista antes de haverem entregado a vida a Deus) e esses foram agora identificados como "agentes secretos" de Chiang Kai-shek. Entre 1949 e 1951, alegava-se, Nee havia colocado tais homens nos Lugares de Reunião Cristã em Kunming, Chungking, Suchow e outras cidades para "ex­pandir sua influência contra-revolucionária sob o disfarce de migração do evangelho e pregação da Palavra de Deus". Por esses meios, havia acelerado a ação de seu plano de "conquistar-a-China-com-o-evangelho" pelo qual a evange­lização se tornava um manto efetivo para propaganda política. Loucamente, havia anunciado seu alvo de dentro de quinze anos cobrir a China com as Boas-Novas que fariam melhor do que uma revolução comunista.

O passo mais vergonhoso deste plano tinha sido sua campanha de "Render-se a Deus", de Abril de 1948, com seu fraudulento apelo para que os cristãos seguissem o exemplo do Livro de Atos e dessem a si mesmos e as suas possessões a Deus por amor ao evangelho, em vez de fazê-lo aos comunistas (como fora acusado de declarar) para morte e destruição. Este engano espalhara-se rapidamente pelos quase 500 Lugares de Reunião Cristã, numa estima­tiva líquida de 500.000 dólares em dinheiro e mercadorias. Isto, naturalmente, nada mais era do que um estratagema político para arrolar células e fundos para seu programa contra-revolucionário.

Finalmente, Nee foi acusado de ser um "vagabundo dissoluto de viver corrupto e indulgente" que frequentava os lupanares da vizinhança e sempre havia sido um efeminado sem-vergonha e indiscriminado. Havia confessado, alega­va-se, de seduzir mais de cem mulheres, chinesas e es­trangeiras. Não se produziu nenhuma prova disto.

Aqui, no salão de Nanyang Road onde Watchman havia guiado a igreja em oração e lhes havia aberto a Palavra que exalta a Jesus Cristo, o longo e pretensioso recital do processo contra ele arrastava-se para a conclusão. Então, o presidente, Lo Chu-feng, convocou o vice-prefeito de Xan­gai para proferir o discurso principal. Hsy Chien-kuo levantou-se. Depois de aludir aos fatos da prisão em Abril de 1952 (até aqui desconhecidos do público) prosseguiu para ana­lisar a política religiosa do governo. "O Governo do Povo garante a liberdade religiosa de crença", assegurou-lhes. "Infelizmente, alguns contra-revolucionários ardilosamente acentuam a diferença entre materialismo e idealismo em seus escritos e, dessa maneira, suscitam as emoções do povo e rompem-lhe a unidade. O problema que temos hoje diante de nós é o de contra-revolucionários escondidos dentro dos Lugares de Reunião Cristã. A oposição de Nee e seu bando ao Movimento dos Três Self não é uma questão de princípio religioso. Teve seu próprio propósito secreto. "Religião é religião e fé é fé; não devem misturar-se com as ideias contra-revolucionárias de uma pessoa e usadas como proteção atrás da qual espalhar o veneno do ódio para com o país e o povo. Todo cristão deve entrar po­sitivamente para a luta no sentido de desmascarar os crimes desses homens presos.

"Ainda temos sérias dúvidas a respeito de muitos outros, também, mas, para o momento deixêmo-los em paz para ver se se arrependem e mostram nova atitude. Por meio de nossas investigações dos últimos anos, temos muita infor­mação arquivada que usaremos se for necessária. E vocês, que são membros do Lugar de Reunião Cristã, não devem ter medo de lavar a roupa suja em público, mas, devem vigo­rosamente buscar e denunciar todos os transgressores.

"A luta apenas começou. Não recuaremos até que a tenhamos completado vitoriosamente e desarraigado todo contra-revolucionário que há dentro do Pequeno Rebanho." Após esta oração do vice-prefeito, um estudante de medicina, que era membro da reunião de Nanyang Road, fez um discurso denunciatório, após o que outros que tentaram levantar-se receberam a promessa de outra opor­tunidade e a reunião foi encerrada.

Conforme um antigo colega de escola e colaborador de Watchman observou na ocasião, as acusações não fo­ram religiosas, mas, políticas e morais. "Uma coisa é so­frer como cristão; outra muito diferente é sofrer como criminoso por pecados não cometidos. Não deveríamos nós pedir a Deus, o Justo Juiz, que intervenha no julgamento do vindouro Supremo Tribunal para limpar seu próprio nome, livrar nossos irmãos e fazer com que Sua palavra na China não seja amarrada? E não devemos orar por seus inimigos, que são inimigos do Senhor, que Satanás tem cativos?"

No dia 1 de Fevereiro, o Governo Municipal de Xangai deu o passo incomum de publicar no seu Diário da Liber­tação uma declaração oficial da prisão de Watchman no dia 10 de Abril de 1952, dizendo que ele e dois outros, Chang Tzu-chieh e Ni Hong-tsu, estavam na Casa de Detenção de Xangai. Chang era um cooperador vindo de Tsingtao. Hong-tsu era o terceiro irmão de Watchman, o oitavo filho da família e não alegava ser cristão praticante. Sabia-se que tinha sido agente político experimentado de Chiang Kai-shek e fora induzido a voltar de Hong Kong com a promessa do Partido de que suas finanças pessoais em Xangai estavam protegidas e ser-lhe-iam devolvidas. Final­mente, foi executado como traidor. Indiscutivelmente, a associação pública dos nomes dos dois irmãos, neste mo­mento, destinava-se a dar credibilidade à acusação de espionagem contra Watchman.

No dia 2 de Fevereiro, o bispo Robin Chen publicou uma declaração no Diário da Libertação denunciando Nee e seus cúmplices e encarecendo o quanto estava contente porque esta pedra de tropeço para a fé havia sido, finalmente, removida. No mesmo dia na Igreja Huai En, o bispo presidiu a uma reunião ampla do Concíclio de Xangai do Movimento dos Três Self. Nela falaram uma dúzia de clérigos e líderes da igreja que se engajaram em "furiosas reprimendas" onde ecoavam as acusações oficiais e louvavam o presidente Mao e o Partido Comunista por sua "ação perfeitamente correta e necessária" de prender Nee e seu grupo. Esses lobos ferozes vestidos de ovelhas deveriam receber o mais severo castigo. A reunião aprovou uma resolução que falava dos "graves e momentosos pecados desses maus líderes em sua rebelião traiçoeira contra o governo" que havia suscitado os cristãos a "uma indicação justa sem pre­cedentes". Seus ensinos eram incompatíveis com a doutrina cristã e todos os cristãos que haviam sido enganados e envenenados por eles "devem, sem exceção, ser obrigados a engajar-se em estudos destinados a elevar sua consciên­cia patriótica e revelar seus pecados".

Uma oradora nesta reunião descreveu Nee como um devasso anti-revolucionário e adúltero desavergonhado. "Nós, mulheres, ouvindo isto, não poderíamos deixar de odiá-lo", disse. Aproveitando-se desta dica, o Diário da Libertação de Xangai publicou, no dia seguinte, uma carica­tura que trazia a legenda Chião Chu Lai, "Entregue tudo". Retratava dois níveis de pavimentos de uma casa. No pavimento de cima, as pessoas empurravam-se para chegar aonde estava um homem sentado no degrau de uma escada, insistindo com elas que despejassem seus bens num grande funil rotulado "dai a Deus o que é de Deus". Todo tipo de donativo era apresentado, desde o do "coolie" que tirava a camisa e a jaquetinha do seu filho em choro. No andar de baixo, para o qual se estendia o receptáculo, o rótulo era diferente: "Para a Obra da Contra-revolução". Aqui, da extremidade do funil, uma corrente de ouro e prata, relógios e jóias e donativos de dinheiro fluíam para os pés do admirado Ni To-sheng, que se punha à vontade com uma prostituta sentada no seu colo.

Por essas providências calculadas, Watchman era des­tronado, se possível, do seu lugar de afeição nos corações dos cristãos. Poucos se atreviam a pronunciar seu nome abertamente, mas, em silêncio, muitos cristãos por toda a China o sustentavam em oração.

Pastores e evangelistas em toda Xangai eram, agora, instruídos a organizar pequenos grupos de estudo a partir do dia 5 de Fevereiro para familiarizar os cristãos em toda parte com os "crimes de Ni To-sheng". Em Nanyang Road, todas as reuniões, exceto as de culto aos Domingos, foram canceladas a fim de dar lugar a esta doutrinação especial. Para orientação, Tien Feng do dia 6 de Fevereiro dedicou onze páginas a uma revisão do processo de Nee. Seu editorial intitulava-se "Expulsar os Lobos Cruéis da Igre­ja" e prosseguia: "Do recital de seus crimes, pode ver-se que este gangue tem sido destruidor de nossa reconstru­ção económica, perigosa para a subsistência do povo e para a ordem social e uma ameaça à segurança nacional. A presença deles na igreja cristã tem sido uma desonra ao santo nome do Senhor, uma mancha sobre a reputação da igreja e uma corrupção da verdade do evangelho. São muito inteligentes e traiçoeiros e gostam de falar acerca de santidade. Suas próprias ações, contudo, andam longe de ser santas; e a vida do próprio Ni To-sheng é adúltera demais para se repetir.

"Irmãos e irmãs do Lugar de Reunião Cristã: estamos felizes porque este bando nunca mais poderá perturbar e prejudicar nossa amada igreja e, assim, sem obstáculo, podemos agora unir-nos livremente em amor mútuo. Com­panheiros cristãos, celebremos nossa vitória comum e considerêmo-la motivo de regozijo. Somente denunciando e expulsando tais lobos é que podemos purificar a igreja de sorte que glorifique ao Senhor."

Subsequentes edições de Tien Feng mantiveram o fluxo de invectivas. A de 29 de Fevereiro contava, também, de outra grande reunião de denúncia no salão de Nanyang Road com mais de três mil membros do "Pequeno Rebanho" presentes, incluindo representantes de Nanking, Changsha, Soochow, Wusih, e de outros lugares. A presença desses membros destinava-se a dar peso de autoridade à eleição de uma comissão governante dos quatorze que deveriam tomar o lugar dos líderes presos de Xangai. Esta reunião procedeu com muito mais pressão emocional do que a do dia 30 de Janeiro. Hesitações e questionamentos tinham, em certo grau, sido superados e Tien Feng noticiou que todos estavam prontos para juntar-se numa delirante exigência de vingança. Seu relatório de acusações e denúncias, de quinze páginas, foi seguido por um artigo devocional inti­tulado, "Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, esses três."

Um grande número de delegados, vindo dos Salões da Assembleia da Igreja, compareceu agora à Segunda Conferência Nacional da Igreja Cristã Chinesa, realizada em Peking do dia 15 a 23 de Março de 1956. Aqui, o presidente do Movimento dos Três Self, Y. T. Wu, apresentou seu relatório do progresso desde a conferência anterior, em Julho de 1954. Nessa ocasião, disse: "Exatamente quando íamos em frente em plena confiança, um pequeno grupo, sobre o vazio pretexto de tratar-se de uma 'questão de fé', opôs-se ao Movimento dos Três Self e quebrou nossa unidade." Descreveu como, durante a cam­panha nacional no fim de 1955 e começo de 1956, alguns contra-revolucionários escondidos dentro da igreja foram descobertos. Sob o manto da religião, esses homens atuavam como espiões, propalavam boatos e rompiam a cam­panha central do povo chinês. Dentro da igreja, usavam o pretexto de 'fé' para opor-se ao Movimento dos Três Self, tentando com um slogan religioso confundir seus compa­nheiros cristãos, corromper a juventude e destruir a unida­de cristã. Denunciados, estava removido o obstáculo â unidade da Igreja Cristã Chinesa. Hoje, todos os cristãos estão unidos numa base mais ampla e mais firme do que nunca."

Em breve, os representantes do "Pequeno Rebanho" tiveram a oportunidade de fazer suas confissões públicas e unir-se às fileiras do Movimento. Mais tarde, num discurso, o anglicano D. H. H. Tsui declarou: "O ancião Yen Chia-le do Pequeno Rebanho de Peking e a Srt.a Hsu Ma-Li do Pe­queno Rebanho de Xangai fizeram acusações nesta mesma conferência. Quem jamais foi compelido a fazer acusações? Simplesmente, não podíamos agir de outra maneira senão agarrar tais oportunidades de revelar e acusar esses proponentes do imperialismo e da anti-revolução quando plenamente reconhecemos seus atos horrivelmente crimi­nosos." Falou das "garras escondidas do lobo vestido de ovelha" daqueles a quem o Ocidente escolheu para descre­ver como "bravos líderes cristãos".

No último dia, a Comissão do Movimento dos Três Self enviou uma carta a todos os cristãos chineses, que incluía o seguinte parágrafo: "Lembramos que na Conferência Na­cional da Igreja Cristã Chinesa, de Julho de 1954, ainda havia alguns crentes que não entendiam o significado de congregar-se no Movimento Patriótico dos Três Self. Assu­miram uma atitude destrutiva e tentaram prevenir a união dos cristãos. Mas, hoje a situação é muito clara: vemos, agora, que o obstáculo à união dos cristãos naquela época foi a presença de contra-revolucionários escondidos dentro da igreja, que, usando a capa da 'fé', tentavam destruir o movimento patriótico contra o imperialismo. Finalmente, foram denunciados e os irmãos e irmãs enganados chega­ram a compreender a verdadeira situação; e, assim, a graça dos irmãos vivendo juntos em harmonia finalmente desceu sobre nós. Irmãos e irmãs, juntos nos regozigemos perante o Senhor e demos graças." Seguiram-se conferências provisórias, sendo a de Chekiang realizada em Hangchow, local onde Watchman e Charity se casaram. Quando esta conferência foi aberta para discursos, os membros dos Salões da Assembleia estavam especialmente ansiosos por levantar-se e repudiar sua antiga atitude e juntar-se em condenação ao seu líder aprisionado. Na província de Anhwei foi oficialmente relatado em março que, "tantos quanto possível daqueles que haviam sido pervertidos pela larga influência de Ni To-sheng tinham sido reeducados e, o restante, preso".

Em meados de Abril, a reorientação da igreja em Nanyang Road, Xangai, foi declarada completa. Sua entra­da formal no Movimento dos Três Self ocorreu no dia 15 de Abril numa reunião com os representantes das outras igrejas-membros. Os temas da reunião foram "A Clarificação de Nossa Fé" e "Como Participar no Movimento dos Três Self". Curvando-se aos "desejos das massas", a igreja publicamente anunciou seu "renascimento". Discursou um representante do Departamento de Assuntos Religiosos e diversos líderes da igreja fizeram discursos de boas-vindas. Toda a Igreja Protestante da China estava agora, alegava-se, unida sob uma única autoridade.

Depois disso, porém, o repórter de Tien Feng observou lamentosamente: "Mas, um pequeno número de irmãos e irmãs que tinham sido profundamente afetados pelo veneno anti-revolucionário ainda não se sentiam à vontade e não poderiam, em sã consciência, concordar, pensando que a questão era aquela que envolvia sua fé." De modo que as autoridades começaram a tapar os buracos de cavilha. Todas as classes bíblicas informais, reuniões de oração e outras atividades desautorizadas nos lares foram ativamente proscritas. Evangelistas e pregadores independentes foram classificados como fora-da-lei. A liberdade de ado­ração cristã era proclamada em alta voz, mas, era uma liberdade condicionada, reservada para os que estavam sob a vigilância do Estado dentro do redil aprovado.

Durante esses procedimentos, Watchman Nee, é claro, permaneceu fora de vista. No dia 21 de Junho de 1956, compareceu perante a Suprema Corte em Xangai. Como antes e como em todos casos assim, não era um julgamento público, mas, simplesmente uma reunião pública para con­dená-lo. Durou cinco horas. No decorrer da audiência, foi anunciado que havia sido excomungado por sua própria igreja. Foi julgado culpado de todas as acusações e conde­nado a quinze anos de prisão com reforma por trabalho, a correr de 12 de Abril de 1952.

CAPÍTULO 19

AÇÃO SUPRESSIVA

Quando a tempestade desabou em Xangai, em Janeiro de 1956, Charity estivera entre os "procurados". Estava, porém, sob estritos cuidados médicos no hospital. Hiper­tensão com retinopatia associada estava ameaçando sua visão e doente demais para comparecer às reuniões de acusação ou produzir a confissão exigida. Mas, em Junho, por ocasião do julgamento e sentença de Watchman peran­te a Suprema Corte, estava presa. No fim do ano, sua confissão ainda não fora completada.

Algum dia, em 1957, Charity foi libertada para começar sua longa vigília doméstica. Morava, agora, num quarto afastado da Siccawei Road, não longe da Primeira Escola de Medicina. Poucos ousavam visitá-la e era preciso grande coragem para fazê-lo abertamente, pois, estava relacionada com um reacionário criminoso e assim perdera os direitos civis. A associação com ela podia ser perigosa; mas, de vez em quando, um estudante cristão ou um dos crentes a procuraria, geralmente após o escurecer para evitar ser visto. Evitando falar de seu marido, conversavam sobre o Senhor Jesus e, depois, uniam-se em oração. O visitante sempre saía reconfortado, admirado da fortaleza e paz do espírito, pois, era mulher de considerável recursos interiores.

Um prisioneiro que cumpria sentença podia indicar um parente como visitante, por isso, agora, após um intervalo de cinco anos, Charity teve permissão de ver Watchman. Atravessava a cidade até à rua Amoy no antigo Assenta­mento Internacional onde a vasta e medonha Primeira Prisão Municipal dava fundos para o Suchow Creek. A entrevista, que era supervisionada, ocorria num salão com uma barreira gradeada entre eles e durava meia hora. A permissão era renovável mensalmente. Watchman também podia enviar e receber uma carta por mês, estritamente censurada.

A prisão fora construída pelos ingleses em 1913 em estilo tradicional com paredes cinzentas e medonhas. Es­cadarias de torre levavam a cada um dos cinco pavimentos de seus onze pavilhões. A cela de Watchman, individual, media 2,70 x 1,35 m. Como mobília, havia somente uma plataforma de madeira sobre o soalho que servia de cama. Os cadeados na maioria das portas tinham sido fabricados em Londres. Fora da porta, uma galeria de 60 metros de comprimento para a qual se abriam as celas como armá­rios, com janelas na parede de frente. Devido aos perce­vejos, era difícil dormir.

O dia dividia-se em oito horas de trabalho, oito de educação e oito de descanso. Levantava-se às 5 horas da manhã para misturar-se com a multidão de homens perdi­dos e mal-humorados em trabalho na fábrica da prisão ou em exercício em opressivos quadrângulos destituídos de gramado. Não havia uniformes de prisão e as próprias vestes dos prisioneiros estavam desgastadas ou em andra­jos, ou, se os usuários eram diligentes, um mundo de remendos. Era um quadro horrível e deprimente. As refei­ções, preparadas pelas mulheres prisioneiras, eram três por dia, duas delas reforçadas (para o trabalho) ou leves (se não houvesse trabalho) e a terceira de sopa de aveia. Embora incluíssem verduras frescas e carne de vez em quando, o calor do verão deixava entrever as costelas dos prisioneiros parecendo gaiolas e veias salientes. Eviden­temente, mal viviam acima de um nível de subsistência. Era-lhes permitido um banho quente ocasional e corte de cabelo de quinze em quinze dias. No inverno, sem nenhum aquecimento, o frio extremo exigia muitas vestimentas apenas para manter-se vivo.

Como criminoso em face do código civil, Watchman recebia a mesma reforma educativa que um prisioneiro político. Havia preleções sobre política, acontecimentos correntes e técnias de produção. Em cada seção, existia uma biblioteca com livros e jornais permitidos, e também havia discussões, grupos de dramas e filmes. Grande parte do dia, ouvia-se um clangor de propaganda política pelos altifalantes.

À medida que no devido curso dos acontecimentos as circunstâncias em que Watchman se encontrava se torna­ram conhecidas lá fora, pequenas quantidades de alimento, vestes, sabão (que era severamente racionado) e dinheiro, eram enviados para Charity de Hong Kong, podendo ela levar um pouco para uso do marido. Ficou-se sabendo que sua mente era clara e estava ocupando-a. Tinha permissão para escrever artigos e uma parte de sua reforma através do trabalho significava emprego em traduzir do inglês para o chinês livros de textos científicos e artigos de periódicos quando fossem úteis às autoridades. Para esse fim, podia comprar livros aprovados e, em data posterior, foram adquiridos em Hong Kong dois volumes de um Dicionário Médico que lhe foram remetidos. É praticamente certo, contudo, que nunca lhe foi permitido ter uma Bíblia. Para essa fonte de conforto espiritual dependia, pois, de sua prodigiosa memória.

O verão de 1956 presenciara o começo do período das "Cem Flores", período de relaxamento de pensamento, porém um ano mais tarde, na época da soltura de Charity, seguiu-se a fase de "Florescimento e Contenda", com sua severa Campanha de Retificação contra os pensadores liberais. Todavia, uma estudante que visitou Nanyang Road em 1957, encontrou uma congregação de pessoas corajosas proclamando: "O Senhor é a minha força e o meu cântico; ele me foi por salvação." Houve um culto matutino, santa comunhão à tarde e reunião para jovens à noite. Era, diz, muito revigorante. Houve, também, uma conferência estu­dantil no salão de reuniões naquele mês de Julho. Ocorreu, na verdade, um amplo despertamento cristão naquele verão entre os estudantes de toda a China, alimentado, parece, pelo estímulo de escritos cuidadosamente preservados de Wang Ming-tao e do Walchnmn Nee. Muitos estudantes, também, estavam levando a sério a questão do confiar à memória grandes porções da Bíblia chinesa para fazer face a um dia de provação.

Em Novembro do mesmo ano, foi dado à publicidade o primeiro dos escritos populares de Watchman, A Vida Cristã Normal, em Bombaim, na índia. Não é provável que estivesse sempre ciente da ampla frutificação espiritual desses escritos fora da China.

Com Janeiro de 1958 veio o Grande Salto Para a Frente, de Mao Tse-tung, que tinha por alvo fazer a produção nacional "mais rápida, melhor e mais económica". Guiado por seus infalíveis pensamentos conforme interpretados pelas células, o povo chinês lançou-se a esforço extra em tudo, desde o plantio cerrado de mudas de arroz até a fundição de ferro gusa no fundo do quintal. A exaustão proveniente desta causa levou, inevitavelmente, à diminui­ção da frequência à igreja, mas, o ano havia começado, também, com uma intensiva campanha de educação socia­lista dos pastores cristãos, destinada a identificá-los como membros das classes exploradoras, "parasitas da socieda­de" e a recrutá-los para o trabalho produtivo. Tien Feng estava cheio de relatórios das coisas más descobertas, tais como cura pela fé e expulsão de demónios. Dizia-se que o "imperialismo" havia levantado a cabeça de novo e cos­tumeiras acusações infundadas de imoralidade. Forneciam-se listas de pastores mandados para a prisão ou para trabalhar nas minas. Muitos líderes cristãos que, por erro, haviam tomado as estratégias provisórias do Partido por seus objetivos últimos e se filiado nas primeiras denúncias, agora encontravam-se, por seu turno, denunciados. "Não se sabe", diz um observador de perto, "se devemos lamentar-nos mais pelos acusados ou pelos que fizeram acusações."

O corolário disto era a unificação da adoração para a qual se instigava, agora, uma campanha. Por toda a parte, as congregações fundiam-se e os templos ficavam disponíveis para uso secular. Em Setembro, as igrejas em Peking foram reduzidas de 64 para 4; em Xangai, de 150 para 20. O salão de Nanyang Road virou uma fábrica. A reforma compul­sória do "Pequeno Rebanho" incluía a abolição de suas reuniões de mulheres e de seu partir do pão semanal com a entrevista pessoal de membros antes desses cultos. Os hinos deviam ser unificados e aprovados por uma comissão. Em todas as igrejas foi banida a pregação sobre o tema dos últimos dias e da volta do Senhor, como também sobre a vaidade deste mundo. O ensino deveria favorecer a união da igreja com o socialismo. Todos os livros usados na interpretação da Bíblia deviam ser examinados e julgados e aqueles que continham pensamentos venenosos eram rejeitados. Os templos e as propriedades da igreja, bem como as contas eclesiásticas, deviam passar para a Comis­são Permanente do Movimento Patriótico dos Três Self.

Dentro do Primeiro Lugar de Detenção, onde a pressão para aumentar a produtividade não era menos forte, um silencioso e desafiante cântico de louvor subia a Deus. Um preso estrangeiro de outro pavilhão conta-nos como projetava um ano ou tanto mais tarde cantar, todas as manhãs, antes que os altifalantes entrassem em ação, quatro ou cinco cânticos que havia composto de trechos bíblicos decorados. Isto dá credibilidade ao relatório de mais de um prisioneiro libertado no verão de 1958 de que, frequente­mente, se ouvia o cântico de hinos da cela de Watchman. Os que se lembram de sua agradável voz de barítono, os que se acham familiarizados com os muitos graciosos hinos que compôs ou traduziu para o chinês, sentirão que esta história está inteiramente em harmonia com o seu caráter e até mesmo terão alguma ideia do que cantava. Também trará à memória uma ocasião do primeiro século quando "os demais companheiros de prisão escutavam".

O julgamento e a denúncia de Ruth Lee e de Peace Wang ocorreram naquele verão de 1958. Haviam-se firmemente recusado a acusar Watchman Nee e foram condenadas a quinze anos de prisão a partir de Janeiro de 1956. No devido curso soube-se que trabalhavam sob severas condições de emprego, fabricando sapatos de pano. O dr. C. H. Yu também resistiu a toda tentativa de denunciar Watchman, mesmo quando sua esposa e filho foram enviados para persuadi-lo a aceitar a liberdade fazendo a denúncia. Estava, agora, sofrendo de câncer e doente demais, quando chegou o momento, para resistir a um julgamento. Um pouco mais tarde, quando se achava sob liberdade condicional, morreu num dos antigos escritórios do andar supe­rior em Hardoon Road, firme na fé até ao último instante. O Ano Novo de 1959 não teve fogos-de-artifício, não teve roupas novas alegres e, naturalmente, nenhuma reunião evangelística. Tien Feng, agora publicada quinzenalmente e a última revista cristã sobrevivente, limitava-se a artigos de propaganda. Por toda a parte, as pessoas tinham sido exortadas a "dar seus corações ao Partido" e todas viviam, agora, plenamente ocupadas em ser produtivas. Mas, na ocasião em que três alpinistas chineses, estimulados pelo pensamento estratégico de Mao, haviam colocado um pe­queno busto de gesso do presidente no pico de Chomo-lungma (Everest) em Maio de 1960, a China já estava mergulhando na crise económica. Uma combinação de total falha administrativa com desastres naturais havia forçado o racionamento de alimentos e trazido condições quase que de fome em muitas áreas; e a política do Grande Salto Para a Frente de Mao via-se na contingência de inverter-se. Muito naturalmente, a fome penetreou nos Lugares de Detenção. Em 1962, quando dois frágeis e idosos anciãos do "Pequeno Rebanho" foram libertados após cumprir senten­ças de dez anos, dizia-se que Watchman pesava menos de quarenta e cinco quilos. Dezoito meses depois, estava doen­te no hospital com isquemia coronariana sendo liberado do trabalho manual por algum tempo. Permitia-se que os remédios receitados fossem comprados em Hong Kong e remetidos a ele.

Em Junho de 1966, explodiu sobre a nação a Grande Revolução Cultural Proletária, pegando de surpresa até mesmo os mais astutos observadores que estavam por dentro dos negócios. Parece que as ambições pessoais da presente geração de privilegiados administradores eram consideradas como uma ameaça ao interesse coletivo. No dia 18 de agosto, numa grande parada em Peking, os Guardas Vermelhos estudantis receberam a bênção de Mao Tse-tung, "nosso grande mestre, líder, comandante e piloto supremo", em virtude de sua cruzada pelo entusiasmo e pureza ideológicas. Armados com seus "pensamentos", atacavam os líderes da nação, desde o presidente Liu Shao-chi para baixo, como revisionistas soviéticos burgue­ses. Em Xangai, dentro de meses, a administração estava em levante e a Comissão Municipal havia caído. Fábricas fechadas, cartazes injuriosos cobriam cada espaço em branco dos muros, multidões ruidosas enchiam as ruas e ninguém tinha um momento de intimidade. Numa ocasião, os Guardas Vermelhos apareceram no portão da cadeia mu­nicipal e, acusando Fu Wei-jen, o governador, de revisionismo, irromperam e apoderaram-se do edifício por algum tempo. Berrando através de suas celas e salas de preleção, molestaram violentamente alguns dos encarcera­dos. Há evidência de que, neste episódio, Watchman foi derrubado e quebrou um braço. Por certo, a partir de agora, o Novo Pensamento teve precedência sobre todos os demais estudos na reforma dos prisioneiros e a seleção de livros aprovados na biblioteca da prisão era feita para conformarse-lhe.

Em Abril de 1967, completaram-se os quinze anos de Watchman. Frequentemente, durante este período os altifalantes da Primeira Prisão Municipal, advertia os prisio­neiros: "Se você tem uma sentença de cinco anos ou de sete anos e se ao vencer o prazo não estivermos satisfeitos com a sua transformação, você terá mais cinco ou sete anos." Assim, embora muitos ao redor do mundo estivessem oran­do por seu livramento e embora Charity, que estava agora com a saúde abalada, estivesse confiantemente esperando-o, talvez poucos se mostrassem tão esperançosos. Car­tões postais eram trocados entre suas duas irmãs mais velhas residentes em Hong Kong e em Xangai. "Está em casa o irmão mais velho?" — "O irmão mais velho não está em casa."

O ano de 1967 viu a distribuição de 86 milhões das Obras Seteias de Mao Tse-tung, em quatro volumes, 350 milhões das Citações ("O Livrinho Vermelho") e mais 100 milhões de Leituras Seletas e Poemas. Agora, tornara-se perigoso possuir uma Bíblia. Treze vezes em treze meses, os Guardas Vermelhos saquearam a casinha de Charity, revi­rando todos os seus bens pessoais, ridicularizando e des­truindo tudo quanto era cristão. No fim, à semelhança de tantos outros, foi deixada num agudo estado de ansiedade que chegou à beira de colapso total. Embora os crentes fizessem o que estava ao seu alcance para sustentá-la, só Deus a mantinha.

A partir deste ano, os cultos da igreja não eram contí­nuos por todo o país e os poucos clérigos remanescentes receberam ordens para regressarem às suas aldeias de origem. Todos os edifícios religiosos de todas as confissões foram "secularizados" e, nas suas paredes, colocada propaganda anti-religiosa. Tien Feng teve sua publicação suspensa e até hoje não reapareceu.

Mas, em Setembro, os anciãos do Salão da Assembleia da Igreja em Hong Kong receberam instrução, evidentemente de alta autoridade da República do Povo, com o propósito de que Watchman e Charity fossem levados para fora da China se uma considerável quantia em dólares norte-americanos fosse depositada na filial do Banco da China em Hong Kong. Havia precedente para isto. Um prisioneiro político com sua família, que em Peking se dizia ter "desertado para o Ocidente", quase todos acreditavam ter sido adquirido por uma quantia muito grande mediante um ajuste mútuo semelhante. Tão grande era o amor que os crentes chineses no sudeste da Ásia e além votavam a Watchman que a quantia do resgate foi rapidamente recolhida e depositada na conta especificada. Então, no começo de 1968 chegou instrução da mesma fonte oficial de que a transação não se efetuaria. O dinheiro foi liberado intacto para devolução aos doadores. Talvez nos perguntemos o que é que está por trás desta inversão de plano.

Supondo que a oferta fosse real e que tenha chegado a Watchman, certamente era apropriado que tomasse uma decisão de uma forma ou de outra, visto que uma carta escrita de seu próprio punho em Setembro chegou a Hong Kong com um refugiado e afirmando que estava bem de ânimo e com razoável saúde. Sustentam, pois, alguns dos jovens companheiros de trabalho que lhe foram íntimos, que, à semelhança daqueles antigos homens de fé que "não aceitando seu resgaste", ele próprio rejeitou a proposta. Isto é inerentemente provável. Permanecendo firme no seu princípio de cooperação com o Estado em coisas neutras — estudo, trabalho, obra de tradução — causaria o mínimo dano à imagem dos cristãos como chineses leais, "sujeito às autoridades superiores". Seu comportamento modelar po­dia até ajudar a acomodar a situação para muitos outros, ao passo que, para ele "desertar para o Ocidente", por certo os envolveria a todos numa aparência de concessão.

Mas, havia outra coisa. Não estava, afinal de contas, nas mãos de homens inescrupulosos, mas, de Deus. Sem dúvida, os homens sabiam em seus corações que fora enquadrado e que seus "crimes" eram fictícios, mas, isso era lá com eles. O que importava era que Deus o estava tratando de acordo com Sua vontade e que Deus podia dizer: "Bem-aventurado sois."

Nalgum ponto, cedo na vida, Watchman havia aprendido a lição do "quebrantamento" pela qual o cristão, uma vez tocado por Deus quanto à sua própria força e permanente­mente aleijado ali (como foi Jacó em Jaboque), descobre nessa experiência a força de Deus sempre nova. Quando é fraco, então, em Deus, é forte. "Não posso segurar-te, mas, posso pleitear contigo. Não tenho fé e mal posso orar, entretanto creio!" E quando é assim, Deus, porque está servindo de apoio, deve agir. Watchman nunca procurou diplomar-se nessa escola. "Sempre seremos aprendizes", havia dito em Wen Teh Li, "mas, em algum ponto, cada um aprenderá essa lição fundamental, após o que ninguém pode ser o mesmo de novo. Agora não há como não ser um aleijado. A partir desse ponto, começa um conhecimento de Deus que excede tudo quanto tenhamos sonhado." Certa vez, a este escritor demonstrou o ponto mais expressiva­mente tomando um folhado do prato que havia entre nós no jantar, dividindo-o ao meio, depois juntando cuidadosa­mente as duas metades. "Parece que tudo está certo", disse com um sorriso, "mas, nunca mais será o mesmo de novo, não é verdade? Você é assim. Você se renderá sempre após o mais leve toque de Deus."

A paz interior de Watchman derivava, pois, de um senso de destino, que nesta vida é, talvez, o maior dom de Deus a um homem. Em 1949 havia resolvido regressar de Hong Kong convencido de que Deus lhe reservara uma tarefa na nova China. Seria de todo coerente sentir agora que, quaisquer que fossem as aparências, este era ainda o lugar onde Deus poderia usá-lo e, portanto, desejava que ali estivesse. "Nada fere tanto", costumava dizer, "como o descontentamento com as nossas circunstâncias. Todos partimos do descanso, mas, há outro descanso que desco­brimos quando aprendemos de Jesus a dizer: 'Graças te damos, Pai, porque pareceu bem a Ti”. Deus sabe o que está fazendo e nada há acidental na vida do crente. Nada, senão o bom, pode acontecer na vida daqueles que são d’Ele.

“Para que somos consagrados? Não para a Obra cristã, mas, para a vontade de Deus, para fazer o que for de Seu agrado. O caminho de todos Cristãos já foi demarcado por Deus. Se, no final da vida, pudermos dizer, como Paulo, “terminei a carreira”, somos, então, deveras bem-aventurados. Os Santos do Velho Testamento serviram a sua geração e morreram. Os homens passam, mas, o Senhor permanece. O próprio Deus leva embora os Seus obreiros, mas, dá a outros. Nosso trabalho sofre, mas, o de Deus, nunca. Ele ainda é Deus”.

CAPÍTULO 20

SEM IMPEDIMENTO

Pela divulgação de seus escritos devocionais no Oci­dente, o nome de Watchman Nee tornou-se, durante a década dos anos sessenta, um ponto de concentração para oração a favor dos cristãos na China em geral. Entretanto, este interesse nele era bem novo e é desconcertante compará-lo com a suspeita que anteriormente havia susci­tado naqueles relacionados com os círculos missionários onde sua obra desrespeitava os interesses estabelecidos. Inevitavelmente, hoje, alguns de seus leitores sentem que têm mais em comum com o testemunho chinês nativo como o dele do que com o empreendimento missionário profissional estrangeiro que havia falhado tão tristemente em ler as placas sinalizadoras. Uma confissão sincera deste fracasso devia vir de um missionário anglicano, depois da partida forçada de Fukien. Descreve o trabalho de Nee como "uma comunhão real e expansiva" e admite que tais movimentos "começaram como protestos contra nossos erros". O que chama de oposição trágica entre a ordem católica e a liberdade do Espírito "não teria acontecido se não tivés­semos exportado para a China nossas próprias tradições cristãs dilaceradas e mutiladas pós-medievais de caráter ocidental".' Mas, um observador chinês no Ocidente podia ver com esperanças, na suspensão do empreendimento missionário estrangeiro, um prelúdio de futuro evangélico mais rico. "É razoável esperar", escreveu, "que comece na China um novo tipo de movimento missionário." Pode dizer-se, perguntamos, que Watchman Nee tenha contribuido para tal futuro?

Nascera numa época de revolução. Uma vez ganho para Jesus Cristo, via a necessidade de elaborar de novo para si próprio, num contexto chinês, o programa cristão de vida e testemunho livres de problemas que não vinham ao caso; e decidiu-se pela Bíblia como fonte suficiente. Lendo-a cons­tantemente, do princípio ao fim, esperava, com isso, escapar ao perigo da seletividade; e esperava que os problemas oriundos de agir de acordo com ela encontrassem sua solução em novos encontros com o Cristo vivo que é o tema da Bíblia. Assim, para citar o comentário de um missioná­rio, "o movimento, do qual era líder, tinha tremendo apelo como corporificação do evangelho não só radicalmente bí­blico, mas, também, radicalmente chinês".

Quando chegou à eclesiologia, sua principal fraqueza (mas, uma fraqueza na qual através dos séculos tem tido uma abundância de companheiros) jaz em tratar como obrigatórios os princípios que havia derivado meramente do exemplo do Novo Testamento. Sua insistência na "lo­calidade" geográfica das igrejas (uma cidade secular: uma administração eclesiástica local) pode ter aberto a porta, desde logo, ao controle do Estado justamente porque conduzia a uma estrutura tão rígida. Por contraste, seu redescobrimento, uma década mais tarde, do conceito do primeiro século de evangelização migratória, parece verdadeiramente inspirado em sua oportunidade. Por ele, as ideias de flexibilidade cristã e oportunismo foram plantadas nas mentes de muitos cujo destino, muito em breve, devia tornar-se uma dispersão forçada. Quando o Partido começou a reunir a população, buscando, por este meio, liquidar a igreja, esses conceitos mais fluidos e pragmáticos da vida e testemunho cristãos estavam destinados a desaparecer. Então, tem-se o que pode ser denominado de igreja "ex-tempore", uma em Cristo, mas, raramente organizada, tornando-se cada vez mais versátil em sua adoração e teste­munho e aprendendo do Espírito Santo, não meramente como sobreviver sob o fogo em novas situações, mas, de que maneira, como um só povo, batalhar por aí por Deus.

Porém, a mais valiosa contribuição de Watchman para a sobrevivência da fé e do pensamento vivo bíblico na China pode estar em outro lugar. Seu inesquecível ensino sobre o andar do cristão com seu Deus contém a semente com vida em si própria. O grão de trigo pode morrer, mas, não ficará só. A palavra proferida não voltará vazia, mas, realizará aquilo para o que foi enviada. "Erudito e profundo, abran­gente e completo, é um dos melhores pregadores que já conheci", diz um pastor chinês da Missão da Aliança. E, nas palavras de um missionário ocidental: "Não há dúvida alguma de que o Sr. Nee foi um homem levantado pelo Senhor para injetar as verdades do evangelho na corrente sanguínea do povo chinês. Suas palavras grudam como rebarbas. Seus livros e folhetos circulam por toda parte. Se se pedisse a alguém que elaborasse uma breve lista dos mais influentes cristãos chineses que já existiram, seria difícil deixá-lo de fora."

Mas, o que Watchman Nee alcançou — se deveras tinha alguma escolha — preferindo permanecer na China, en­carcerado, como esteve Paulo, "sofrendo até algemas, como malfeitor?" Que mensagem trazem para nós seus últimos anos?

Primeiro, a sua própria situação. Pode-se alegar que é disto que o cristianismo se trata. "Por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios" — assim advertiu Jesus aos doze. "Naquela hora, vos será concedido o que haveis de dizer; visto que não sois vós os que falais, mas, o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós." Isto é comprovado em suas experiências registradas no livro de Atos e, como ressalta F. F. Bruce, estabelece, também, o verdadeiro motivo de Paulo em apelar para César. "Se César, em pessoa, ouvisse a defesa de Paulo, qual seria o resultado? Seria duvidoso estabelecer limites às elevadas esperanças de Paulo, conquanto impraticáveis pudessem parecer em retrospecto a nós que conhecemos mais acerca de Nero que Paulo conhecia no ano 59 d.c." Para Paulo, a prisão não era castigo por pregar o evangelho, mas, um púlpito para sua pregação e outros, no decorrer da era cristã, têm tido esta experiência. Mme. Guyon, cuja biogra­fia exercera tanta influência sobre Watchman nos primei­ros anos de sua vida, escreveu sobre o interrogatório a que foi submetida sob ameaça de patíbulo em 1688: "Nosso Senhor fez-me o favor que prometeu aos seus discípulos do fazer-me responder muito melhor do que se tivesse estuda­do." Esta franqueza agressiva pelo reino demanda sempre a resposta de Deus que está por trás da palavra final do livro dos Atos — "sem impedimento".

Em Maio de 1968, um chinês que visitava uma capital ocidental pediu asilo. A história que contou às autoridados ali dizia que outrora havia sido guarda de prisão no Primeiro Lugar de Detenção de Xangai e que, por meio do testemunho de Watchman, havia encontrado Jesus Cristo como Salvador. Se isto oferece um lampejo do que os cristãos chineses estão realizando hoje através da "palavra do testemunho que deram" — e pode deveras ser assim — deve também incitar uma consideração posterior.

Em seu discurso sobre os últimos dias, Jesus usa, anós por implicação, palavras idênticas acerca de testemunhar na presença de autoridades às que usou anteriormente para os doze. Há, contudo, um acréscimo significativo; pois, colocada entre as duas sentenças acima citadas, está a declaração familiar, comumente consideradas no contexto mais usual de missão mundial, que "é necessário que, primeiro, o evangelho seja pregado a todas as nações". Em outras palavras, o ambiente clássico para proclamar o evangelho de Cristo, hoje, é ainda o tribunal do júri e a sala de interrogatório. Porque, pela própria natureza de sua tarefa, está aberto ao testemunho de sua vítima. Seu papel é fazer perguntas e buscar os motivos e causas. Talvez se julgue o agressor que tem todas as cartas nas mãos, mas, perante Deus, é um homem perdido e moribundo. O pri­sioneiro, consciente das necessidades do homem, é quem está idealmente colocado para consolá-lo com as novas que são "o poder de Deus".

Isto não significa que, mesmo falsamente acusado, o prisioneiro consiga a liberdade. O próprio Senhor Jesus foi julgado sob acusações criminosas forjadas; e foi preciso um julgamento e uma execução para requerer de seus juízes, de um colega prisioneiro, de seu carrasco e do povo a admissão de que era um homem inocente. Não somos ino­centes. "Em tudo somos atribulados, porém, não angustia­dos; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, po­rém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo."

Este privilégio de comunhão com Cristo como "vence­dor" mediante participação em Seu triunfo sobre a morte, desde longa data, havia sido a ambição de Watchman para seus irmãos em Cristo. Já na década de 1940 se vira às voltas com o simbolismo violento de João no livro de Apo­calipse, de uma mulher frente a frente com um dragão vermelho faminto quando está prestes a dar à luz um menino.Esta criança, para frustração do dragão, escapa de ser devorada ao encontrar seu lugar no próprio trono de Deus. Evidentemente, seu escape é uma figura da ressur­reição, visto que eles (que estão representados pela crian­ça) "mesmo em face da morte, não amaram a própria vida". Alguns, talvez, achem que o dragão atenuado e serpentiforme da China tem pouco em comum com o sim­bolismo grego de João; mas, para os crentes chineses hoje, quando reivindicam seu direito de acesso ao trono da graça, o conceito de um dragão desapontado — e verme­lho — deve certamente possuir certo encanto!

Nesta reunião de uma noite inteira com os fundadores do Movimento Patritótico dos Três Self dos cristãos chine­ses, o primeiro-ministro Chou En-lai deixou clara a posição do Partido quanto à liberdade do testemunho cristão. "Vamos permitir que vocês continuem tentando converter as pessoas, contanto que vocês também continuem seus serviços sociais. Afinal de contas, ambos cremos que a verdade prevalecerá. Achamos que suas crenças são erradas e falsas; portanto, se estivermos certos, o povo as rejeitará e sua igreja entrará em decadência. Se vocês estiverem certos, então o povo crerá em vocês; mas, visto que estamos seguros de que vocês estão errados, estamos preparados para correr esse risco." Foi uma apresenta­ção graciosa de uma intenção implacável e já tem sua resposta na garantia de Jesus à Sua igreja de que, contra ela, as próprias portas da morte se comprovarão ineficazes. Quando Jesus disse isto, estava prestes a pôr à prova essas portas. É certo, portanto, que veremos em nosso dia o redespertar de uma fé vital cristã na China. "As velhas superstições estão revivendo", queixam-se os desanimados cães de guarda do Partido — e eles devem saber.

É inevitável a colisão. Para os filhos de Deus, ali como aqui, a vida cristã não é geralmente vivida fora da vista ou às escondidas, pois "com toda a intrepidez" é a outra cláusula adverbial com que conclui o livro dos Atos. "O cristianismo não é uma religião de eremitas e de retiradas para as montanhas: é social e comprometida com a socie­dade; deve, portanto, ser um desafio para o comunis­mo." Não seria insensatez, contudo, insinuar, também, em face das muitas evidências, que o Espírito da verdade ainda está operando onde outrora Watchman Nee e Wang Ming-tao e tantos outros pregaram com tanta fidelidade e está até agora trazendo condenação a um mundo cujo governante invisível já está julgado.

Em Janeiro de 1970, aos 66 anos de idade e após dezoito anos na cadeia de Xangai, Watchman foi transferido para uma prisão aberta ou campo de trabalhos forçados no interior. Ali, contudo, ou a exposição ao clima ou o trabalho leve que lhe foi dado foi demais para ele. Sua condição cardíaca isquêmica manifestou-se de novo, causando-lhe grande desconforto; e, como resultado, achou-se que devia voltar a Xangai por algum tempo. Esse ano passou e estava bem no ano seguinte; a pena de vinte anos aproximava-se do fim e as esperanças de Charity começaram a aumentar. Então, uma noite nos fins de Setembro de 1971, estava consertando alguma coisa na sua casinha em que, dentro de poucos meses, esperava receber Watchman de volta. Estava em pé sobre uma banqueta quando, de repente, perdeu o equilíbrio. Possivelmente sofreu um ligeiro derra­me; seja como for, caiu pesadamente, fraturando diversas costelas. Os amigos mandaram avisar sua irmã em Peking, a quem não via desde antes do julgamento de Watchman e que, agora, chegava em tempo de estar com ela brevemente no hospital antes de sua morte. Deus, em sua bondade, havia levado sua filha.

Completadas as providências do funeral, esta irmã visitou Watchman no campo de trabalho a alguma distância da cidade. Já havia recebido a notícia e sentia profundamente a perda, pois, aguardavam com grande expectativa sua reunião em Abril. Ela relatou, não obstante, que estava descansado, com boa disposição.

O que precisamente aconteceu a seguir no verão de 1972, não sabemos. No dia 12 de Abril, ele completou vinte anos de detenção, cinco anos mais do que a sentença publicada. Dez dias mais tarde, escreveu uma carta à sua cunhada, com mão firme. Na carta, chamando-a como "irmã mais velha", primeiro agradeceu-lhe alguns pacotes de presentes. "Recebi sua carta de 7 de Abril e pude ver que não chegaram às suas mãos meus agradecimentos pelas coisas que me enviou. Tudo quanto você nomeia me chegou, de fato, às mãos e lhe sou muitíssimo grato." Continua e a tranquiliza com relação a si próprio. "Você conhece a crónica condição que sempre me acompanha. Os ataques, naturalmente, são angustiantes, mas, nos inter­valos, não é tão difícil. A única variação está no grau de atividade, pois, não há possibilidade de recuperação." A sentença seguinte indica, talvez, que está num lugar no interior. "O sol de verão", diz, "pode dar um pouco de cor à pele, mas, não pode afetar a enfermidade." E então conclui: "Mas, conservo minha própria alegria, por isso, não se preocupe, por favor. E espero que você também se cuide e que a alegria lhe encha o coração. Desejando-lhe bem, Shutsu." Havia assinado com seu nome de infância, o que usava em brincadeiras com colegas, havia muito tempo, em Foochow.

Seis semanas mais tarde, dizem-nos, estava na provín­cia de Anhwei. Era-lhe longa demais a viagem? Ou havia novas privações? Como intelectual não-reformado e sem direitos civis, era o tratamento que recebia menos que generoso? Ou sua enfermidade atacou de novo repentina­mente? Não temos detalhes. Não sabemos se contou com qualquer companheirismo cristão no final. Tudo o que sabemos é que no dia 1 de Junho de 1972, em seu sexagésimo-nono ano, passou para a agradável presença de seu Senhor.

É da leitura atenta de sua última carta que emerge algo mais. Aceita sua situação e fala da luz do sol que pode entrar de fora e fazer algo para modificar um pouco. E então, naturalmente, conclui com uma nota de bem-vinda alegria e os que o conheceram sentirão que isto está inteiramente de acordo com a sua personalidade. Não há auto-compaixão, porque sua preocupação é com a destinatária da carta, no sentido de que a alegria interior que está experimentando seja a experiência dela também. Lembremo-nos de que não pôde mencionar o nome de Deus. A carta seria censurada e bem poderia ser destruída.

Por isso, faz algo mais. Ao expressar o desejo de que seu coração (dela) "esteja cheio de alegria", emprega quatro caracteres: hsi-Joh, "alegria", e man-tsu, "completa". Po­demos, talvez, detectar aqui um piscar de olhos? Porque se trata dos quatro caracteres empregados para traduzir as palavras de Jesus a Seus discípulos: "Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa."

Esta é, pois, a mensagem em código para todos nós: "Pedi!" Visto que Deus está sempre ali no Invisível, não há situação alguma nesta terra na qual você e eu sejamos impotentes para fazer qualquer coisa. Quer algemados por inimigos ou impedidos pelas circunstâncias, quer totalmen­te paralisados ou trancados dentro de quatro paredes em solitária escuridão, podemos orar, podemos apelar a Ele, podemos pedir. Certamente, receberemos. Deus atuará de novo. Se continuarmos pedindo, nossa tristeza se trans­formará em insuperável alegria. "E a vossa alegria nin­guém poderá tirar."